Como superar a Agonia do Eros?

Entendendo a resposta apresentada por Byung-Chul Han no livro Agonia do eros (2012) pela teoria freudiana de O mal estar na civilização

Giulia Tessitore
8 min readJun 30, 2020

O livro que te apresento, ou reapresento sob um olhar freudiano, foi escrito pelo professor da Universidade de Berlim, Byung-Chul Han, em 2012 e faz parte de uma coleção com títulos como “Sociedade do cansaço” e “Topologia da violência”.

Em o mal estar na civilização (1930) Freud desenvolve sua tese sobre a psique e busca entender a subjetividade da mente humana. Ao apontar que o ser humano é movido por necessidades básicas, cita os conceitos de pulsão de vida e pulsão de morte. Esta dualidade pulsional seria a base de nossa natureza sociável e repulsiva. A pulsão de vida, eros, é o que move o desejo por outras pessoas ou objetos. Este outro, atópico, é repleto de diferenças e é exatamente eros que permite que as aceitemos.

A partir da pulsão de vida, um ser humano se aproxima de outros e desenvolve vínculos. Esta é uma das base da vida comunitária. Além da criação de vínculos, canaliza também energia para o trabalho. Nestes dois campos colocamos a maior parte de nossa energia psíquica. A base do trabalho consiste, principalmente, em busca de comida, e a criação de vínculos seria o poder do amor — manifestação da pulsão de vida, que cria dependência e não priva-se de objetos de desejo

A vida civilizada é responsável pelo aumento das possibilidades e da segurança, porém isto implica em menor liberdade dentro dos limites coletivos.

Este é o principal raciocínio para o que seria responsável pelo mal estar na civilização. A menor liberdade em detrimento de segurança, é empregada como repressão e domesticação por instituições sociais que modificam nossos instintos. Ou seja, a própria natureza do ser humano de criação de vínculos culmina na vida civilizada e repleta de regras, que, por sua vez, causam um desconforto por reprimir outros instintos. Inclusive, sobre a criação de uma comunidade ordenada socialmente, Freud problematiza que:

“Os preconceitos do tabu constituíram o primeiro “direito”” (FREUD, 1930 p. 62).

Este é um modo de vida que pode ser descrito como repressivo, mas ao mesmo tempo, seria resultado da racionalidade humana que pondera seus instintos.

A partir da repressão de nossos instintos este mal estar surge na modernidade. A repressão é sempre causa de mal estar. Ele pode ser entendido como doenças psíquicas como depressão, estresse, adicção. Mas também como perda do objeto de amor, baixa auto estima, descrença em si, a partir do desperdício dos recursos psíquicos. A repressão dos instintos pode ser entendida como mecanismo para o deslocamento, quase que completo, de nossa energia para o trabalho. Principalmente no mundo moderno, a eficiência é a lógica fundamental que move a sociedade. Busca-se maior eficiência no trabalho, e a repressão da sexualidade, por exemplo, é uma resposta ideal para que se canalize ainda mais energia para outras atividades. Como exemplos desta repressão, Freud cita o banimento da sexualidade na infância e a normatização de relacionamentos heterossexuais e monogâmicos como diretrizes a serem seguidas.

A partir do desenvolvimento da vida civilizada, o filósofo Byung-Chul Han, em seu livro “Agonia do Eros”, cita duas sociedades distintas: a sociedade da disciplina, e a sociedade do desempenho. Discute, nesta construção, a ilusão da liberdade na sociedade pós moderna.

A sociedade da disciplina

Esta é a sociedade que estabelece claramente quem deve mandar e quem deve obedecer. Assim, tem como base a relação entre o senhor e o escravo.

A sociedade do desempenho

Hoje, vivemos numa sociedade muito diferente da descrita anteriormente. Esta nova sociedade tem como lógica a busca da elevação da produtividade: “como empreendedor de si mesmo, o sujeito do desempenho é livre […], mas realmente livre ele não é pois explora a si mesmo”.

Na sociedade do desempenho todos obedecem, o que resulta em uma produção jamais atingida, e isto ocorre pois todos são seus próprios “chefes”. Desta forma, “a autocoerção é muito mais fatal pois não é possível haver nenhuma resistência contra ela”. Além disso, gera uma série de complicações pois não há ninguém que possa ser responsabilizado por seu fracasso.

O princípio da interiorização da responsabilidade também é discutido profundamente por Freud. Com um olhar na infância e desenvolvimento da criança, o psicanalista apresenta duas possibilidades de relações entre pais e filhos: pais que não pressionam tanto seus filhos e pais mais presentes que controlam e punem . A partir desta distinção, a conclusão é que nossa sociedade exige certa repressão de comportamentos “rebeldes” ou instintivos. Então, se não for atribuída aos pais, será a própria criança que desenvolverá esta auto-repressão. Isto poderia indicar a mudança que Han apresenta. Talvez um ponto a ser aprofundado nas duas visões seriam os mecanismos que atrapalham a autocoerção. Sabe-se que na relação de servo e escravo, muitas atitudes rebeldes podem surgir, o que inclusive será discutido no final da análise.

Porém, como isto ocorreria na sociedade do desempenho? Contra quem nos rebelaríamos? Han diz que não pode haver qualquer resistência contra nós mesmos.

