20 de novembro, Angola Janga e outros reinos africanos

Georgia Silva
7 min readSep 29, 2022

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Aristeu Carlos da Silva, nascido em 1 de outubro de 1915 em Porto Alegre, Rio Grande do Sul (RS). Seu registro de nascimento é de 24 de fevereiro, dia em que 70 anos depois ganharia uma das suas netas, Simiana, a qual recebeu seu nome como homenagem a uma das nossas trisavós. Filho de Paulino Carlos da Silva e Alzira da Silva, neto de Carlos Centeno da Silva e Ignacia da Silva. Irmão da Alzira, Georgeta, Georgelina, Clementina e da Gloria. Nasceu na Colônia Africana, área além dos muros do portão da cidade em que vivia majoritariamente a população negra. Este nome, Colônia Africana, vem da denominação dada “informalmente” pela imprensa a este local, local de gente que vivia na base do nós-por-nós. Com as mudanças geradas pela gentrificação, a Colônia Africana hoje corresponde a bairros nobres da cidade (Mont'Serrat, Bom Fim, entre outros), um deles, não por acaso, denominado bairro Rio Branco.

Assim como este, há diversos outros territórios negros em Porto Alegre, cheios de história. Como o Parque da Redenção (1), parque tradicional na cidade, cujo nome faz alusão à abolição da escravatura e que tinha nas suas proximidades de um lado, a Colônia Africana, e do outro, a Cidade Baixa, este último também anteriormente de forte presença negra. O entorno deste parque era conhecido pela presença das casas de matriz Africana, de culto aos Òrìṣà, Nação aqui no RS do batuque. Em 1935 este parque foi renomeado em homenagem à designada Revolução Farroupilha (2), mas o nome antigo persiste entre a maioria das pessoas por aqui, quando a este parque se refere. “Foi o 20 de setembro, o precursor da liberdade”, como diz o hino do Rio Grande do Sul. 20 de setembro de 1758, data do nascimento de Jean-Jacques Dessalines.

“20 de novembro — data que em casa celebramos o amor” (3)

Foi então, junto à Redenção, no bairro Cidade Baixa, que meu avô, Aristeu Carlos da Silva, viveu com minha avó, Nenira Santos da Silva, casados em 20 de novembro de 1943. Vinte de novembro? Sim, aquele 20/11, data tradicional de casamentos na nossa família em homenagem a Angola Janga, Zumbi dos Palmares e à existência africana nestes locais. Depois deles, minha tia mais velha casou em 20 de novembro de 1971, com o mesmo propósito, de homenagear esta data, assim como meus pais, em 20 de novembro de 1974. Além desses, ocorreram ainda outros dois casamentos da família no 20/11, o último realizado em 20 de novembro de 2019, por aquele que, assim como o marinheiro Cândido daqui desta região, também é João, João Ricardo como um dos nossos bisavôs.

Nenira e Aristeu Carlos da Silva, 20 de novembro de 1943. Certidão de casamento atualizada. Acervo da família.
Nenira e Aristeu Carlos da Silva, certidão de casamento atualizada, 20 de novembro de 1943. Acervo da família.
Regina e José Alberto Santos da Silva, certidão de casamento, 20 de novembro de 1974. Acervo da família.
Regina e José Alberto Santos da Silva, certidão de casamento, 20 de novembro de 1974. Acervo da família.
Aniversário de casamento, Aristeu Carlos da Silva e Nenira Santos da Silva. Acervo da família.
Aniversário de casamento, Aristeu Carlos da Silva e Nenira Santos da Silva. Acervo da família.

“O casamento é uma decisão política. Quando casamos com alguém, não casamos apenas com aquela pessoa; casamos com sua cultura, sua comunidade e com seu povo ”. (4)

Porto Alegre tem uma história tradicional de intelectualidade negra unida e atenta às necessidades da sua população. O aquilombamento vem como instrumento prático de sobrevivência, humanização, preservação e celebração cultural negra. Vale o "Porto Alegre tem", não no sentido bairrista, que não contempla a população negra deste estado, e sim no sentido de afirmar nossa presença, num estado que mudou seu perfil racial face às políticas de branqueamento do que foi designado Brasil. Hoje, nós africanos somos em Porto Alegre 24% da população e 17% no RS. Para entendermos o significado destes números, observe que a população negra nos Estados Unidos corresponde a 13% da população daquele país, embora o colonizador opte por lembrar de outras histórias e narrativas em relação a este estado. Não estamos sozinhos, por isso não há como falar dos meus avós sem falar dos territórios e de locais tradicionais da cidade, de reinos africanos do nós por nós.

