Entre o erro criativo e a brasilidade: entrevista com Rafael Bacellar e Kino Lopes

Duo brasiliense lançou em janeiro álbum de improvisação livre com piano e guitarra

Giovanni Vellozo
13 min readFeb 25, 2020
Kino e Rafael, membros do selo Dobradiça Enferrujada Discos (crédito: acervo de Kino Lopes)

Lançado pelo selo independente Dobradiça Enferrujada Discos no último dia 24 de Janeiro, Cavalo Preto é um álbum que exercita a imprevisibilidade em dez faixas feitas numa tarde do ano passado por Rafael Bacellar (piano) e Kino Lopes (guitarra). O duo, residente em Brasília (DF) e parceiro de projetos anteriores como o Lapso Orquestra, que flerta a livre improvisação com a música popular, contou em entrevista por e-mail como se deu o processo de criação do trabalho, as referências sonoras e literárias por trás das músicas, futuros lançamentos e a análise dos artistas sobre a relação entre a música brasileira e o uso do improviso. Confira:

Segundo o texto do Rafael no Bandcamp, Cavalo Preto foi um resultado de uma pesquisa de três anos sobre o universo da Improvisação Livre e um esforço em não se encaixar em moldes e repetições automáticas. Nesse sentido, quais foram os desafios dessa ruptura com esses dois instrumentos?

Rafael Bacellar: Percebo que essa ruptura é um projeto a longo prazo que temos colocado em prática a partir da escuta, análise e conversas a respeito da música experimental e, de forma mais geral, sobre música de concerto contemporânea, mas também sem abandonar a tradição e seus repertórios. Os desafios envolvem toda uma tomada de consciência sobre padrões repetitivos, sobre gestos insistentes, e sobre como mudá-los ou dar novos significados a eles. Então, tudo isso é muito sobre romper com o automatismo e desenvolver uma escuta (dentro e fora de uma performance) que seja sensível, receptiva, sem imposições, sempre priorizando o diálogo, recorrendo ao próprio aqui-agora e não a planos fixos, ouvindo as sugestões e também sugerindo ideias musicais. Isso é muitas vezes perdido em um repertório muito esquematizado, arriscando perder os potenciais de interação entre músicos. Nesse contexto, pode sair todo tipo de som inesperado que você pensar, porque “pode tudo”, desde que isso seja feito de forma atenta e consciente. Além disso, aqui a questão instrumental envolve uma postura experimental sobre aprender com o repertório já existente e também desenvolver no piano ou na guitarra outros tipos de técnicas e de estéticas.

Kino Lopes: O que há por trás da crítica de romper com o automatismo é, no fundo, uma utopia que se consiste em criar dentro de modos soltos de sistemas constituídos que possuem suficiente força de determinação de relações para poder construir tais encadeamentos ao entrar em contato com o material e a performance. Já a questão da improvisação é o impulso para pensar com os objetos, sintetizando em um certo desaparecimento da linha entre o instrumentista e seu instrumento. Não é somente através da improvisação que este modo é alcançável, e não é só ela que carrega essa práxis, mas por via deste processo você trabalha no lócus de um dos elementos mais produtivos do conhecimento: o erro, ou o acidente.

Existe, de tempos em tempos, uma frustração completamente saudável, que acontece quando se percebe que dados materiais e/ou agenciamentos estão excessivamente mapeados, ou em outras palavras, encontram-se presos em uma rotina (a improvisação tem total condição, como acontece constantemente, de gerar moldes e automatismos). É claro que, eles nunca estão verdadeiramente dominados, e isso fica visível quando algo desconhecido (outro musicista, algum erro etc.) nega a essa rotina. Esse confronto faz o material entrar em conflito consigo mesmo, e isso gera inevitavelmente a sua expansão, reacendendo ele por completo, e às vezes, revelando novos materiais. É meio engraçado porque de certa forma, talvez a única maneira de se medir sucesso, dentro dessas propostas, é o quão bem você conseguiu fracassar em concretizar parâmetros objetivos. E realmente, os momentos em que encontramos esse “sucesso”, são apenas momentos, e se encarados como exemplos para uma próxima vez, eles deixam de proporcionar esse sucesso, por isso esse lance de nunca ser realmente um lugar, mas sempre uma busca por essa espécie de atrito.

Muitos dos grupos e projetos de que participo contam com o Rafa. Ele tem uma tremenda capacidade de jogar suas cartas sempre em lugares imprevisíveis, e eu suspeito que esse projeto de duo aconteceu justamente como uma forma de se pressionar.

O disco contém gravações de ao longo desses três anos de estudo ou apenas nesse período final, mais próximo de hoje?

RB: Todas as faixas do disco foram gravadas em uma única tarde em 2019 no Estúdio Confraria (Brasília), com o Pedro Menezes, que tem nos acompanhado desde o princípio nos projetos do selo Dobradiça Enferrujada.