Outro uso fundamental da energia psíquica oferecida pela pulsão de vida é a repressão da pulsão de morte. O funcionamento das pulsões e sua repressão não é abordado por Han em seu livro. Ao discutir sobre a agonia de eros, não está falando sobre o mal estar na civilização da repressão de eros, mas sim sobre a inexistência do objeto que eros estaria desejando. O humano é um ser desejante. Sem ter o que desejar, encontra-se desnorteado.

Han se aprofunda no que seria esse desejo da pulsão de vida de Freud. Em agonia do eros, o autor diz que eros é o que leva à saída de nós mesmos, esta saída direciona-se ao atópico, ou então, aquele que não cabe em mim mesmo. O outro não é visto apenas como diferente, a negatividade do espaço entre mim e o outro é a alteridade.

Buscando identificar o que seria problemático no mundo pós moderno em relação à eros, Han diagnostica um narcisismo generalizado. Vivemos em uma sociedade de muito movimento, novidades, mas que desfaz os laços afetivos, o que permite que o narcisismo aflore.

O autor diferencia o narcisismo de amor próprio: “O sujeito do amor próprio estabelece uma delimitação negativa frente ao outro em benefício de si mesmo. O sujeito narcísico, ao contrário, não consegue estabelecer claramente seus limites.”

Como resposta, esta sociedade cria uma despreparação para o conflito, uma vez que o outro não é identificado.

Uma sociedade despreparada para conflitos, não é capaz de se sentir atraída pelo mundo exterior. O deslocamento não existe, apenas o mergulho em si mesmo. Em uma das principais teses do livro agonia do eros, Han aponta que “o eros vence a depressão”. Seria, então, esta disposição para o encontro com o desconhecido — mundo exterior — que eros provocaria.

Mas em um mundo onde a energia é canalizada predominantemente para o trabalho, para o ressurgimento de eros a solução partiria desse novo rearranjo de distribuição de energias.

Este pensamento é desenvolvido mais profundamente ao final do livro, onde discute eros na política e na arte.

Dentro da lógica capitalista, além do alto desempenho, o consumo é essencial. Para garantir este alto consumo, a indústria garante produtos consumíveis. Isto significa alto índice de homogeneização.

Em relação ao amor, Han discute que “o outro é sexualizado como objeto de excitação. Só é possível consumi-lo”.

Este mundo homogêneo é apresentado como espaço nivelado e alisado: espaço transparente. Seguindo o conceito de domesticação apresentado no início da análise, o amor também se torna domesticado a partir de uma fórmula de consumo desprovida de risco e ousadia. Neste cenário que surge a pornografia. A pornografia pode ser entendida como o exato contraponto de eros, pois conta com o alto teor de informação, exposição, e transparência. A pornografia entrega uma hipervisibilidade do sexo.

Han discute que “o obsceno da pornografia não reside no excesso de sexo, mas no fato de não ter sexo”, pois não estamos diante de uma realidade mas sim de simulações mortas.

Para que eros deseje, é necessário uma negatividade e a hipervisibilidade nos permite enxergar tudo, sem que haja fantasiações:

“A informação é uma positividade que leva a desconstrução da negatividade do outro” .

Além de afetar diretamente a forma como nos relacionamos sexualmente, a crise da fantasia afeta o mundo das artes.

“A crise atual da arte e também da literatura pode ser reduzida à crise da fantasia, ao desaparecimento do outro, ou seja, à agonia do eros”.

A crise das artes é a mesma crise do eros, pois “a alma impulsionada por eros produz coisas belas e sobretudo ações belas, que possuem um valor universal”.

Hoje não buscamos mais tantas experimentações por não enxergar a beleza do outro. Evitamos este conflito que geraria aborrecimentos e insatisfações. O que poderia culminar em criatividade e inovação artística, se atrofia em mero trabalho. O mesmo ocorre no âmbito da política. O foco em consumo e trabalho cria uma sociedade despolitizada. A política é outro campo citado por Han onde poderíamos desenvolver rupturas pelo contato com o outro. O desejo pelo outro em forma de revolução é a ação harmônica do desejo pelo outro com a coragem e radicalização.

Não enxergamos o outro, ou seja, não temos horizonte de mudança. Thymos (coragem) está ligado à energia canalizada para a ruptura política. Se canalizamos tudo para o trabalho, não há ruptura. Além disso, o pensamento político pressupõe um pensamento coletivo. Sabemos viver em sociedade uma vez que fomos domesticados, porém de uma forma estranhamente individual.

Por fim, dizer que eros vence a depressão pode ser desdobrado no importante papel da arte e da política para o fim da sociedade narcisista. Arte e política são os dois campos de construção de novidades e possíveis saídas para a busca da negatividade. São campos que pressupõem uma fidelidade transcendental “que permite ser compreendida como uma propriedade universal do eros”.

Bibliografia:

FREUD, S. O mal estar na civilização. In: Freud (1930–1936) O mal-estar na civilização e outros textos: Obras completas volume. Companhia das Letras, 2010.

HAN, B. Agonia do eros. Editora Vozes, 2017.

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Giulia Tessitore

oficialmente, estudante de cinema. realmente, estudando arte, filosofia e política.