Entrando em Canaã

Josué e Juízes relatam duas histórias diferentes. Quem tem razão?

Giovanni Alecrim
De casa em casa
7 min readOct 2, 2019

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Israel foi aniquilado, não resta sequer semente (Estela do Faraó Merneptah, Museu do Cairo)[1]

Estela do Faraó Merneptah, Museu do Cairo

É datado de 1220 a.C. a primeira referência extra-bíblica ao povo de Israel, na estela do Faraó Merneptah, hoje exposta no Museu Egípcio do Cairo. Os estudos recentes atestam que as estelas eram muito mais propagandas que informes reais, todavia, é importante para nós tal registro e, mais importante ainda o fato de “Israel” vir precedido de um determinativo que não indica cidade, mas um grupo, sem um local estabelecido. Na Estela, Israel está citado ao lado das cidades-Estado da região de Canaã. A menção de Israel nos revela que sua presença ali era sentida e vista pelo Egito. Eles o consideraram exterminados, mas bem sabemos que não é fato. Não podemos precisar se a Estela de Merneptah faz referência ao Israel escravo no Egito ou Israel já em Canaã. A dúvida permanece, pois, como dissemos, Israel foi citado ao lado das cidades-Estado da região. No encontro de hoje falaremos sobre como Israel chega a Canaã e lá se estabelece, encerrando assim o bloco pré-monarquia da história.

Conquistando Canaã: dois relatos, duas histórias?

Quando falamos da conquista de Canaã somos automaticamente levados ao livro de Josué. Nele é narrada a entrada na terra prometida, cruzando o Jordão a seco e, numa jornada militar, com a unidade das doze tribos e liderança de Josué, derrubou-se muralhas, conquistou-se cidades e assentou-se as tribos em cada uma das regiões. Uma conquista militar bem-sucedida. No entanto, quando lemos a respeito da entrada em Canaã pela perspectiva do livro dos Juízes, o que temos são as tribos agindo individualmente, uma serie de populações locais não foram expulsas, mas assimiladas e as conquistas se restringiram a algumas zonas pouco povoadas e as cidades-Estado mais fortes teriam ficado intactas, vide Juízes 1.19:

O Senhor estava com a tribo de Judá. Ela tomou posse da região montanhosa, mas não conseguiu expulsar os habitantes da planície, pois eles tinham carros de guerra com rodas de ferro.

Se continuarmos a leitura, veremos no capítulo seguinte de Juízes a explicação de tal acontecimento: Israel não foi fiel, não ouviu a voz de Deus. Ainda em Juízes percebemos, na leitura do texto, que não havia essa coesão e unidade entre as Tribos. Débora cita apenas seis tribos em seu cântico. Benjamim é citada como inimiga. Gad, Manassés as tribos do Sul aparecem como autônomas em relação às demais. Temos então dois relatos diferentes que apresentam o mesmo fato: a instalação do povo em Canaã. Tais contrastes, de partida, já nos colocam diante da dificuldade de traçar um estudo histórico pertinente acerca de tal conquista. Ao menos quatro teorias são levantadas acerca da conquista de Canaã.

A primeira delas é a de que o relato de Josué o mais próximo da realidade. A conquista militar bem-sucedida, no entanto, esbarra nas evidências arqueológicas. Vamos encontrar, por exemplo, cidades listadas como conquistadas, mas que, naquele período já se encontravam desabitadas. Independentemente de como interpretemos, o fato é que o livro de Josué não se propõe a um relato histórico, mas sim teológico, desenvolvido com base nos versos iniciais, mostrando que a confiança em Javé deve ser sempre vivida e cultivada no meio do povo.

A segunda teoria propõe que Israel foi entrando gradual e pacificamente na fase inicial da conquista e que, posteriormente, teriam usado a força. Com isso, Israel seria, nas palavras de Lucca Mazzinghi “uma série de tribos seminômades que, no início da Idade do Ferro teriam se instalado … sobre as montanhas da região central, ou seja, nas regiões menos populosas”. Roland de Vaux, que liderou as pesquisas nos Manuscritos do Mar Morto, procurar alinhar tal teoria com a tese de assentamentos que foram gradativamente tomando terras e ganhando espaço, que acabam por desencadear os conflitos narrados em Juízes

A terceira teoria foi a tentativa da construção de uma interpretação sociológica por parte de G.E.Mendenhal e N.K. Gottwald, que propuseram algo completamente novo nas décadas de 1960 e 1970. Segundo eles, a origem de Israel se dá na junção de camponeses que já estavam em Canaã e se rebelaram contra a opressão das cidades-Estado, e sob influência de levitas vindo do Egito fundaram o culto a Javé. Com base na teoria de Mendenhal e Gottwald, nenhuma conquista ocorreu, pois Israel já estaria lá, como tribos espalhadas pelas áreas rurais.