Ao ouvir Cavalo Preto, tive a sensação de ter, mesmo nos momentos caóticos, um trabalho bastante fluido entre vocês dois, provavelmente pelo trabalho já anterior entre vocês nesses anos. No processo criativo, conforme descrito pelo Rafael, não houve um texto-guia para as canções, mas vocês sim “conversaram e ouviram muita música para a preparação da gravação”. Nessas discussões e audições, como exatamente se deu a discussão sobre os pontos de partida (como os temas para cada uma das faixas, ou mesmo alguma linha melódica, andamento ou dinâmica inicial)? Houve mais de uma gravação para uma mesma ideia inicial, que foi desenvolvida de modo distinto em mais de um take?

RB: Não houve um direcionamento prévio no sentido de “vamos decidir o tema dessa e dessa faixa”. O processo de criação e registro das faixas foi livre e só foi realizado um take para cada faixa. Houve sim conversas e escutas que deram algum nível de direcionamento, como as referências literárias que cito no texto, mas os títulos das faixas foram todos decididos após a masterização. Podemos dizer que os pontos de partida foram mais amplos, como sensações, abstrações, ideias, afetos, do que propriamente elementos musicais como melodias ou andamentos. Então, por conta dessa abordagem, não houve mais de uma gravação de uma mesma ideia.

“Em uma situação que circula aquilo que mais consegue se enquadrar dentro das firmes demandas exigidas pelos algoritmos e pelos especialistas, uma prática de improvisação que tem em vista uma eterna fuga da conservação será um eterno segredo.”

O trabalho me parece usar de várias técnicas estendidas. Que tipo de preparação houve na sua guitarra e no piano ao longo do trabalho? Fiquei curioso com alguns momentos, como para obter sons como os agudos dos dois instrumentos na porção final de “Idea = Oggetti / Costellazioni = Stelle” e os “rasgos” da guitarra entre os arpejos do piano em “Rien n’aura eu lieu que le lieu, excepté, peut-être, une constellation”.

KL: Preparação no sentido cageano (modificar seu instrumento a priori), nenhuma. Com exceção do delay que usei na minha faixa solo, e afinações microtonais na guitarra (as cordas si, ré e mi afinadas um quarto de tom abaixo) trabalhamos apenas com nossos instrumentos sem interferência — por mais que eu use bastante a palheta pra outras funções além de “palhetar”.

Na “Idea=Oggetti”, esses agudos são alcançados graças aos restos de corda que ficam para além do cavalete, às vezes usando a alavanca para tremê-las. Os rasgos funcionam através de alguma unha de algum dedo da mão esquerda segurando alguma corda, depois “passeando” a unha na corda.

Trecho de Mallarmé que dá nome à quarta faixa de Cavalo Preto (crédito: Wikimedia)

O nome do álbum e da faixa-título vem de um texto do Guimarães Rosa, há a menção a um trecho do Romanceiro da Inconfidência da Cecília Meirelles na página do Bandcamp, e a escritores como Mallarmé e Brecht em títulos das músicas. Como que se deu essa relação de inspiração intertextual durante as gravações? Há uma tentativa de apreensão sonora da forma ou do conteúdo desses trechos da literatura?

RB: Da minha parte, posso dizer que li muito Mallarmé no período da gravação do álbum, sendo que o título de uma das faixas é um verso do poema Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso (1897). Nesse caso, acho que já fui para o estúdio com um pouco dessa referência estética, de algo que fica mais no campo da sugestão e da experimentação gramatical. Penso em um aspecto muito imagético também, além do fato de que, para alguns autores a obra do poeta francês anuncia o princípio do Modernismo, uma estética que conversa muito com nosso som. E essas são ideias que permeiam todo o álbum. Já a faixa “A cadela está sempre no cio” é uma citação adaptada de uma peça de Brecht, que usamos como referência ao período sociopolítico atual que vivemos no Brasil. Brecht se referia aos regimes ditatoriais como algo que está sempre à espreita, pronto para voltar, e é nesse sentido que decidimos pelo título da faixa.

KL: A influência durante a gravação, acredito que foi como o Rafa disse: coisas imbricadas no nosso imaginário, sem muito controle ou bússola. A escolha dos nomes dos projetos são quase sempre sugeridos e escolhidos após a gravação, geralmente vindo de algum lugar que sentimos estar falando com e a partir de.

