Monarquia: o povo pede um rei

Saul, o primeiro rei de Israel. É mesmo?

Giovanni Alecrim
De casa em casa
5 min readOct 10, 2019

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Mas os clãs não estavam mais à altura de desferir um golpe decisivo, indispensável para expulsar o invasor da terra. Muitos israelitas devem ter pensado que seu problema seria insolúvel se não encontrassem uma liderança mais forte. John Bright [1]

No final do livro de Juízes encontramos cerca de quatro vezes a expressão “neste tempo Israel não tinha um rei”. Parece que, com tal narração, o autor quer preparar o leitor para a transição para o período monárquico. Quando iniciamos a leitura de 1 Samuel, temos a história do sacerdote, consagrado desde menino, narrada antes da escolha de um rei. Conforme se lê e se compreende o que Samuel fazia, ficamos com a impressão que, além de sacerdote, Samuel exercia a função de juiz, o que fica bem explicito em 1 Samuel 7. 15–17:

Samuel continuou como juiz em Israel pelo resto de sua vida. A cada ano, viajava pelo território e julgava o povo de Israel em três locais: primeiro em Betel, depois em Gilgal e, por fim, em Mispá. Então voltava para sua casa em Ramá, de onde liderava Israel como juiz. Ali Samuel construiu um altar ao Senhor.

O que veremos hoje é como o povo chega ao ponto de pedir um rei ao sacerdote reconhecido como homem de Deus e líder nacional e também se podemos considerar Saul como um rei ou não.

O povo escolhe um rei

O que levou Israel a querer um rei? Os fatores são externos. Embora a construção do texto bíblico aponte para o fato dos filhos de Samuel serem juízes corruptos, a real motivação do pedido está no final vero 5 do capítulo 8: “Escolha um rei para nos julgar, como ocorre com todas as outras nações”. A pressão interna é resultado de uma pressão externa: os filisteus haviam roubado a arca da aliança e, após batalhas sucessivas, a arca voltara para o povo de Deus. Estabelecidos na faixa costeira, ao sul da atual Tel Aviv. Vindos da região do mar Egeu, eles se estabeleceram e ampliaram suas fronteiras. A superioridade bélica dos filisteus é atestada pelo simples fato deles dominarem a arte de moldar o ferro, produzindo armas mais eficazes que as de bronze, que eram as mais comuns. A superioridade filisteia no primeiro período da monarquia é somada ao desejo de expansão de seus territórios.

Mas como o domínio bélico dos filisteus levou o povo a pedir um rei? A história começa na derrota militar narrada em 1 Samuel 4, quando Israel perde a batalha em Afec, uma verdadeira tragédia nacional, visto que foi nessa batalha que a Arca da Aliança foi tomada. Um período de grande dificuldade, onde a figura de um juiz nacional não conseguia impor o respeito e a imagem de uma nação devidamente estruturada. Neste período de extrema dificuldade da nação, os anciãos olham ao redor e falta algo que os filisteus, e outras nações, possuem: um rei. É nesse contexto que surge Saul, um rei sobre o qual não sabemos muito além do que está narrado em 1 Samuel 10.

Saul: um rei?

As poucas informações sobre Saul se devem ao fato de seu reinado não ter durado nem dois anos. O que nos coloca diante de um questionamento: é possível considerar Saul como rei de fato de Israel? O questionamento tem fundamento não apenas pelo curto período em que ele ficou no trono, mas principalmente pelo fato de que não existia uma capital, um governo, um exército profissional e nem mesmo qualquer organização estatal mínima. Soma-se a isso o fato de o Reino ser uma pequena região montanhosa entre a Judeia e Samaria. Seu reinado curto pode ser considerado a expressão da insatisfação de Samuel ante o pedido do povo de ter um Rei. O povo pediu um rei e o profeta teve que ceder, pelo menos é o que a redação nos leva a crer. O motivo da rejeição de Saul é expresso no capítulo 15: ele se recusa a reconhecer Samuel como profeta e a Deus como autoridade maior sobre Israel. Os relatos dos conflitos pessoais de Saul, sempre atormentado e revelando uma personalidade difícil, nos levam a conclusão de que sua história é narrada dessa forma para colocá-la em contraste com a história de outro rei, seu sucessor, Davi. Aqui, Jan Alberto Soggin, biblista italiano nos ajuda a compreender melhor:

Mas tudo isso não é historiografia, é romance histórico, tragédia literária. O pouco que é historicamente aceitável mostra um Saul bastante diferente: o comandante que, em poucas e bem conduzidas operações militares, parece ter conseguido expulsar em primeiro lugar a ameaça amonita a leste, e depois libertar a planície da ocupação filisteia e neutralizar as populações inimigas ali residentes.[2]

A oposição entre Saul é Davi é clara e didática, serve como contraste entre o rei escolhido pelo capricho do povo e o rei escolhido por Deus.

Conclusão

A história da escolha de um rei pelo povo de Israel é o retrato de como um povo que estava em formação resolve é influenciado pelo seu tempo. Não bastava apenas ter um rei, era preciso que este rei fosse forte o suficiente para agregar pessoas ao seu redor e unificar as tribos. Lembremos que a estrutura tribal de Israel consolidava, até então, o colegiado de anciãos que regiam suas respectivas casas, clãs e tribos. A junção de todos em torno de um rei único parecia ser algo impossível, mas se tornou necessária diante da realidade vivida na palestina: uma região de passagem e em constante conflito com invasores. É neste cenário que a ascensão e declínio de Saul acontece de maneira meteórica e surge, então, aquele que uniria Israel e consolidaria as instituições de governo: Davi.

[1] BRIGHT, John. História de Israel. Edições Paulinas. São Paulo, SP, 1978

[2] Citado por MAZZINGHI, Luca. História de Israel: das origens ao período romano. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 2017

O presente texto foi escrito para a aula da Academia Bíblica da Igreja Presbiteriana Independente de Tucuruvi, São Paulo, SP, escrito em 09 de outubro de 2019

Índice das aulas

O índice é atualizado no artigo da primeira lição.

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Giovanni Alecrim
De casa em casa

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