A formação do Antigo Testamento
Um breve relato sobre a formação do texto da antiga aliança.
Para entender melhor o que Bíblia nos diz, não basta saber seu conteúdo. Maria Paula Rodrigues em Palavra de Deus, Palavra da gente.
Quando abrimos nossa Bíblia no Antigo Testamento, estamos abrindo um conjunto de textos que não pertence a nós mesmos. Eles foram escritos a milhares de anos atrás, algum deles fruto de uma tradição oral de séculos. Não podemos simplesmente abrir o texto do Antigo Testamento e ler como se para nós fora escrito, pois não o foi. Também não podemos ignorar a mensagem que carrega tanta sabedoria e orientação para a nossa vida.
Sendo um livro que não nos pertence, precisamos olhar para a sua história para compreender sua formação. Os autores do Novo Testamento fizeram referência ao Antigo Testamento, chamando-o de Escritura, Lei, Lei e Profetas, Moisés e Profetas e, por fim, Moisés, os Profetas e Salmos. Esta divisão é mantida e, já por volta de 130d.C., se encontra a sigla TNK para fazer referência ao Antigo Testamento. TNK que vem a ser
- Torá: os cinco primeiros livros da Bíblia
- Nebiim: os profetas, incluso os históricos
- Ketunim, escrituras restantes, como Salmos, Jó e outros.
No entanto, a Septuaginta faz uso de outra divisão, que é a mais difundida em nosso meio, por conta de ter sido usada pela Vulgata, tradução para o latim.
- Lei: os cinco primeiros livros
- Históricos: Josué, Juízes, Rute, Samuel, Reis, Crônicas, Esdras, Neemias, Macabeus e outros
- Poéticos: Salmos, Provérbios, Cantares, Jó, Eclesiastes
- Proféticos: os doze, Isaías, Jeremias, Lamentações e Ezequiel
As Escrituras do Antigo Testamento surgem, primordialmente, em torno do Pentateuco. Os textos da Lei assumiram sua forma atual por volta do século V e IV a.C. Sabemos que os samaritanos, que se separaram da comunidade de Jerusalém aos poucos, e em definitivo na era helenística, reconheciam e mantinham somente a Torá como autoridade. É em torno deste núcleo que o Antigo Testamento vai ganhando forma. Aos escritos da Torá são acrescidos os relatos proféticos, como necessidade de contar a história dos reis e o trabalho dos profetas. Ao final, os livros de cânticos e salmos, bem como os de sabedoria, são acrescentados, finalizando assim o cânon. Quando? Não o sabemos. Precisamos compreender que a construção histórica do que conhecemos como Antigo Testamento foi um processo não linear, cheio de influências de diversas comunidades judaicas e, posteriormente, dos cristãos. Assim, compreendemos que o Antigo Testamento contendo os livros da lista da Confissão de Fé de Westminster nos é legado como fruto do trabalho de pesquisa e estudo dos cristãos, de maneira particular os Reformados. Vamos nos deter, no presente texto, à formação do núcleo, o Pentateuco e vamos falar também dos manuscritos de Qumrã. Posteriormente falaremos dos gêneros literários existentes na Bíblia como um todo.
O Pentateuco
O Pentateuco é o conjunto dos livros de Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Conhecido como Torá e Livros das Leis, o Pentateuco é uma colcha de retalhos de histórias que foi sendo tecida ao longo dos séculos pelas tradições orais e escritas. Os rolos da Lei são os escritos mais antigos, e os que mais são citados no próprio Antigo Testamento foram finalizados, em sua redação, bem posteriormente aos fatos ali relatados. É do encontro de duas tradições e quatro fontes primárias que vai surgir o texto da Torá.