O nome deste último álbum veio da faixa sete, que pega emprestado um trecho do terceiro dos seis textos de Rosa chamados “Zoo”. Além da semelhança do álbum ser cheio de referências a animais (Cuchillos y Tijeras vem do final do filme “Sicilia!” da falecida Huillet e do Straub, juntos com Cecil Taylor — três animais), o mineiro, assim como na improvisação, coloca a palavra contra ela mesma, paralisando seus sentidos, e as abraça como brecha para revelar outras coisas que ela oculta. Os vocábulos em Rosa estão todos indefesos para serem reinterpretados, finalmente retornando a metáfora. Talvez o Bento Prado Junior acertou na mosca quando ele escreveu que em Guimarães Rosa “a estrutura se desfaz e todas as formas passam umas pelas outras numa promiscuidade insuportável … as coisas agarram-se umas nas outras e o contato é a marca definitiva”. Seriam também boas palavras para falar da improvisação.

Assim como Rosa devolve a palavra pro campo da criação heterogênea, malabarizada entre o ouvinte, o escritor, e a própria palavra, também faz isso a Cecília Meirelles, os Huillet-Straub, a Susan Rothenberg, a Anabi, que produziu a capa do projeto, e que me apresentou ao Guimarães.

Trecho de apresentação do grupo Lapso Orquestra, do qual Kino e Rafael fazem parte, gravada em 25 de abril de 2018. O grupo lançou discos ao vivo e em estúdio em 2019.

As “linguagens da música popular e da música experimental/contemporânea” que o Rafael cita no seu texto de divulgação, de um modo ou de outro acabam permeando o álbum, mesmo ele não sendo exatamente “rotulável” como um trabalho de música popular. Uma vez, eu li uma entrevista do GG Albuquerque com o músico Marcos Campello (Chinese Cookie Poets, Ava Rocha) em que ele dizia não entender como não havia, na visão dele, trabalhos do que ele chamou de “free choro, free samba”. Na visão de vocês, como que se dá essa relação entre a territorialidade brasileira e a liberdade de forma?

KL: Como muitas das músicas tradicionais do mundo têm fortes relações com algum tipo de improvisação, é natural alguns improvisadores procurarem nela inspiração. Mas a música improvisada e as músicas tradicionais têm a mesma prioridade em relação a como encarar a improvisação?

No território delimitado, da música barroca por exemplo, se manifesta nas performances de seus artistas que não estão interessados em mergulhar em novas virtualidades, mas sim em ser intermediários de um idioma que fala através deles. No Jazz, como outro exemplo, o uso da improvisação se baseia na extração rápida de modelos musicais e de gestos arquivados na memória e, também, na velocidade de reflexos que existe ao se comunicar verbalmente. O tema voltará, a quadratura permanecerá, os caminhos dos acordes serão forças organizadoras. No Choro, o que existe de improvisação é a sutil variação da melodia e a rearmonização da progressão harmônica, sempre preservando suas funções, e consequentemente sua direcionalidade, seu tempo musical, e sua estrutura. Nessas práticas, a improvisação é usada para fortalecer e enfatizar uma forma pré-definida e intacta, onde na improvisação que você se refere como “não sendo exatamente rotulável”, o improviso é usado pra gerar a própria forma, ele recebe uma estrutura, esta se organiza a partir do contato e dos “imprevistos”, os erros não podem voltar ao caminho predestinado, eles mudam o caminho por completo, o destino não muda porque ele nunca exatamente existiu.

RB: Essa é uma questão interessante, e também complicada. Acho que muitas pessoas já fizeram e fazem esse diálogo da música contemporânea com algum tipo de “brasilidade”, como o Satanique Samba Trio, a Ava Rocha, o Paulo Costa Lima, o Tom Zé. Eu acredito que a tradição tem seu lugar e que ela precisa ser preservada, mesmo que com muita dificuldade no Brasil atual. Mas ao mesmo tempo essa identidade se torna, às vezes, uma estereotipação, uma exotização que, por sinal, os gringos adoram (para bem e para mal). Acho que a cultura brasileira deve ser o que nós brasileiros decidirmos. É preciso manter e haver respeito pela história, mas sem a obrigação de prestar justificativas à tradição.

É possível que a ruptura proposta por vocês, em oposição às músicas de linguagens mais automáticas e algoritmizadas, possa se tornar uma nova sonoridade fundida ao tradicional, regional ou eventualmente nacional?

RB: Eu ainda não sei responder se a nossa proposta de ruptura pode se fundir ao tradicional e regional, talvez com o tempo e com mais pessoas aderindo a esse tipo de proposta a gente veja as consequências, mas eu gostaria de pensar que sim. Pode ser muito frutífero. No século XX, houve algumas propostas de conversas com a música popular na música de concerto brasileira também, como na obra de Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga, Moacir Santos, Radamés Gnatalli ou Rogério Duprat. Gosto demais. Mas agora, é preciso dar continuidade a esse projeto tendo em vista o que acontece no Brasil do século XXI, com as propostas estéticas e questões sociais que observamos no mundo atual.

