Êxodo e Sinai

Giovanni Alecrim
De casa em casa
Published in
5 min readSep 25, 2019

Como um pequeno povo saiu da escravidão sem ter que guerrear.

Assim, por detrás dos relatos dos fatos, que, ainda uma vez, não é possível precisar aqui, coloca-se uma intenção teológica muito clara dos narradores, que descobrem naqueles eventos distantes a presença de Deus na história do povo e, sob esta luz, os transmitem ao povo de seu tempo.

(Luca Mazzinghi) [1]

Quando nos lembramos do relato da saída de Israel do Egito, automaticamente pensamos no Êxodo, não apenas enquanto movimento, mas principalmente como livro. O relato do êxodo começa no livro homônimo e se estende até o fim do Deuteronômio. Trata-se de como o povo de Israel contou, num determinado período da história, como eles foram formados e como a relação deles com Javé foi construída ao longo de uma jornada de 40 anos pelo deserto, sendo que boa parte dela estavam aos pés do Sinai, e como tudo isso culminou com a entrada em Canaã e o surgimento do que chamamos nação de Israel. Dois eventos são marcantes neste processo e vamos conhecê-los agora. O primeiro, quando o povo coloca o pé na estrada, o segundo o Monte Sinai.

Pé na estrada

Toda história possuí uma pré-história. A do êxodo é o chamado de Moisés, que começa com o relato de seu nascimento, seu abandono nas águas, sua adoção pela filha do faraó, seu crescimento e desenvolvimento no palácio culminando na sua fuga para o deserto, onde ocorre seu encontro com Javé. Até aqui temos a apresentação daquele que viria a ser o libertador, fundador da religião Javista e guia durante os anos no deserto.

A saída, propriamente, do povo de Israel do Egito se inicia no relato das pragas. O texto do Êxodo fala em 10 pragas e, durante muitos anos, os estudiosos procuraram trabalhar para mostrar que elas são cientificamente possíveis. No entanto, tal busca foi superada, e passou-se aos estudos das mesmas na perspectiva da ação de Deus na história, ou seja, não estão preocupados em provar cientificamente, mas sim em mostrar que o preâmbulo das pragas, Êxodo 7.1–5, é tão importante quanto o acontecimento delas. A busca pela comprovação ou não do acontecimento das pragas torna-se menor diante da declaração “Quando eu levantar minha mão e tirar os israelitas do meio deles, os egípcios saberão que eu sou o SENHOR” (Êxodo 7.5).

Da mesma forma, outro evento que acontece no início da caminhada do povo hebreu chama bastante atenção: a travessia do mar. É interessante pontuarmos aqui como o senso comum estabelece verdades que não são fatos. O mar que o povo atravessou não foi o mar vermelho. O texto de Êxodo faz referência ao Mar de Canas e Mar de Juncos. Pensou-se no Lago Amargo, no Lago Timsah, ambos hoje tomados pelo Canal de Suez, mas o fato é que não se sabe onde exatamente aconteceu tal travessia, que é narrada em Êxodo 14 como um cortejo triunfal entre duas muralhas de água, mas que no mesmo texto ainda apresenta duas outras possibilidades, como um vento que torna o piso seco, sem necessariamente ter uma muralha e ainda a fuga dos egípcios diante da coluna de fogo, sem serem necessariamente tragados pelas águas. Muito se tem debatido tais diferenças nos relatos e, diante delas, há teorias como a de Roland de Vaux, padre francês que comandou as pesquisas iniciais nos manuscritos do Mar Morto, e que sugere que teriam havido dois êxodos, um em que um grupo fugiu e outro em que um grupo foi expulso. Mais uma vez, estamos aqui no campo das hipóteses. Independente se a hipótese de de Vaux esteja correta ou não, o fato é que um povo saiu de dentro do Egito sem pegar em armas, pois “O SENHOR está lutando por eles e contra o Egito!” (Êxodo 14.25b).

Cronologicamente, o fato do êxodo, muito provavelmente aconteceu por volta de 1250 a.C., no reinado de Ramsés II, contudo, não é possível precisar, primeiro porque os relatos bíblicos possuem mais intenção teológica que histórica, segundo que o povo de Israel não estava preocupado em datar e nem os egípcios em registrar suas perdas. Há uma menção no Papiro Anastasi V de que uma guarda real perseguiu um grupo de escravos, mas não há qualquer menção quem eram esses escravos.

O monte

Ao saírem do Egito, o povo passa por algumas situações interessantes, que são narradas de forma breve. As águas amargas em Mara, o Maná e as codornas, a água da rocha e a visita de Jetro a Moisés, para então, chegar num dos acontecimentos chave da narrativa do Pentateuco: o monte Sinai, também chamado de monte Horeb. A narrativa da presença do povo no Sinai se inicia em Êxodo 19 e vai até Números 10, passando todo o livro do Levítico.

Tradicionalmente se situa o Sinai onde hoje está o Mosteiro de Santa Catarina, de tradição Greco-ortodoxa, que se encontra no monte atualmente chamado de Jabel Musa, na parte meridional da Península Sinaítica. Aqui também há contestações. Já se sugeriu os montes da Arábia como local, na região do Negueb, mas as evidências arqueológicas derrubam tais hipóteses. Fica-se com a tradição, mais uma vez, de que o Jabel Musa é o Monte Sinai.

O período que os israelitas passaram no deserto é calculado pela cifra tradicional de 40 anos. Não sabemos o tempo exato, aceitamos o da narrativa de Números 14, contudo, é preciso pontuar que a presença do povo no deserto por um longo período foi o que promoveu a unidade e coesão que vieram a formar o que chamamos de povo de Israel. Logo, é natural dizer que no deserto, enquanto marchavam e direção a Canaã, aqueles homens e mulheres tiveram sua identidade formada e forjada.

Conclusão

É singular notarmos que o relato do Êxodo é majoritariamente o do povo aos pés do Monte Sinai, recebendo as instruções de Deus. Considerando que o Pentateuco é o texto da Lei, que forma as diretrizes da nação, compreendemos então que o relato do Êxodo é muito mais de caráter didático e instrutivo que propriamente histórico e arqueológico. Isso não invalida o fato, apenas é o ponto de vista de Israel sobre como eles foram formados.

Os relatos históricos de períodos tão distantes de nós não devem ser encarados em sua literalidade, pois corremos o risco de cometermos interpretações equivocadas acerca da realidade. No encontro de hoje falei que os egípcios não registraram nada da presença e saída dos israelitas de suas terras, no entanto, é comprovado arqueologicamente a presença dos israelitas por lá. O método científico de pesquisa é recente, perto da dimensão do tempo em que estamos estudando, logo, é preciso cautela.

Chegamos ao monte Sinai e caminharemos em direção a Canaã, no entanto, a instalação deste povo naquelas terras é cercada de controvérsias históricas e vamos compreendê-las em nosso próximo encontro.

Nota

[1] MAZZINGHI, Luca. História de Israel: das origens ao período romano. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 2017

O presente texto foi escrito para a aula da Academia Bíblica da Igreja Presbiteriana Independente de Tucuruvi, São Paulo, SP, escrito em 24 de setembro de 2019

Índice das aulas

O índice é atualizado no artigo da primeira lição.

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Giovanni Alecrim
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