Os que ficaram e os que foram

Giovanni Alecrim
De casa em casa
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4 min readFeb 16, 2020

A Judeia devastada, mas não deserta

A cidade que antes era cheia de gente agora está deserta. Antes era grande entre as nações, agora está sozinha, como uma viúva. Antes era rainha de toda a terra, agora é escrava. (Lamentações 1.1)

A maneira como o autor de Lamentações abre seu livro nos dá uma imagem clara do que aconteceu após a entrada de Nabucodonosor em Jerusalém. A destruição de Jerusalém deixou a cidade devastada, tal qual acontecera com Laquis e Arad, das quais temos evidências arqueológicas de total destruição. Não deve ter sido diferente na Capital de Judá.

Os que ficaram

Em seguida, Nebuzaradã, capitão da guarda, deportou o povo que havia ficado na cidade, os desertores que se entregaram ao rei da Babilônia e o restante da população. Permitiu, no entanto, que alguns dos mais pobres ficassem para cuidar das videiras e dos campos. (2Reis 25.11–12)

O relato de 2 Reis nos dá uma ideia do que aconteceu. Os que ficaram foram os mais pobres. A economia da região se resumiu a agricultura de subsistência. Diferente dos assírios, um século e meio antes, os babilônios não enviaram pessoas para habitar Jerusalém, mas não a abandonou à sua própria sorte, deixando no palácio Godolias, ou Gedalias. Um selo encontrado com o seu nome o define como “aquele que está no palácio”. Jeremias defende que a Babilônia deva ser respeitada e relata a volta para Judá dos que fugiram no quando da invasão babilônica.

O projeto de Godolias de reerguer Judá é interrompido por uma rebelião de um dos chefes de um destacamento militar. Ismael sobrevivera ao ataque da Babilônia e conseguira fugir com um grupo de soldados. Ao voltar, mata Godolias e tenta restabelecer um governo monárquico e é reprimido pela Babilônia. Acontece então uma terceira deportação, de mais 745 pessoas, totalizando 4.600 deportados por Nabucodonosor, segundo Jeremias, e mais de 10.000 segundo fontes extra-bíblicas. Judá, Jerusalém incluso, se torna uma província sob a tutela de Samaria. A região perde totalmente sua autonomia, sendo vassala da Babilônia e administrada pelo seus irmãos distantes do norte.

Jerusalém, invadida e tomada, vê o Templo ser destruído. A destruição do símbolo maior da fé não acaba com o culto judaico.

O eixo da espiritualidade de Israel se desloca para a Babilônia e a catástrofe natural torna-se motivo de profunda reflexão teológica. [1]

A leitura feita pelos profetas de tudo o que aconteceu culminou em duas interpretações que vão culminar na nova identidade daquele povo: a primeira, de que o juízo de Javé fora executado e a segunda de que os exilados eram os que foram preservados para a reconstrução de Israel.

Os que foram

O exílio chega ao seu ápice. Com a última deportação, o ciclo iniciado com os Assírios deportando o Reino do Norte chega ao fim com a Babilônia deportando o Reino do Sul. Temos, no Exílio Babilônico, a maior deportação e a que mais ganha destaque nos texto bíblicos. Os exilados foram alocados em vilas ao redor da Babilônia. Cidades como Tel-Abibe, citada em Ezequiel 3.15, receberam a população de Judá. Jeremias 29 registra a carta enviada pelo profeta para os exilados. Nela, temos o relato de uma condição bastante diferente a de escravos. A recomendação de que toquem a vida adiante, preservem a cultura e a religião, construam casas e façam negócios parece mostrar que a deportação em nada tem relação com prisão perpétua para os deportados.

Os relatos extra-bíblicos vão corroborar a ideia de bem estar dos exilados. Em um relato encontrado na região da Mesopotâmia, temos os arquivos da família Marushú, da cidade de Nippur. Neste relato encontramos a menção a ricos proprietários locais de origem judaica. Esdras vai dar credibilidade a este relato, mostrando no capítulo 2.68–69 uma grande oferta apresentada pelos chefes em Jerusalém para a reconstrução da cidade. Por fim, o próprio Rei Joaquin, exilado na primeira deportação, conseguiu manter determinado status junto à corte babilônica. Curiosamente, 2 Reis termina seu registro mostrando como Evil-Merodaque tirou Joaquin da prisão, trazendo alívio para sua vida e mostrando que Joaquin, descendência de Davi, estava sendo honrado.

Conclusão

A calamidade de 587 a.C. não deve de modo nenhum ser minimizada. Embora a noção popular de uma deportação total que deixou a terra vazia e despovoada seja errônea e deva ser rejeitada, a catástrofe foi deveras aterradora, a ponto de ter causado a ruptura da vida judaica na Palestina [2]

O exílio acontece e não temos mais nenhum resquício do que foi Israel no passado. Tendo a elite intelectual, portanto religiosa, deportada, o eixo de produção do pensamento e teologia está agora na Babilônia. Curiosamente, os que permanecem parecem não deixar rastros históricos de sua religiosidade. Samaria possivelmente ditou os rumos religiosos em Judá, o que deve ter causado identificação, mas também estranhamento e até mesmo repulsa aos que voltariam. Mas antes de falar da volta, precisamos falar do desenvolvimento da teologia dos hebreus no exílio. É o que abordaremos no próximo encontro.

[1] MAZZINGHI, Luca. História de Israel: das origens ao período romano. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 2017

[2] BRIGHT, John. História de Israel. Edições Paulinas. São Paulo, SP, 1978

O presente texto foi escrito para a aula da Academia Bíblica da Igreja Presbiteriana Independente de Tucuruvi, São Paulo, SP, escrito em 11 de fevereiro de 2020

Índice das aulas

O índice é atualizado no artigo da primeira lição.

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Giovanni Alecrim
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