Porque eu, como descendente de japoneses (e como pessoa), não posso aceitar a mudança de nome da estação Liberdade do Metrô.

Giulia Nakayama
8 min readAug 9, 2018

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Vários resumos com uma pitada de opinião pessoal.

Na sexta-feira dia 03 de agosto o Metrô de São Paulo começou a aplicar as sinalizações com o novo nome da estação Japão-Liberdade da Linha 1-Azul no centro da cidade. A mudança foi decretada pelo governador de São Paulo, Márcio França (PSB), em 24 de julho. Em 2018, são celebrados os 110 anos da imigração japonesa no Brasil.

Outra troca semelhante ocorreu na praça em que a estação está inserida, que, desde 18 de julho, passou a se chamar Praça da Liberdade-Japão. A mudança é prevista na lei municipal 16.960/18, sancionada pelo prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB).

(Fonte, Estadão, São Paulo).

Agora, porque eu, como descendente de japoneses (e como pessoa), não posso aceitar essa mudança?

Meu lado japonês vem do meu lado paterno da família, ambos os meus avós vieram para o Brasil por volta de 1940 e aqui fizeram sua vida, tiveram filhos, netos e faleceram.

Eu, Giulia, me considero uma ittalo-nipo-brasileira mesmo sabendo que sou socialmente aceita como japonesa. Muito antes da história dos meus antepassados japoneses e italianos, faço questão de trazer comigo a história do povo brasileiro.

Quando os japoneses sequer pensavam em colocar os pés em terras tupiniquins, o bairro da Liberdade era parte do chamado “Distrito da Sé”, após alguns movimentos políticos ele teve seu nome mudado oficialmente para “Liberdade” em dezembro de 1905. Agora, porque “Liberdade”?

Por volta do século 19 o atual bairro da Liberdade abrigava o Largo do Pelourinho (onde eram amarrados e castigados os escravos fugitivos) e o Largo da Forca (um dos principais locais de execuções da cidade de São Paulo).

Dentre todas as execuções que aconteceram no Largo da Forca, as duas que vieram a ser as mais famosas foram as dos soldados Fransciso José das Chagas (conhecido como Chaguinhas) e Joaquim José Cotindiba, ambos negros e condenados por reclamar do soldo pago pela Coroa portuguesa. O enforcamento se deu no ano de 1812. Relatos contam que Cotindiba veio a falecer rapidamente, mas a corda da forca de Changuinhas rompeu-se duas vezes e enquanto o mesmo não era executado, o povo que assistia clamava por clemência e gritava “Liberdade! Liberdade!”. Devido a tais complicações em seu enforcamento, o soldado foi morto a pauladas na frente da multidão.

A região foi construída sobre um cemitério a céu aberto, o Cemitério dos Aflitos, construído de 1774, onde eram enterrados pobres, indigentes e escravos. A Igreja dos Aflitos foi erguida pouco tempo depois, em 1779. Na Igreja dos Aflitos as pessoas aguardavam as execuções, na Igreja dos Enforcados os corpos eram velados e na Igreja das Almas era feita a missa aos condenados.

Apesar do bairro ser marcado por inúmeras tragédias, ele ainda possuía uma localização privilegiada próximo ao centro de São Paulo e por isso foi onde a população negra, sem qualquer direito básico, se concentrou após a abolição da escravidão em 1888.

Em resumo, o nome “Liberdade” carrega parte da história da escravidão no Brasil.

Com o fim da escravidão no Brasil muito fazendeiros recusavam-se a pagar salários para seus ex-escravos, preferindo assim o imigrante como opção de mão de obra barata. Nesse contexto o governo brasileiro aproveitou para criar campanhas incentivando a vinda de imigrantes para o país.

Em junho de 1908 chegou ao porto de Santos o famoso navio “Kasato Maru” trazendo os primeiros 782 imigrantes japoneses ao Brasil para trabalhar nas lavouras de café que existiam por todo o interior do estado de São Paulo (por isso que ainda hoje possuímos colônias de japoneses em regiões como Atibaia, Campinas, Mogi das Cruzes etc…).

