Os desafios de uma educação inclusiva para crianças autistas

Giovanna Cerveira
11 min readJun 4, 2022

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Após receber o diagnóstico de autismo do filho Alexandre, Leandro e Gislaine se empenham para garantir a integração igualitária do pequeno na sociedade

*Gilson Santos, Giovanna Cerveira e Naira Nunes

Leandro, Alexandre e Gislaine. Foto: Arquivo Pessoal

Leandro Maria e Gislaine Roesch são pais de Alexandre, de 6 anos, e de Isabela, de 12 anos. Alexandre foi diagnosticado com autismo próximo a completar os dois anos de idade. A mãe já desconfiava da possibilidade desde que o filho era bebê. Ele não respondia a estímulos feitos por ela, principalmente, na amamentação.

“Ele foi crescendo e eu via que ele não desenvolvia verbalmente, não respondia quando chamado pelo nome, não tinha contato visual e continuava a não reagir a estímulos variados”, relembra.

O Espectro Autista é um transtorno do neurodesenvolvimento. A principal característica são déficits na comunicação e interação social. No caso do Alexandre, os sintomas foram percebidos quando começou a frequentar a creche. “Ele era muito quieto, não brincava. Então resolvemos procurar um neurologista no qual confirmou que possuía o Transtorno do Espectro Autista”, recorda o pai.

Ele conta que resistiram em aceitar o diagnóstico e procuraram uma segunda opinião. O resultado foi o mesmo. Desde então, o tratamento do menino inclui sessões de psicopedagogia, fonoaudiologia e terapia ocupacional. “O Alexandre vem evoluindo”, afirma.

Além de todo o investimento emocional dos pais, há muitas preocupações com os custos do tratamento. Leandro salienta que os cuidados são custeados pelo plano de saúde particular.

“Se eu tivesse que usar o SUS teria que esperar entre três a quatro meses por uma consulta, atrasando a progressão do meu filho”.

Psicopedagoga explica questões da educação e inclusão

Material adaptado — Atualmente, Alexandre está na primeira série do Colégio Ulbra São João. Ao iniciar o ciclo educativo, os pais ficaram com receio da forma de aprendizagem que seria utilizada pela escola.

“O material dele tem que ser adaptado, igual ao que utiliza nas terapias. Ele não pega em lápis, não escreve. Fica agitado se ficar muito tempo sentado”, conta o pai.

O casal relata que o trabalho realizado com o filho é em conjunto. Nesse esfera encontram-se a família, a escola e os especialistas. “É uma troca essencial. A gente tenta colaborar ao máximo com a escola, para a escola colaborar com a gente”, conta o pai.

Colégio Ulbra São João, em Canoas. Foto: Naira Nunes

Leandro e Gislaine elogiam os esforços da escola para incluir o Alexandre. “Não teve nenhuma forma de preconceito, sempre tratando de uma forma otimista e nos dando feedback diário de tudo que acontece com ele. É uma relação muito próxima com o corpo docente e a família, para a gente tentar ajustar em conjunto o que é melhor para ele”, diz a mãe.

Com orgulho da caminhada do filho no ambiente escolar, o pai conta que ele está desde um ano e meio de idade na creche e nunca teve problemas.

“O Alexandre é muito carinhoso, gosta de ouvir história, música, gosta de assistir desenho. Ele não é muito do contato físico com os colegas, pois não dialoga, mas brinca normalmente como qualquer criança. Ele fala palavras, se comunica de forma objetiva”.

Segundo ele, o filho conhece as letras, os números, os animais e as frutas, só não escreve. “O foco principal é o material pedagógico. E as professoras estão se adaptando para atendê-lo”, ressalta.

Integração, sempre um desafio — Apesar da maior presença de crianças e adolescentes com TEA na escola, os desafios persistem, principalmente, quanto à formação de professores e materiais pedagógicos alternativos para uso em sala de aula. Um dos maiores obstáculos da atualidade, é promover uma educação inclusiva, assegurando um trabalho educativo organizado e adaptado para atender as necessidades dos alunos.