Durante o século XVIII, Henning Bernhard Witter, pastor de Hildesheim, na Baixa Saxônia, foi o primeiro a notar a alternância entre o nome Deus Elohim e Javé. Na antiguidade há registros eventuais, no entanto, Witter chamou a atenção para tal, mostrando que Gênesis 1 tinha uma fonte própria, publicando seu estudo em 1711. No entanto, somente em 1753 Jean Astruc, médico particular de Luís XV, dividiu todo o Gênesis em dois fios narrativos, com base no nome de Deus. Posteriormente, uma terceira linha narrativa foi descoberta, sendo duas usando o nome de Elohim e uma Javé. Mais posteriormente, na pesquisa bíblica, fechou-se com quatro fontes de composição do Pentateuco:
- Javista, de 950 a.C.
- Eloísta, de 800 a.C.
- Deuteronomista, do século VII a.C.
- Escrito Sacerdotal, de 550 a.C.
A esta altura você deve estar se perguntando: e Moisés? Pois é, a tradição, e o próprio Antigo Testamento referenciam Moisés como autor de apenas uma parte da Torá. Olhar para todas as fontes de composição do texto, de como a tradição oral legou o texto e como os revisores finalizaram o texto nos fazem compreender que Moisés não pode ser autor de todo a Torá. Há diferenças de estilo de redação e vocabulário que mostram que há mais de um autor dos textos. Tudo isso não desmerece Moisés, personagem mais marcante dos relatos da Lei e símbolo maior de uma geração de hebreus e judeus. É preciso sempre salientar que a maneira como o texto bíblico foi escrito e finalizado é a prova incontestável da ação de Deus no relacionamento com seu povo, nos legando uma coletânea de textos que revelam como o Pai agiu ao longo da história com o seu povo.
Os manuscritos de Qumrã
Por volta de 1947, um jovem beduíno conduzindo um rebanho, encontrou numa gruta perto de Qumrã vários rolos manuscritos de couro. Após muitas voltas, estes rolos foram parar nas mãos de comerciantes e de lá para as mãos de pesquisadores israelenses. Logo de cara ficou claro serem textos antigos. Entre 1951 e 1958 ocorreram várias expedições científicas na região, percorrendo um total de onze cavernas e encontrando cerca de 900 manuscritos em diversas condições de preservação. A diferença no estado de conservação se dá pela base em que foram escritos, couro ou papel, local de armazenamento e recipiente em que foram guardados, potes ou sacos de papel. Foram encontrados textos em hebraico, aramaico e grego, datados entre o século II a.C. até o século I d.C. há trechos de praticamente todos os livros do Antigo Testamento. Os textos apresentam uma semelhança textual muito próxima com a base mais antiga até então, a dos massoretas. Os massoretas eram um grupo de judeus separados para se dedicarem a preservação e cópia dos textos sagrados do judaísmo. O fato de as formas textuais serem semelhantes em alguns textos nos revelam a meticulosidade do trabalho dos massoretas. Outros textos estão mais próximos da forma textual da Septuaginta. Há ainda os que se assemelham aos modelos samaritanos e uma parte que não foram encontradas semelhanças em nenhum modelo. Não é possível, passados mais de setenta anos da descoberta, chegar a uma conclusão sobre todo o conteúdo. Há muito a ser estudado e discutido sobre os conteúdos. Até o presente momento não há motivo para alarde, pelo contrário, há muita empolgação e expectativas em relação ao que se tem descoberto nos manuscritos e como tais descobertas tem mudado nossa perspectiva de compreensão do texto do Antigo Testamento.
Conclusão
Ao encerrar este breve panorama da formação do texto do Antigo Testamento, é preciso pontuar que não abordamos a formação dos demais textos por uma questão de tempo. No quando do estudo, livro a livro, voltaremos a formação deles. O Antigo Testamento constituí um grande acervo de conhecimento para nós. Se não podemos olhar a totalidade de seu conteúdo como historicidade no sentido científico da palavra, podemos olhar para ele como o registro do relacionamento de um povo com o seu Deus e como este relacionamento construiu a cultura e história que foi legada a nós, cristãos.
Índice das aulas
O índice é atualizado no artigo da primeira lição.
O presente texto foi escrito para a aula da Academia Bíblica da Igreja Presbiteriana Independente de Tucuruvi, São Paulo, SP, escrito em 14 de agosto de 2019