O lugar dos índios na História: Tradição, Escolas e Escolas

Por Brendo Diniz; Gabriel Ícaro; Leonardo Barreto e Lucas Ferreira

Como se conta uma história?
7 min readJun 28, 2019

COMO SE CONTA UMA HISTÓRIA?

Aquelas noções de História que aprendemos quando crianças e adolescentes nas salas de aula normalmente são, para a maioria das pessoas, as únicas fontes formais de conhecimento sobre o passado. No entanto, no campo informal, a todo tempo é percebida a presença de ideias e elementos históricos: no entretenimento, na memória pública, nas tradições religiosas, enfim. Dessa forma percebemos que há formas diferentes de se contar uma história. A proposta desse texto é pensar sobre como a história dos Indígenas tem sido contada nas escolas e nos “meios informais”, em contraste com a visão sobre esses povos dada por um historiador do século XIX, Capistrano de Abreu.

MAS QUEM FOI CAPISTRANO, E O QUE ESCREVEU?

Nascido no Ceará em 23 de outubro de 1853 foi um importante intelectual brasileiro da segunda metade do século XIX e início do XX. Ávido por leitura desde muito jovem, Capistrano logo se interessou por diversas áreas do conhecimento, como a Literatura, Filosofia, Geografia e História. Após alguns anos de estudos no Ceará, em 1875 Capistrano se muda para o Rio de Janeiro, ensejando participar mais ativamente das discussões intelectuais brasileiras, e possuir algum destaque nesse meio.

Em 1789 ele passa em primeiro lugar no concurso para oficial da Biblioteca Nacional. É justamente nesse ambiente que Capistrano entra em contato com documentações gigantescas e livros importantes do passado colonial brasileiro. Com isso, ele começa a se interessar mais profundamente pela história do Brasil. Anos depois, em 1907, ele publica o seu livro “Capítulos de História Colonial”, que de alguma maneira difere dos estudos historiográficos anteriores sobre o Brasil colonial.

Capistrano foi um dos primeiros estudiosos da história do Brasil a considerar dois elementos que serão muito recorrentes nos estudos do Brasil posteriores: O sertão e o povo. Situação que causou em certo rebuliço na época, pois os intelectuais brasileiros estavam acostumados com estudos que ressaltam o homem branco litorâneo. Mesmo assim, não se pode pensar que Capistrano era um homem fora de seu tempo, muito pelo contrário. Isso fica claro com a participação indígena na história que ele escreve.

Pintura de Teodoro Braga denominada “Périplo máximo de Antônio Raposo”, parte do acervo da Pinacoteca de São Paulo. A representação feita no século XIX em homenagem a um bandeirante é coerente com o lugar dedicado aos indígenas nas historiografia da época. Lugar às margens.

No capítulo chamado “O sertão”, o autor investiga essas questões. Mesmo discordando de análises anteriores profundamente marcadas por visões racistas, evolucionistas, Capistrano ainda reserva um lugar quase de paisagem para o indígena, um elemento a mais da natureza tropical a ser submetido pela colonização. Não se trata de uma visão romântica — pensar o índio como o “bom selvagem” de Rousseau — e nem racista, como era comum acontecer em sua época. O índio na obra de Capistrano de Abreu é alguém considerado para a constituição desse povo que ele investiga, mas basicamente como aquele que está no caminho do colonizador, fadado à resistência e ao desaparecimento. Ainda é o estorvo que vez por outra entra em choque com os desígnios da colonização, seja durante o movimento das bandeiras, seja com a criação de gado posteriormente, ou durante a mineração. Em outras palavras, o índio ainda permanece nos bastidores dessa grande história do Brasil colonial.

Para conhecer melhor a obra de Capistrano, a Biblioteca do Senado Federal disponibiliza na integra seu livro “Capítulos de História Colonial”. Há ainda uma série de documentários produzidos pelo Governo do Ceará que, em um dos episódios, aborda a vida de Capistrano.

A HISTÓRIA DOS INDÍGENAS CONTADA NOS LIVROS DIDÁTICOS

O ensino da temática indígena de forma generalizada no ensino básico é bastante recente na história brasileira, também o sendo as produções de livros didáticos que realizem uma abordagem deste tema. Aqui será proposto uma análise de como a figura indígena aparece em um livro didático, buscando analisar como sua visão se aproxima ou distancia da abordagem realizada no texto de Capistrano de Abreu. O livro didático a ser analisado é o “História em Movimento 2 — O mundo moderno e a sociedade contemporânea”, voltado para o 2° ano do ensino médio e em sua segunda edição, sendo escrito por Gislane Azevedo e Reinaldo Seriacopi e publicado em 2015.

A primeira vez que a temática indígena aparece no livro didático é no “Capítulo 5 — O Governo-Geral”, mais especificamente no trecho “Os jesuítas em ação”. Neste trecho os povos indígenas são tratados somente na relação com os jesuítas, perpassando temas como dominação e resistência, o que coaduna com a visão presente no texto de Capistrano, que tende a ressaltar a temática indígena como uma mera resistência ao avanço português e católico, jamais como uma reflexão autônoma.

A “Primeira Missa” de Victor Meireles é imagem recorrente nos livros didáticos. É uma imagem relevante enquanto documento histórico e ilustrativo da imposição cultural perpetrada por portugueses, mas, se não contextualizada, pode reforçar esteriótipos negativos tradicionais sobre os nativos.

No “Capítulo 9 — O avanço da colonização”, aparece a figura indígena somente na unidade “A conquista do Sertão”, em que se ressalta a existência da “Confederação dos Tamoios”, que resistiram ao avanço português ainda no século XVI, novamente ressaltando a visão dos povos indígenas somente como uma resistência ao avanço europeu.