Escola se empenha para garantir a acessibilidade dos alunos. Foto: Naira Nunes

O Colégio Ulbra São João, escola privada localizada no bairro Mathias Velho, em Canoas, atua na aprendizagem do ensino infantil ao médio. Atualmente, atende seis crianças e adolescentes autistas. A coordenadora e orientadora, Sabrina Borba, afirma que não há distinção entre os alunos típicos e os com TEA. Todos integram a mesma sala e convivem juntos, até mesmo no intervalo. “É importante essa integração com o outro”, diz.

No vídeo abaixo, a coordenadora Sabrina Borba e a professora de matemática Cláudia Hendres, relatam como é feito o processo de inclusão de alunos diagnosticados com TEA na escola.

Número de crianças autistas matriculadas na escola triplica em dois anos

Segundo o último censo escolar, no Brasil, 294.394 alunos com autismo cursaram os ensinos infantil, fundamental ou médio, da rede pública e privada em 2021. A alta é de 280% se comparada a 2017, quando havia 77.102 alunos com TEA em sala de aula. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), hoje essa condição atinge 2 milhões de pessoas só no Brasil. No último dia 2 de abril foi comemorado o Dia Mundial da Conscientização do Autismo. A data representa a luta em busca de inclusão e respeito às crianças e adultos que possuem o Transtorno do Espectro Autista (TEA).

A psiquiatra infantil Lisiane Motta explica as formas como o transtorno aparece.

“Ele é caracterizado por falhas na interação social e na comunicação. Além de um padrão rígido e repetitivo de interesses e comportamentos”.

Segundo o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM-5, os sintomas aparecem desde o início da infância e limitam ou prejudicam o funcionamento diário. Ainda, o estágio em que o prejuízo funcional fica evidente irá variar de acordo com características do indivíduo e seu ambiente.

“É aquela criança que já não aponta quando pequena, que usa o adulto e leva pela mão para instrumentalizar e mostrar o que deseja”, explica a psiquiatra. Além de atrasos na fala, surgem dificuldades em relação a comunicação não verbal.

“Aquela criança que não triangula o olhar, que não traz um brinquedo para mostrar para mãe e pro pai. Não divide o que é do seu interesse e não se interessa pelo que é do interesse do outro”.

Segundo o DSM-5, em relação à reciprocidade sócio emocional, as crianças pequenas podem apresentar pequena ou nenhuma capacidade de iniciar interações sociais e de compartilhar emoções. Se houver linguagem, costuma ser unilateral, sem reciprocidade social, usada mais para solicitar ou rotular do que para comentar, compartilhar sentimentos ou conversar.

O manual também fala que as manifestações do transtorno dependem da gravidade da condição autista, do nível de desenvolvimento e da idade cronológica; daí o uso do termo espectro. O TEA engloba transtornos antes chamados de autismo infantil precoce, autismo infantil, autismo de Kanner, autismo de alto funcionamento, autismo atípico, transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação, transtorno desintegrativo da infância e transtorno de Asperger.

Segundo Lisiane Motta as condições de tratamento , ambiente e desenvolvimento infantil vão determinar a gravidade do espectro. A gravidade ainda pode variar de acordo com o contexto ou oscilar com o tempo.

“Se essa criança não tiver uma estimulação para que ela consiga acompanhar o desenvolvimento, esses déficits vão ficando cada vez maiores”.

Fonte: DSM-5. Infográfico por Giovanna Cerveira

Conheça o Centro de Referência no Transtorno do Espectro Autista de Canoas

O Centro de Referência no Transtorno do Espectro Autista (CERTEA) inaugurou em novembro de 2019, na cidade de Canoas/RS. A unidade serve de apoio para crianças e famílias que convivem com o distúrbio. O centro conta com especialistas como neurologistas, psicólogos, fonoaudiólogos, assistente social, pedagogos, psicopedagogos, psicomotricista, assistente social e terapeuta ocupacional. Esses profissionais acompanham pessoas com autismo e contribuem para que as famílias tenham melhores condições de conviver com o paciente.

Segundo Hildegard Godinho, diretora de Políticas e Ações em Saúde Mental da Secretaria da Saúde, de janeiro de 2021 a abril de 2021 foram feitos 1.031 atendimentos. Neste ano, no mesmo período, foram 1.348 crianças e adolescentes assistidos.

“Hoje atendemos 577 crianças e suas famílias e fazemos 32 acolhimentos novos a cada mês”, diz ela.