A quarta e última teoria é um pouco mais ampla e vamos nos deter nela por mais tempo. No final da Idade do Bronze, entre 1400 e 1200 a.C. aproximadamente, a terra de Canaã era habitada por um povo de origem semita (descendentes de Sem), no caso, os próprios cananeus. Eles viviam em cidades-Estado e a região era controlada pelo Egito. No Médio Bronze, se estima que havia cerca de 140 mil pessoas vivendo em Canaã. Pouco tempo depois, no Bronze Tardio, estima-se entre 60 e 70 mil pessoas viviam por lá. O que temos aqui é um colapso do qual ainda não se sabe a causa. Cidades inteiras ficaram desertas: Betel, Debir, Meguido, apenas para citar algumas. Já se aproximando da Idade do Ferro, por volta de 1200 a.C., Canaã volta a experimentar um crescimento populacional. Cerca de 250 novas comunidades rurais se assentam nas regiões montanhosas, atestando a existência de uma comunidade organizada, não reunida em cidades-Estado, mas sim sobre bases étnicas e tribais, entre eles se identificam os israelitas. De onde vieram? Os assentamentos não revelam uma nova população. O modo de lidar com a terra, a cerâmica e a cultura são muito próximas dos cananeus. Isto nos revela que Israel não suplantou de imediato as populações cananeias, mas distinguiu-se delas principalmente pelo fator religioso. O que a quarta e última teoria propõe é que é provável que o relato de Juízes seja o mais próximo do que realmente aconteceu e que o relato de Josué seria um épico do que aconteceu.

Temos como fechar questão? Não. Há diversas contradições nelas. A consciência Bíblica de um Israel estrangeiro, a presença cananeia com identidade própria e próxima a de Israel, o surgimento de um monoteísmo muito diferente da religião cananeia, os dados da arqueologia, muitas vezes contraditórios entre si. Estas são apenas algumas das contradições que podemos apontar para mostrar o quão distantes nós estamos de entender a tomada da terra de Canaã pelos israelitas. A historiografia tende a preferir o relato de Juízes, com uma entrada gradual na terra prometida. Preciso aqui, mais uma vez, apontar para o fato a forma como lemos os relatos bíblicos vão influenciar na maneira como interpretamos os fatos: se lemos como uma crônica de fatos ou como o relato daquilo que Israel pensava teológica e politicamente sobre os eventos narrados.

Os juízes

“Naqueles dias, Israel não tinha rei”. Esta sentença aparece quatro vezes no livro de Juízes, todas elas após a história de Sansão, já no final do livro. O período dos Juízes não deve ser interpretado como de um governo jurídico, mas sim, no sentido de que o Juiz era alguém que exercia o poder que era conferido por Javé. Ao longo do relato não vemos muito laços entre as tribos. É constante a sentença “Os filhos de Israel fizeram o que era mau aos olhos de Javé, e ele os entregou nas mãos dos…”, o que revela que o Juiz era, em última análise, alguém levantado pelo Espírito do Senhor para conduzir o povo ao caminho bom diante de Javé. O livro se concentra em combater os cultos cananeus, muito mais que em prover um relato histórico.

Estruturalmente falando, a sociedade era composta pela “bet-’ab” — a casa do pai — que englobava o avô, os filhos e os netos, todos com as respectivas famílias, na qual se acrescentam os parentes próximos e os servos. Basicamente uma estrutura patriarcal. O conjunto de famílias, vinculadas entre si por algum grau de parentesco, formavam os clãs. Os clãs que viviam num determinado território formavam a tribo, uma entidade independente, ligada às demais tribos por um elemento único unificador, no caso de Israel, Javé. A presença das tribos de Israel em Canaã vai gerar uma série de conflitos que, com o tempo, causarão desgastes e levarão às doze tribos a se unirem no surgimento de uma monarquia.

Conclusão

A história acerca dos eventos narrados na Bíblia é cercada de imprecisões e situações que não conseguimos definir se de fato foi daquele jeito ou não. Para nossa fé, isto não pode fazer a menor diferença. Cremos, como cristãos, no agir de Deus na história, das mais diversas maneiras. Cremos ainda que a Bíblia é a nossa regra de fé e prática, portanto, contém os princípios teológicos e morais para a nossa vida. O que vimos hoje, foi que a própria Bíblia apresenta dois relatos diferentes para um mesmo fato. Isto a invalida? Não. Isto a torna menor? Também não. Isto apenas revela que nós estamos diante de um texto sagrado em sua inspiração e escrito por seres humanos, como nós. Deixamos juízes e agora entraremos na monarquia.

[1] MAZZINGHI, Luca. História de Israel: das origens ao período romano. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 2017

O presente texto foi escrito para a aula da Academia Bíblica da Igreja Presbiteriana Independente de Tucuruvi, São Paulo, SP, escrito em 01 de outubro de 2019

Índice das aulas

O índice é atualizado no artigo da primeira lição.

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Giovanni Alecrim
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