Paulino Carlos da Silva, pai do Aristeu Carlos e meu bisavô, assim como tantos outros africanos aqui de Porto Alegre, perto da virada do século, era ligado à Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora, um dos clubes sociais negros desta região. Fundado em 1872 por um grupo de pessoas negras, antes da abolição da escravatura, um dos mais antigos do Brasil e que tinha como propósito inicial oferecer funerais dignos à população africana desta cidade. O Floresta Aurora completa 150 anos no próximo dezembro e neste período exerceu diversas funções para a sociedade negra local, além daquela inicialmente idealizada. Forneceu espaço seguro, de aquilombamento, de celebração cultural, de trocas de ideias e, tal como os tradicionais quilombos, ofereceu humanização, cuidado, amor e zelo. Desta forma, Aristeu Carlos da Silva esteve presente, desde pequeno, no Floresta Aurora, além de outros locais negros, tal como o Clube Náutico Marcílio Dias, espaço físico este onde o poeta Oliveira Silveira (5) e o Grupo Palmares fez seu ato evocativo a esta data, em 20 de novembro de 1971.

Aristeu Carlos da Silva debateu, contribuiu para o crescimento destes clubes, formou uma família linda, cujos filhos eram chamados carinhosamente de “os 450” por frequentadores do Floresta Aurora e que passou a vida envolvida com as atividades do clube sesquicentenário, como o Teatro Novo de 1969. Fez tudo isso, não sem antes homenagear Angola Janga. Em 1943! E certamente não fez sozinho, fez porque discutiu, debateu com tantos outros intelectuais, pensadores, filósofos que como ele, como nós, gostariam de transformar este mundo em um lugar digno. Entre estes intelectuais haviam carroceiros como meu bisavô Paulino, professores, como o professor José Maria, estivadores como meu tio avô João Rocha, casado com a minha tia avó Chininha, a irmã Alzira do meu avô Aristeu, e que na ausência física dos meus avós e dos avós do meu marido, se tornou a bisa das nossas filhas e sobrinhos, além daqueles de sua linhagem direta. E ali na Lopo Gonçalves 679, pertinho da Rua da Margem, era a casa da família, para onde muitos iam para discutir, debater, propor ações, sonhar com mudanças. Quem nunca viu, que fosse ver.

“Nos reuníamos à tarde, com música, canto, alegria, ali na Lopo Gonçalves. Quando não era ali a reunião, era no meu apartamento, sendo minha irmã a anfitriã. Ou então na Floresta Aurora. Era a gestação do Grupo de Teatro Novo.” (6)

Nenira e Aristeu Carlos da Silva com alguns filhos e netos. Acervo da família.
Nenira e Aristeu Carlos da Silva com alguns filhos e netos. Acervo da família.

Somos ensinados na Maafa a esquecer nossas histórias, a valorizarmos nossos tombos, quando deveríamos valorizar o quanto fazemos apesar dos tombos, tão naturais na roda da capoeira como da vida. Então esse texto é uma maneira de me deseducar, de compartilhar com todos um pouco do que me encanta na minha própria família e imagino o quanto de história você não teria pra me contar da sua.

Notas:

1. Em 7 de setembro de 1884 foi proposta a denominação de Campos da Redenção em homenagem a libertação dos escravizados.

2. A designada Revolução Farroupilha ocorreu de 20 de setembro de 1835 a 1 de março de 1845, a mais longa insurreição brasileira. Movida pelas elites locais, de caráter republicano e com objetivos separatistas.

Como em outros exemplos de utilização do serviço militar como estratégia de luta frente a injustiça e de busca da liberdade na diáspora africana (Buffalo Soldiers, por exemplo), homens escravizados foram chamados a lutar em troca da promessa de liberdade e assim faziam, em frente às tropas, armados com lanças. O grupo, que viria a ter um papel de destaque na guerra, ficou conhecido como Lanceiros Negros. Foram assassinados em uma emboscada pelos que os chefiavam na Traição de Porongos, em 14 de novembro de 1844.

Na designada Revolução Farroupilha foi elaborado o Hino do Rio Grande do Sul, amplamente contestado há décadas neste estado pela referência que faz à escravidão. Este Hino já sofreu modificações, mas a referida estrofe, se manteve. O poeta Oliveira Silveira (5) fez inclusive uma sugestão, em 1971, de alteração da mesma.

3. José Francisco Silva, 2021. https://www.facebook.com/chico.meufilho/posts/pfbid0B9ZE7bYSecTZKwg2WUBWnYq3289H5qxHD81NzoZhQ6iUMABeypqu5UWAgNdxZN6ml

4. Dr. Umar Johnson, 2017. https://www.youtube.com/watch?v=fVhBOcUv4QY

5. Oliveira Silveira: Amigo da nossa família, teve papel fundamental na divulgação destas discussões intelectuais negras. No ano de 1971, o Grupo Palmares, formado por ele e outros intelectuais negros da cidade promoveu homenagem a Luís Gama, ocorrida no início de setembro na Sociedade Floresta Aurora, a José do Patrocínio, em outubro (a princípio no mesmo local) e a Palmares em 20 de novembro, realizada no Clube Náutico Marcílio Dias.

6. Mauro Paré, 2022. Acervo pessoal.

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