O fluxo de atendimento inicia na Unidade Básica de Saúde (UBS) de referência do paciente. Quando o médico da UBS suspeita da presença da doença, encaminha a criança ou adolescente para o centro de referência. No local, o paciente passa por consultas com profissionais que farão o diagnóstico final.

Na rede municipal de escolas, segundo Godinho, as crianças e adolescentes são assistidas e contam com a discussão de casos entre as instituições. O atendimento em entidades conveniadas ao município também são feitas.

“Situações de crise podem ser atendidas no Caps IJ Arco Íris, sem agendamento, e contam também com atendimentos no Ceia, serviço próprio da educação”, salienta.

O CERTEA fica na rua Araçá, 74, no centro da cidade. Durante a pandemia, a prefeitura também criou um canal de whatsapp, que recebe denúncias de violação de direitos, informações sobre questionamentos sobre inclusão. O telefone para contato é (51) 3199–1762.

Entidade de pais autistas reclama da rede de apoio de Canoas

A Associação Canoense Autismo Unidos pelo Amor (ACAA) foi fundada por Djuli Rosa em 2018. Ela é mãe de dois filhos, sendo um deles autista severo. O filho de Djuli, hoje com 16 anos, teve seu pré-diagnóstico com um ano e dois meses de idade. Desde o nascimento, ele apresentou dificuldades, até mesmo para se alimentar, tendo que fazer o uso da sonda. O laudo oficial veio com quatro anos de idade, apontando algumas comorbidades (ocorrência de duas ou mais doenças relacionadas na mesma pessoa) associadas como retardo mental, esquizofrenia, alienação mental, bipolaridade e distúrbio do sono.

“Veron foi, e é, o motivo da minha inspiração e transformação”, conta Djuli.

A ACAA nasceu em julho de 2018, com a iniciativa de Djuli e seu marido. No projeto, são feitos trabalhos de conscientização e parcerias para palestras. Além de promoverem atividades para arrecadação de itens como alimentos, roupas, brinquedos e suas distribuições. Também acontecem eventos especiais, como no Dia da Conscientização do Autismo.

“Fomos convidando outras famílias que passam e têm o mesmo sentimento que nós em relação aos filhos com autismo”, conta.

Recentemente, também foi criado um grupo de apoio chamado “Mãe Amiga”. Nele, as mulheres buscam apoio e orientação diante dos obstáculos enfrentados com os filhos. No espaço, elas falam sobre as dificuldades relacionadas à falta de período integral e atendimento adequado das escolas do município. Reclamam também da falta de neurologistas, medicamentos e transporte adaptado na cidade.

“Os atendimentos realizados pelo CERTEA, hoje, é uma das maiores queixas. Por ser um atendimento a cada dois meses, ele acaba por prejudicar o desenvolvimento e desempenho da criança, pela falta de rotina e vínculo”, aponta.

A presidente fala sobre falhas de fiscalização em vagas preferenciais para pessoas com deficiência e nos atendimentos prioritários em órgãos públicos e privados. Na legislação, a Lei Berenice Piana 12.764/2012, artigo um e dois, garante que os diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista são pessoas com deficiência e devem ocupar seus direitos como tal.

O ACAA conta com o auxílio de dois advogados voluntários. Eles prestam serviços e fazem encaminhamentos conforme a necessidade de cada família. Possuem também a parceria com as farmácias solidárias, que através de receitas liberam medicações para doar para os grupos familiares.

Além disso, em cooperação com a Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para PCD e PCAH no RS (FADERS), as famílias podem emitir a carteira de identificação da pessoa com TEA. “Fazemos parte da Rede Gaúcha Pró — Autismo (RGPA), que são hoje, mais de 30 associações do RS trabalhando juntos em prol da causa autista”.

Após relatos e queixas da Associação Canoense Autismo Unidos pelo Amor (ACAA), sobre o atendimento do CERTEA, entramos em contato novamente com a entidade. Em nota, a entidade enviou a seguinte resposta:

“No momento que a criança e a família são acolhidos no CERTEA é elaborado um PTS — Plano Terapêutico Singular, para cada caso de acordo com as necessidades de cada criança. Sempre primando pela qualidade do atendimento e o bom desenvolvimento da criança, assim, necessitamos saber quem está aguardando atendimento para verificarmos o motivo do atendimento ser a cada dois meses. Para que assim possamos entender e promover ajustes em nosso trabalho”.

