Cheiro

Gica Trierweiler
2 min readJul 5, 2017

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Não é de hoje que você acorda antes de mim. A parte boa é que tenho espaço pra despertar, enumerar as preocupações do mesmo jeito que se empilhas bexigas cheias d’água e ensaboadas, alongar as vértebras e contemplar o vazio das postagens matutinas de muita gente que nem sei mais de onde veio. A parte ruim é que não tem você ainda fazendo download de si mesmo e vindo pro lado de cá da vida. A gente tem jeitos tão diferentes de lidar com ela, o que é nosso laço e nosso nó ao mesmo tempo, mas ao mesmo tempo vamos contar já nove anos nesse novelo, então convenhamos que tem bem mais laço que nó de nós.

Desço e, por alguma razão, vou me sentindo à vontade com as entranhas da geladeira. Transformo uma pilha de vegetais e frutas no que virá a ser nosso almoço e jantar e bolo e lanche, a faca cega ora mastiga ora corta ao ritmo de um Superchunk resgatado lá dos escombros de um tempo em que a gente só ficava sabendo da vida dos outros se eles ou alguém nos contasse. Você me abraça como se não me visse há muito tempo e não ouço sua voz porque esses fones estão enfiados lá no íntimo da minha cabeça, mas meu corpo responde porque é você e esse é o protocolo escrito na carne: se ele toca, a gente gosta e retribui. Dá pra sentir um cascatear de células minhas ficando de conchinha. Me beija, mas agora não porque eu tô com bafo de pão francês com manteiga e café e ele ri. Vai trabalhar.

O cheiro de canela mistura na noz moscada, cobre as bananas maduras que já se encontram encrustradas no açúcar queimado. Aliás, precisamos falar sobre isso: parem de chamar açúcar queimado de caramelo. É açúcar e fogo, uma lava doce que não tem dó. O medo de queimar o dedo e o perfume do bolo me pegam pela mão e me colocam escondida no jardim da nossa casa de quando os anos ainda começavam com mil-novecentos-e e o dinheiro não valia muito, mas tinha bolo, pipoca, pão, pizzinha, pirão com bife acebolado e outras iguarias da minha infância. Abro espaço entre as lembranças e subo para tratar de uma vida real dura nos boletos e prazos de pagamento.

Entro no quarto e sou tomada pela bonita surpresa que é o seu cheiro. Cheiro seu com aquele perfume que me dá barato e faz a calcinha — ops!-escapar. Cheiro da sua bondade desregrada, da sua visão além do alcance, da sua inteligência afiada, das suas dad jokes, da sua lealdade inegociável e das coisas que só eu sei.

Que dia promissor.

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