KL: Em relação a questão do Marcos Campello sobre o free choro e o free samba, eu lembraria que o free jazz, que ele tá referenciando é, na verdade, não um jazz livre, mas um jazz livre do próprio jazz, um “freed jazz”. O ano de 1959, como muitos já falaram, foi um ano importante pra improvisação. Faziam 5 anos que Charlie Parker havia falecido, e sentia-se a necessidade de reativar e aprofundar o que ele havia feito: encontrar um arrojado modo de manipular com mais plasticidade uma figura musical em tempo real. Nesse ano tivemos a tentativa do modal, que aplicava o lídio cromático (permitindo o uso das 7 notas) em acordes que se mudavam lentamente, assim aumentando a possibilidade de se debruçar com uma única ideia musical. A saturação das progressões de acordes com “Giant Steps”, em ultima instância diminuindo a possibilidade de improvisação. E o jazz com a ausência de um guia harmônico, o free jazz. Neste, por se desfazer da harmonia, ele acaba com a quadratura, ou seja, a barra de compasso, a forma. Ouvindo a gravação de “Chasin the Trane” (1962), do Coltrane, que parte de um blues, chegando na metade do seu improviso, a linguagem, o idioma, a estrutura do blues, perdem sua força de organização e são reduzidos (ou melhor dizendo desobrigados) a uma matéria musical.

O que mais existia definia o jazz, foi sendo paulatinamente dissolvido pela próprio desejo que tinha imbricado no jazz de improvisar. É compreensível que 4 anos depois seria lançado o AMMMUSIC, primeiro álbum do possivelmente primeiro dos grupos sem repertório, AMM.

Com a tradição brasileira, sobre diversos ritmos, encontramos esse tratamento na bateria de Tutty Moreno, por exemplo. No seu fenomenal Forças D’Alma (1998) na sua interpretação de “A Vizinha do Lado”, a bateria coloca o samba entre aspas, mas ainda fortemente contaminada pelo jazz. A música brasileira é muitíssimo ligada a forma canção, e talvez em nenhum momento ela tenha priorizado a improvisação como fez o jazz, então é difícil dizer se um samba livre seria uma coisa e o free samba outra.

E em relação se esse modo de produção possa se tornar uma nova sonoridade fundida ao nacional, por um ponto de vista da técnica musical, como falei, elementos da tradição são constantemente utilizados como ferramentas e peças, ela é pan-idiomática, então por um lado preservar o que mais define um dado idioma, é impossível. Quando na livre improvisação existe uma relação com o idioma, não há uma possibilidade de restauração da linguagem, já que a gramática tradicional retorna como uma espécie de memória, sem a exigência de organizar totalidades funcionais. Por outro lado, mas nem tão outro, a improvisação é frágil. Ela é muito inconsistente, muito flexível, então ela é facilmente engolida por uma linguagem estabelecida. Ela acaba se tornando um enfeite, um brinde. Mas é preciso lembrar que quando uma maneira diferente de ver e sentir aparenta negar uma tradição, ela pode muito bem estar proporcionando uma nova reflexão, como já fez um dia aquilo que em algum momento foi estabelecido como tradição. Uma nova maneira invoca os fantasmas da própria tradição. Por um ponto de vista do reconhecimento, acho que em primeiro lugar tem que ser entendido que o que é exposto como a cultura ou a expressão de uma coisa abstrata como uma nação, se essa coisa não for consumida sem dificuldades entre todas as classes sociais, ela não sera tida como uma verdade. Em uma situação que circula aquilo que mais consegue se enquadrar dentro das firmes demandas exigidas pelos algoritmos e pelos especialistas, uma prática que tem em vista uma eterna fuga da conservação, não consegue competir (ou talvez nem adere a competição). Será um eterno segredo.

Existe alguma previsão de divulgação do disco ou de novos trabalhos nos próximos meses, seja de vocês dois quanto de projetos conjuntos, no selo Dobradiça Enferrujada Discos?

KL: Ainda neste mês de fevereiro haverá o lançamento de um álbum com as gravações de duas apresentações que ocorreram ano passado, a peça “Transcientes” do compositor Matheus Avlis, interpretada por mim, e a composição “Hiatus” do Rafa, executada por ele junto a Ana Cesário. Em março teremos três lançamentos: uma improvisação a dois entre eu e o clarinetista/compositor Bruno Cunha, o segundo álbum do grupo Ventura/Desnos, e um trabalho de improvisações solos, que conta com doze improvisadores, (entre eles eu e o Rafa) todos pela DED. Existem outros 4 projetos que serão gravados entre o final de fevereiro e final de abril, que pretendemos ter todos disponibilizados até o mês de junho, e dois outros que serão gravados e lançados mais perto do final do ano.

Capa de Cavalo Preto, por Anabi.

--

--

No responses yet