Dos patriarcas ao Egito
Como a história de uma família e de uma nação deram início a Israel
A história patriarcal contida em Gênesis 12–50 é essencialmente uma história de família, apenas três gerações, no espaço de três séculos!
(Luca Mazzinghi)[1]
A história de um povo, de uma nação, não começa grandiosa nem tão pouco de maneira mágica. A história de um povo começa no que há de simples e desapercebido, não ordinário no meio de tanta coisa ao redor. Quando contamos a história de nossa nação ou família, geralmente, gostamos de exaltar seus feitos e suas conquistas. Não é o que acontece nos relatos de Gênesis 12–50. Há vitórias, mas há também o lado nebuloso que ninguém gosta de relatar. Uma história que você pode ler em sua Bíblia. Hoje vamos olhar mais para os contextos que envolvem esta história.
Os Patriarcas
A história de Israel começa no chamado de um homem que habitava a região de Ur dos Caldeus. A cidade localizada próxima a foz do rio Eufrates, região sul do atual Iraque, foi o ponto de partida da história do povo de Israel. É dali que Abrão segue para Harã, ao norte e depois vai para a região da Palestina.
Quando isto ocorreu? As datas variam, mas a mais aceita é que tenha ocorrido entre 1.900 a.C. a 1.550 a.C., na chamada idade do bronze. Nesta época havia três grandes impérios que permitiam que pequenas cidades-estados existissem na região da Palestina: o Egito, a Babilônia e os Hititas. A Palestina, neste período, era ocupada pelo povo Cananeu e que seria, posteriormente, tirado de lá pelos hebreus. Os cananeus eram um povo primordialmente assentado, no sentido de não possuírem grandes rebanhos e terem na agricultura sua principal fonte de subsistência. Já os patriarcas eram pastores, possuíam grandes rebanhos. Abraão se tornou tão próspero que ele seu sobrinho se dividiu para dar conta de tudo o que tinham.
Quando olhamos para os registros históricos da época é natural não encontrarmos nenhuma menção aos patriarcas, afinal, o que seria uma família de pastores nômades em comparação a um povo inteiro? Alguns historiadores levantam a hipótese de os patriarcas fazerem parte dos registros egípcios dos Hapirus, nômades e fora da lei que entraram no Egito naquela época. Se os patriarcas não constam dos registros históricos, os registros bíblicos apontam para práticas bastante comuns à época. Possuíam concubinas, adotavam filhos que tinham com suas escravas e cumpriam a lei do levirato.
Por três gerações os patriarcas desenvolveram uma relação familiar com Deus. O Deus de Abraão. O Deus de Abraão e Isaque. O Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Assim era chamado Deus por eles, o divino que chamou Abrão, mudou-lhe o nome e o fez pai de uma grande nação. Mas não ainda, ainda eram uma grande família, e por isso mesmo a relação deles com Deus era mais pautada pela ética que pelo culto. Eles não têm um nome para Deus, embora se refiram a ele por El e o tratam frequentemente associado a um adjetivo: El Shadday, Deus Todo-Poderoso. O interessante é saber que El é também o nome que os Cananeus possuem um deus que se chama El e que ele é o chefe dos deuses. Provavelmente, na falta de um nome para se referir, os patriarcas assumem El Shadday como o nome daquele que, não muito mais tarde, viria a ser Javé.
Antes de chegarmos ao Egito, encerrando assim esta primeira parte sobre os patriarcas, é importante destacar que o caminho percorrido de Harã para a Palestina é o mesmo caminho percorrido pelo povo, séculos mais tarde, na volta do exílio na Babilônia. Isto pode apontar para uma redação tardia do texto a respeito de Abraão, algo no qual não se tem consenso.
A história dos patriarcas se encerra com uma passagem que faz a ligação entre eles e o Egito. Estamos falando de José, filho de Jacó e Raquel, cuja história você pode ler no final de Gênesis. José era o administrador geral, grão-vizir, do Egito. Pode parecer estranho um estrangeiro num posto tão alto na hierarquia, mas no Egito do segundo milênio antes de Cristo isto era bem possível.
O Egito
Se há um personagem marcante no relato do pentateuco, este personagem não é uma pessoa, mas sim um povo, uma nação. Estou falando do Egito, um dos povos mais estudados e cuja história e sabedoria se estende pelos milênios. Já no início da história de Israel, Abraão vai para o Egito, o que nos mostra que, entre idas e vindas, os egípcios ora são a salvação, ora são a ruína do povo de Israel.
Fontes históricas atestam que no Egito houve entrada de pastores vindos do Oriente Médio. Muito provavelmente é o povo hebreu, Jacó e sua família vindo por conta da fome que assolava o mundo. É neste contexto que eles ficam no Egito como um povo imigrante e que, posteriormente, é usado como mão de obra nas construções das cidades de Pitom e Ramsés. Aqui há uma dificuldade em se precisar quando foi que isto ocorreu. Qual faraó estava no poder? Seria a dinastia de Seti I ou a de Ramsés II? Não sabemos precisar, embora Ramsés seja o mais conhecido deles. Independente de qual período seja, em ambos há o relato de trabalhos forçados na construção das cidades egípcias, inclusive há documentos que mostram que havia uma porção diária de comida destinada aos trabalhadores.
É em meio a este contexto em que José é passado e o trabalho forçado é presente, que surge na narrativa a figura-chave do Pentateuco. Moisés foi o homem que tirou o povo da escravidão do Egito, fundou o javismo, foi mediador entre Deus e o povo, a ele revelado o nome de Deus — Javé — e ele recebeu das mãos de Deus a Lei, a Torá. Embora proporcionalmente pouco citado na Bíblia Hebraica, fora do Pentateuco, Moisés é a pessoa que surge como aquela que vai cumprir a promessa feita a Abraão: chegar a Canaã, o que veremos em outro artigo.
Conclusão
Toda a narrativa de Gênesis 12–50 foi escrita ao longo dos séculos e ganhou seu texto final pós o exílio na Babilônia. Quando lemos nesta perspectiva o relato dos Patriarcas, percebemos que houve um grande esforço em mostrar ao povo de Israel que eles não eram fruto do acaso, mas sim do mover de Deus na história, começando por uma família nômade na região da Palestina que, em sua quarta geração, ocupou o posto imediatamente abaixo do Faraó. Esta família deu origem a um povo, o povo hebreu, que posteriormente estaria escravo e seria libertado da maior potência regional da época. Mas isto é assunto para outra conversa.
[1] MAZZINGHI, Luca. História de Israel: das origens ao período romano. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 2017
O presente texto foi escrito para a aula da Academia Bíblica da Igreja Presbiteriana Independente de Tucuruvi, São Paulo, SP, escrito em 18 de setembro de 2019
Índice das aulas
O índice é atualizado no artigo da primeira lição.