Por fim, no “Capítulo 11 — Os bandeirantes”, o índio surge somente na unidade “À caça de indígenas”, onde se tratas sobre as capturas de indígenas para vendê-los como escravos, mais uma vez ressaltando o apagamento da história indígena, sempre retratada como um apêndice da história europeia.

Pode-se inferir que no livro analisado a temática indígena aparece somente como uma resistência ao avanço da colonização, demonstrando que apesar dos avanços que houve no ensino sobre a história indígena, ainda há uma forte presença de uma análise histórica muito afeita ao viés europeu, como a do próprio Capistrano de Abreu, em que a figura indígena enquanto ser autônomo é apagada em favor de uma narrativa que privilegia somente sua resistência aos povos europeus e posterior submissão.

Gravura em metal de Theodor de Bry, 1592. Esta imagem já pôde ser encontrada em livros didáticos para o ensino básico. Sendo contextualizada como representação do imaginário europeu da época sobre os povos da América, não há o que se questionar. No entanto, o mero uso ilustrativo pode levar à reprodução do referido imaginário nos alunos.

A HISTÓRIA INDÍGENA VISTA PELO DESFILE DA MANGUEIRA DE 2019

No carnaval de 2019 a escola de samba da Mangueira representou em seu desfile um inversão de papéis ao representar a valorização dos personagens indígenas e negros que fizeram alguma forma de resistência à dominação europeia, à colonização e à escravização dos povos da África e da América. No enredo do desfile da Mangueira esses personagens são nomeados e tratados como verdadeiros heróis da formação do Brasil, um contraponto direto à valorização da ação colonizadora portuguesa. O próprio título dado ao samba enredo, História para ninar gente grande, evoca a construção desses indivíduos como grandes figuras da história. No texto de Capistrano de Abreu, essas figuras “proeminentes” continuam em ação, especialmente no destacamento dos feitos “grandiosos” dos grupos bandeirantes, apesar de também narrar diversas atrocidades cometidas por esses agentes. Ao lado desses atores, ou melhor, abaixo estão os povos indígenas. No texto, quando são narradas as conquistas, os indígenas são caracterizados como inertes, passivos e até mesmo mesclados com elementos da natureza, parte constitutiva do ambiente, sujeitos a pacificação, domesticação ou aniquilamento. Enquanto na Mangueira os personagens não-brancos são incluídos como agentes da História, passíveis de serem vítimas, mas também agentes da sua própria história, no texto de Capistrano, assim como nos demais textos clássicos, formadores da dita História “oficial”, essas pessoas são apagadas, silenciadas ou inferiorizadas.

O desfile na íntegra está disponibilizado no Youtube:

Com o samba enredo “histórias pra ninar gente grande”, a Mangueira venceu o Carnaval do Rio em 2019

CONCLUINDO…

Felizmente as mais recentes pesquisas em História sobre os povos nativos do Brasil têm atribuído a eles um lugar diferente daquele lugar tradicional que foi afirmado pelos autores clássicos, como Capistrano de Abreu. Defender uma nova História dos indígenas aqui não significa desprezar toda a produção de Capistrano e de seus contemporâneos colegas de ofício. No entanto, não se pode ignorar o fato de que as grandes limitações de teorias e métodos para se pesquisar e estudar História no século XIX criaram algumas narrativas marcadas pelo silenciamento — isto é, por avaliar os fatos por um único ponto de vista — da experiência dos indígenas. Essa experiência foi muito mais ampla que a mera barbárie, submissão e apropriação passiva da cultura europeia, como têm mostrado as pesquisas recentes. Aquelas narrativas tradicionais, porém, ainda rondam não só o pensamento cotidiano das pessoas, como costumam ainda aparecer nas aulas de História nas escolas.

Infelizmente a velocidade com que a produção científica do conhecimento histórico chega nas salas de aula não é tão grande e muitos professores e alunos — às vezes amparados pelos livros didáticos, como mostramos — insistem nos lugares comuns que pretendemos superar. Mas há espaço para boas perspectivas. Desde 2008 a história dos indígenas se tornou conteúdo de ministração obrigatória nas escolas básicas e aí se abre um rico potencial para que os professores possam trazer à sala de aula não mais as velhas e únicas narrativas sobre europeus que vieram trazer cultura e civilização, mas as novas histórias da riqueza cultural dos nativos, sua resistência e estratégias de persistência desde a colonização até o presente.

Como nos lembra uma autora do campo da Educação, Verena Alberti, os conhecimentos históricos aprendidos na escola concorrem com as noções de História presentes na família, nos filmes, na TV. Ora, se isso poderia ser visto como um risco para o ensino escolar, pode também ser visto como um grande auxílio para a difusão do saber de qualidade — quando é de qualidade. Um exemplo foi o desfile da escola de samba Mangueira no Carnaval do Rio em 2019. Nas palavras das Historiadoras Hebe Matos e Marta Abreu, “Neste ano, a Mangueira realizou na avenida, com o brilho de um irretocável desfile carnavalesco, o que muitos professores de história vem fazendo em seus cursos, com alcance bem menor, é verdade: contar a história de baixo para cima e aclamar com orgulho personagens heroicos da história do Brasil, com Dandaras, Cariris, Malês, Dragões do Mar, Luizas Mahins, Esperanças Garcias e Marielles.” Essa história contada pela Mangueira não só pode auxiliar uma aula de história indígena na escola como ainda pode alcançar — e ensinar — aqueles que estão fora da escola. A historiografia sobre os nativos no Brasil tem avançado, e o ensino sobre esses povos na escola tem um incrível potencial de grande efeito social positivo.

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