Legislação garante os direitos dos autistas

Sancionada em 8 de janeiro de 2020, a Lei 13.977, conhecida como Lei Romeo Mion cria a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea). A legislação é uma resposta à impossibilidade de identificar o autismo visualmente. Frequentemente, essa situação gera obstáculos ao acesso à atendimentos prioritários e a serviços aos quais os autistas têm direito como, por exemplo, estacionar em uma vaga para pessoas com deficiência. O documento é emitido de forma gratuita por órgãos estaduais e municipais.

A Lei Berenice Piana (12.764/12) criou a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, que determina o direito dos autistas a um diagnóstico precoce, tratamento, terapias e medicamentos pelo Sistema Único de Saúde. Além disso, garante o acesso à educação e à proteção social, ao trabalho e a serviços que propiciem a igualdade de oportunidades. Esta lei também estipula que a pessoa com Transtorno do Espectro Autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais.

Infográfico: Giovanna Cerveira

De autista para autista: Advogado com TEA é referência na defesa dos direitos da comunidade

Romeu Sá Barreto é advogado e militante na Defesa dos Direitos dos Autistas e demais deficiências, sendo um dos ativistas mais atuantes em prol das causas. Ele que foi diagnosticado com TEA somente aos 42 anos e possui um filha de 3 anos também autista. Ela é sua maior inspiração na luta em prol de todos os autistas do Brasil. O profissional é pós graduado em Direito e Processo do Trabalho e pós-graduando em Direito Constitucional. O bacharel também é Co-autor do Projeto de Lei nº 3.768/2020, junto ao Dep. Federal Otto Alencar Filho.

Romeu Sá Barreto — Arquivo internet

No seu município, Costa Azul/Salvador, também contribuiu na regulamentação da redução de jornada de trabalho para pais de crianças com deficiências. Colocou seus conhecimentos em prática ao criar o Instagram @advogadosautistas e ainda na idealização do curso Direito dos Autistas de A a Z Online. Romeu também promove palestras abordando a temática.

Confira a entrevista completa:

Qual o trabalho desenvolvido na causa dos direitos de pessoas com TEA?

Romeu: Temos (Romeu e Simone Macedo) uma filha autista com oito anos de idade, chamada Maria Clara. Recebemos o diagnóstico dela aos três anos de idade. Consegui superar o “luto” e transformá-lo em luta em apenas dois dias. Essa transformação fez-me mergulhar na causa autista de corpo e alma. Primeiro, com os estudos jurídicos sobre os direitos dos autistas e demais pessoas com deficiência. Depois, nos estudos multidisciplinares. Hoje, todo esse ativismo resultou em dois livros em coautoria, sendo eles, coautores de projetos de leis federais e municipais. Criamos o único curso do Brasil sobre Direito dos Autistas (Direito dos Autistas de A a Z), realizamos palestras sobre direito dos autistas e já contamos com uma atuação advocatícia em todo Brasil. Atuamos com um trabalho social de atendimento jurídico gratuito para autistas carentes.

Como surgiu o perfil do Instagram Advogados Autistas? Quantos seguidores na atualidade?

Romeu: O perfil surgiu com a necessidade de dar mais visibilidade a causa autista, a luta pelos direitos e empoderamento dos pais e das pessoas com autismo. Fazemos publicações sobre Direito dos Autistas e a causa todo dia e já alcançamos a marca de 26.968 seguidores no perfil @advogadodosautistas.

Houve algum projeto de lei apresentado na Câmara dos Deputados? Qual?

Romeu: Em coautoria com o Deputado Federal, Otto Alencar Filho, apresentamos o projeto de Lei — PL 3768/2022, cujo objeto é a cobertura integral do tratamento terapêutico das pessoas com transtorno do espectro autista pelos planos de saúde. Nosso projeto já conta com 138.479 assinaturas, como pode ser verificado no Abaixo-assinado.

O que move o trabalho de vocês?

Romeu: Inicialmente, tudo começa com o amor incondicional por nossos filhos e filhas autistas, depois vem os estudos, o ativismo e as realizações com o objetivo de lutar por um Brasil melhor para todos(as) autistas e demais pessoas com deficiência.

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