Neemias e Esdras
Nasce o judaísmo e com ele a soberania dos sacerdotes
Depois do colapso das expectativas e esperanças ligadas a Zorobabel, estava claro - ou deveria estar - que não haveria nenhum restabelecimento da nação judaica de acordo com a ordem antiga, nem mesmo numa forma modificada [1]
Segundo a cronologia apresentada pelos textos bíblicos, Esdras, um judeu exilado na Babilônia, chega a Jerusalém como encarregado do Rei Artaxerxes I (Ed 7.7). Ele será acompanhado por Neemias, também encarregado do rei (Ne 2.1). Esdras é quem promove uma mudança profunda na vida social, política e religiosa dos judeus, mas não conseguiria executar sua missão se Jerusalém não estivesse praticamente já reconstruída, fato atribuído à liderança de Neemias. É preciso pontuar que tanto Neemias quanto Esdras fazem referência uns aos outros, no entanto, suas histórias acontecem em períodos diferentes, mesmo que entrelaçados.
Neemias
A abertura do livro de Neemias apresenta um relato da situação dos exilados que retornaram para Judá. Eles passavam por dificuldades e humilhações, além disso, a cidade estava sem muros que a protegessem e sem portas para fechar o acesso em caso de ataques. Duas notícias preocupantes, mas não temos mais detalhes sobre as mazelas enfrentadas em Jerusalém. O texto não nos dá muitos detalhes, mas podemos supor que havia um embate entre os que voltaram e os que lá estavam, além disso, os que voltaram podem ter sido parte da política internacional de Artaxerxes I, que ocupava assim a região além do Eufrates e fortalecia sua presença ante o Egito, o que nos leva a crer que a notícia que chega a Neemias foi enviada não como uma constatação de fatos, mas como uma reclamação dos que voltaram. A reconstrução do muro, liderada por Neemias, fortaleceria Judá e dificultaria qualquer tentativa egípcia de invasão. Judá gozava, nesse período, de certa autonomia. Sabemos disto por conta de moedas encontradas com a inscrição YHWD, Judá, que datam desse período, mostrando que havia autonomia financeira, o que distingue bastante de outras regiões dominadas pelos Persas.
É preciso compreender que Neemias atuou durante dois períodos diante de Judá. Na primeira vez governou a região e reconstruiu a cidade. Num segundo momento ajudou a reconstruir a sociedade e a religião em Jerusalém. No campo social Neemias está diante de uma situação de pobreza imensa. A dificuldades econômicas e as constantes fiscalizações faziam com que os que retornaram tivessem que vender suas propriedades e até mesmo seus filhos como escravos para dar conta de suas obrigações.
Ainda outros diziam: “Tomamos dinheiro emprestado para pagar os impostos do rei sobre nossos campos e vinhedos. Somos da mesma família que os ricos, e nossos filhos são iguais aos filhos deles. Contudo, somos obrigados a vender nossos filhos como escravos só para termos dinheiro suficiente para viver. Já vendemos algumas de nossas filhas, e não há nada que possamos fazer, pois nossos campos e vinhedos agora pertencem a outros”. Neemias 5.4–5
Durante os doze anos em que fui governador de Judá, do vigésimo ano ao trigésimo segundo ano do reinado do rei Artaxerxes, nem eu nem meus oficiais cobramos o tributo de alimentação ao qual tínhamos direito. Os governadores anteriores, no entanto, haviam colocado cargas pesadas sobre o povo; exigiam uma porção de alimento e de vinho, além de quarenta peças de prata. Até mesmo os oficiais deles se aproveitavam do povo. Mas, por temor a Deus, não agi dessa maneira. Neemias 5.14–15
Neemias combate esta situação obrigando os proprietários a restituírem as propriedades hipotecadas e libertar os israelitas vendidos como escravos, o que trouxe alívio e reduzindo o peso do sistema fiscal persa sobre eles.
Neemias promoveu uma reforma religiosa, executando uma profunda mudança no corpo de sacerdotes e levitas, que abusavam de seu poder. Ao que nos parece, Neemias procurou alinhar suas ações com as admoestações do livro do Profeta Malaquias, que aponta para o ofício sacerdotal como intérprete da lei, retirando deles a autoridade civil. Outra grande batalha enfrentada por Neemias foi restabelecer a observância do sábado, chegando a fechar as portas da cidade aos sábados como medida de ensino e forçando a observância da Lei.