Por volta de 1912, sem aceitar o regime ainda escravagista das lavouras, os primeiros imigrantes japoneses começaram a deixar o interior do estado e vieram para a cidade em busca de melhores oportunidades de trabalho. Como já foi dito, a região do bairro da Liberdade era marginalizada apesar de possuir boa localização, então lá era possível encontrar locais com preços relativamente acessíveis e a promessa de melhores oportunidades de trabalho na cidade. Além disso, os diversos casarões da rua Conde de Sarzedas possuíam pequenos porões que eram alugados para famílias de japoneses.

Assim começaram a surgir as primeiras pensões e comércios japoneses no bairro da Liberdade.

Nessa mesma época começou no país o que veio a ser conhecido como “Tese do Branqueamento” ou “Política de Embranquecimento” que nada mais era do que uma das inúmeras teses eugenistas do século. Tais frentes defendiam a existência de um padrão genético superior para a raça humana e era na genética branca européia que essa superioridade morava.

Em 1911 o antropólogo e médico carioca João Baptista de Lacerda foi um dos principais personagens a defender a ideia no Congresso Universal das Raças em Londres. Ele levou ao evento seu artigo “Sur les métis au Brésil” (Sobre os mestiços do Brasil, em tradução livre) em um trecho ele coloca: “A população mista do Brasil deverá ter pois, no intervalo de um século, um aspecto bem diferente da atual. As correntes de imigração europeia, aumentando a cada dia mais o elemento branco desta população, acabarão, depois de certo tempo, por sufocar os elementos nos quais poderia persistir ainda alguns traços do negro.” Nessa passagem podemos perceber nitidamente a expectativa dos imigrantes europeus serem a grande esperança para o embranquecimento da população brasileira.

Anos se passaram e o Brasil prosseguia recebendo cada vez mais imigrantes.

Durante a Assembléia Nacional Constituinte de 1933 foi tratada a questão da imigração estrangeira no Brasil. Devido às políticas de embranquecimento já sabemos que os imigrantes europeus eram vistos com bons olhos, porém foi dado destaque ao “problema japonês” no país, ao colocar em pauta os limites ou impedimentos à imigração de certas etnias.

O grande argumento anti-nipônico baseia-se na “insolubilidade” do japonês, comparando o tom de pele amarelo a presença de enxofre. Portanto não importa quantas gerações de brancos se misturassem aos japoneses, o traço amarelo estaria sempre presente nas gerações futuras. Assim deu-se início a uma política contra casamentos interraciais entre brancos e amarelos, onde os japoneses eram colocados como “o Perigo Amarelo”.

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939–1945), o Japão se aliou às Potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) dando início a um segundo momento do “Perigo Amarelo”. O japonês “Súdito do Eixo” é caracterizado como perverso, extremamente inteligente, astuto e eficiente. Uma releitura do vilão “Doutor Fu Manchu” criado por Arthur Sarsfield Ward (Sax Rohmer). Fu Manchu antes representava a sinofobia a respeito dos chineses nos Estados Unidos, mas no cenário da Segunda Guerra Mundial os japoneses assumiram o papel.

Durante tal período, a entrada de novos japoneses para o Brasil foi proibida e o governo instaurou diversas leis para prejudicar os imigrantes que aqui já estavam instalados e seus descendentes. O presidente Getúlio Vargas proibiu o uso da língua japonesa e quaisquer manifestações da cultura foram consideradas criminosas.

Na mesma época, aproximadamente 3.000 pessoas de origem alemã, italiana e japonesa foram encarceradas em 10 campos de concentração criados em sete estados brasileiros (PA, PE, RJ, MG, SP, SC e RS).

Ou seja, estamos falando de um país que vem sendo ruim para os japoneses e cruel com os negros.

Agora, em 1960 surgiu pela primeira vez nos Estados Unidos o “Mito da Minoria Modelo”. Os japoneses que antes representavam o “Perigo Amarelo” durante a Segunda Guerra Mundial (e para o embranquecimento da população brasileira), passaram a simbolizar imigrantes que incorporaram o sonho americano (pode-se ler “o sonho nacionalista do país para onde migraram”). E, ao contrário de outros imigrantes, prosperaram.

