O clichê do mar de todas as flores

Gisela Zaffalon Bobato
3 min readMay 3, 2018

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Já se sabe do tal do mar de rosas, aquele que dizem que não existe. Aquele mar raso, preso em calmaria, com gosto de doçura. Aquele que com a vida nada parece. Nem com relacionamentos. Nem trabalho, nem nada. Raso, calmo, doce — sabe-se do tal mar de rosas com que nada se parece.

De fato, o tal do mar de rosas não existe. Contudo, ninguém nunca nos contou sobre o tal do mar de todas as flores. Profundo, livre no desassossego, desmedido em pitadas de sal, assim como o âmago do oceano. Tanto sal, que se desconhece o poder de sobrevivência das flores. E, das flores, não há sequer rosas, tanto nas superfícies, quanto profundezas.

No mar de todas as flores, já se viu margaridas, bromélias e helicônias. Também há orquídeas, plumérias e flores de hibisco. Entre tantas outras, não há rosas. Rosas são clichês. Entretanto, de tanto expulsar as rosas de suas ondas, ninguém nos avisa que já notaram, porém, clichês no meio de tantas cores, de tantas flores, no tal do mar de todas as flores.

Mesmo com sua profundidade, agitação das correntes marítimas vindas do sul e norte; mesmo com o excesso de sal que, ao mergulhar, gruda e salga a pele, o tal do mar de todas as flores parece misterioso, belo, atraente, atrativo a todos os banhistas da Terra. Tão misterioso que não há placas de orientação para a chegada à enseada, nem avisos de perigo, ressaca ou mesmo de tubarões. Tão belo que o primeiro mergulho é quase sempre inevitável e prazeroso.

Ninguém nos avisa de sua existência, mas todos um dia encontram o caminho até a sua orla, mesmo sem encontrá-lo no mapa, GPS ou mesmo pedindo informação ao morador da aldeia que caminha na beira da estrada. À primeira vista, a bússola se confunde, perde seu norte e nos chama para um mergulho no tal do mar de todas as flores. E, à primeira vista, todos os banhistas que o encontram mergulham nas águas coloridas de tantas pétalas macias que nos abraçam e nos fazem esquecer do excesso de sal que certamente impregnará nosso corpo.

Ninguém nos avisa, mas, se porventura as profundezas nos afogar, o sal, ardor nos olhos causar, ou mesmo a agitação das ondas nos marear, as cores das pétalas não serão mais atrativas, quase monocolores. A verdade é que mergulhar nas águas do mar de todas as flores, além de arder os olhos e pele, dói. Dói de um jeito belo e íntimo, mas dói.

Após o primeiro, segundo ou terceiro mergulho no desassossego das águas de bromélias, margaridas e helicônias, nota-se banhistas fazendo suas malas, entrando em seus carros no breu da madrugada e evitando futuramente as estradas sem placas que nos levam até o tal do mar de todas as flores. Nota-se também banhistas repetindo que não há como existir o mar de pétalas de rosa, o símbolo de tanto clichê, mas nunca afirmando a existência do mar de todas as flores.

Ninguém nos avisa, mas, de tanto evitar as estradas sem placas, acabamos por encontrar, sem querer, novamente o caminho para o tal de mar de todas as flores. E, de tanto se enganar, forçamos superficialidade e calmaria, assim como o clichê do mar de rosas, que também não existe.

E, ao afogar-se nas cores de tantas pétalas, de tantas cores e espécies, nos cegamos e negamos a verdade de que o clichê mesmo é fazer fazer as malas e fugir nas altas horas da madrugada para que ninguém nos veja. E esquecemos que é no breu da madrugada que a temperatura do mar de todas as flores é a mais agradável. E aquece. E esquece do que nos arde os olhos e pele. E nos faz entregue.

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Gisela Zaffalon Bobato

comunicadora, ora ilustradora, ora estilista, que, às vezes, também brinca com palavras