Esdras
Esdras foi um sacerdote, conhecedor da Lei de Moisés, que foi enviado a Jerusalém em 398 a.C. liderando um novo grupo de exilados que retornam a mando de Artaxerxes II, que o envia, muito provavelmente como encarregado para as tarefas religiosas. Esdras promove a retomada de elementos resgatados por Neemias, como as leis relativas ao culto e a proibição dos casamentos mistos. No caso de Esdras, esta proibição parece ser mais radical e vão na direção de uma separação total dos estrangeiros. É preciso lembrar que tala proibição não deve ser entendida como xenofobia, mas antes, dentro do contexto em que Esdras se encontra, uma forma de preservação da identidade e religião do povo de Israel. Há claramente nesta decisão uma influência grande dos exilados que retornaram, preservando uma pureza religiosa e de seu povo. A questão aqui é definir quem é povo de Deus e quem não é, preocupação aparentemente mais dos exilados que retornaram que do povo que lá estava.
O aspecto mais importante da missão de Esdras é, sem dúvida, é o fato de que a Torah, a Lei mosaica, tenha se tornado definitivamente a lei que regulava toda a vida de Israel [2]
É desse período o decreto de Artaxerxes II que torna a Lei de Israel como lei oficial do povo e que se fosse desobedecida culminaria em prisão, exílio ou morte. Não sabemos se essa Lei a que se refere o texto de Esdras 7 é todo o Pentateuco ou se resume às leis ligadas ao templo. O que sabemos é que com frequência os reis persas demonstravam interesse frequente pelas legislações locais, chegando a reformá-las e adaptá-las. Seja qual for, o que sabemos é que nesse período o Pentateuco adquire sua forma final, graças à fusão de duas grandes tradições, a deuteronomista e a sacerdotal.
O nascimento do judaísmo
A reforma de Esdras conduz a uma realidade nova, o judaísmo. Nasce aqui uma comunidade sempre mais destacada dos outros povos e unida por fatores religiosos e raciais, sem unidade política necessariamente. A preocupação sacerdotal em manter Israel puro em relação aos povos. Diante da organização de um povo em torno dos sacerdotes, e não do palácio, Flávio Josefo, historiador do Século I d.C., usa o termo “teocracia” para definir a forma como Israel era regido, em contraste à democracia, oligarquia, aristocracia e monarquia, sistemas conhecidos da época. A questão é que Josefo talvez estivesse imbuído de sua natureza judaica, o mais provável é que tivéssemos uma hierocracia, um governo de sacerdotes, o que pode ser facilmente identificado pela figura do Conselho de Anciãos, que dará origem ao Senado Judeu, vindo a ser reconhecido por nós com o nome Sinédrio.
Por fim, a comunidade judaica que surge das reformas de Esdras e Neemias é uma comunidade unida pelos laços religiosos, muito menos que um Estado regido por princípios religiosos. Não há mais uma nação judaica, mas sim um povo reunido em torno de sua fé. A Lei é a expressão direta da vontade de Deus que rege todos os aspectos do cotidiano. A única forma de se entrar em contato com Deus é por meio do culto, centrando toda a relação com Deus na intermediação dos sacerdotes. É nesse período que começam a surgir os primeiros textos que culminariam mais tarde numa importante tradição apocalíptica. É ainda nesse período que a literatura sapiencial ganhará força.
Conclusão
O judaísmo nascido após as reformas de Neemias e Esdras não pode ser entendido apenas pelo viés de suas ações. Embora os sacerdotes tenha ganhado muita força nesse período, controlando rigidamente a sociedade, temos os Profetas e as Correntes Sapienciais traziam a contestação e o fôlego necessários diante de regimes rígidos. Há uma forte tendência ao legalismo, facilmente identificado pela observância irrestrita da Lei, mas tal prática não pode ser vista de maneira reducionista. Estamos diante de um povo que, após a catástrofe do exílio, precisa se reorganizar e encontrar uma via para preservar sua identidade nacional e religiosa.
[1] BRIGHT, John. História de Israel. Edições Paulinas. São Paulo, SP, 1978
[2] MAZZINGHI, Luca. História de Israel: das origens ao período romano. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 2017
O presente texto foi escrito para a aula da Academia Bíblica da Igreja Presbiteriana Independente de Tucuruvi, São Paulo, SP, escrito em 10 de março de 2020
Índice das aulas
O índice é atualizado no artigo da primeira lição.