O primeiro registro escrito do “Mito da Minoria Modelo” foi escrito em um artigo de 1966 publicado na New York Times e nomeado de “Sucess Story” (história de sucesso em tradução livre). A verdade é que essa exaltação dos Japoneses como um povo imigrante que foi capaz de superar as adversidades da raça nada mais era do que uma política usada para reforçar o racismo contra negros.

Lembro muito bem quando por volta dos anos 2000, eu devia ter por volta dos meus 7 ou 8 anos, vi na capa de um famoso jornal a chamada “O Perigo Amarelo” numa matéria falando sobre como as altas notas dos japoneses no vestibular estavam “roubando” a vaga de outros candidatos (deixei 2 links no fim do texto com matérias dessa mesma época falando a respeito do assunto).

Não vou entrar agora no mérito de como o “Mito da Minoria Modelo” corrobora até os dias de hoje com o racismo contra asiáticos, mas deixarei um link com uma matéria que fala a respeito. Vamos focar em como ela corrobora com o racismo contra negros.

Parte do discurso utilizado para enaltecer a população amarela era que os japoneses também vieram para o Brasil à força, em condições sub-humanas nos navios e para trabalhar em condições semelhantes à escravidão. Em seguida comparavam o sucesso dos japoneses ao “fracasso” dos negros.

Enquanto coloca-se os japoneses como uma minoria esforçada, estudiosa e que foi capaz de ascender econômica e socialmente, o negro fica do lado oposto, como vindo de uma cultura débil, preguiçoso e responsável pelos seus próprios problemas devido a falta de esforço. Afinal vivemos em uma meritocracia, não é mesmo?

1968 representou um ano de várias mudanças no bairro, a construção da Diametral Leste-Oeste fez com que o antigo cine Niterói, marco da prosperidade do bairro, a se mudar para a esquina da avenida Liberdade com a rua Barão de Iguape e a rua Conselheiro Furtado foi alargada, diminuindo a força comercial do local. Na década de 70 foi inaugurada a estação Liberdade do metrô.

Aos poucos, a Liberdade deixou de ser um ambiente exclusivo de japoneses e passou a ser um reduto de imigrantes asiáticos. Ou seja, fazer em 2018 uma mudança que resume a Liberdade apenas como Japão é um movimento nipo-centrista que exclui todos aqueles outros que a anos vem fazendo parte importante da região.

Resumindo, apesar da história da imigração japonesa ter sido marcada por diversas dificuldades pautadas por questões raciais e econômicas temos que entender que nossa não-branquitute não retira os privilégios da nossa não-negritude. Aceitar a mudança do nome da praça para “Japão-Liberdade” entendendo-a como uma homenagem a nós e nossos ancestrais é corroborar com anos de racismo, com o uso do discurso da “Minoria Modelo”, com o apagamento da memória negra e com a exclusão de outros grupos asiáticos que lá existem.

Por isso que eu, Giulia Carrara Nakayama, neta de imigrantes que vieram para o Brasil em 1945 não aceitarei da mudança de nome da estação e da praça Liberdade.

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Referências

https://www.suapesquisa.com/historiadobrasil/imigracao_japonesa.htm

https://outracoluna.wordpress.com/2017/03/26/a-origem-do-perigo-amarelo-orientalismo-colonialismo-e-a-hegemonia-euro-americana/

https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/historiadobrasil/tese-branqueamento.htm

http://www.nippobrasil.com.br/especial/n027.php

http://www.culturajaponesa.com.br/index.php/historia/imigracao/historia-do-bairro-da-liberdade/

https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,estacao-japao-liberdade-do-metro-ganha-sinalizacao-com-novo-nome,70002429080

Japoneses e os estudos

https://www.mundovestibular.com.br/articles/7559/1/Porque-os-Japoneses-vao-melhor-na-escola/Paacutegina1.html

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1504200118.htm

Nipo-centrismo

https://medium.com/@arielstrauss/algumas-coisas-que-podemos-fazer-para-combater-o-leste-e-nipo-centrismo-a1c116265fb0

Mito da minoria modelo

https://motherboard.vice.com/pt_br/article/787gka/o-mito-da-minoria-modelo

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