Esses textos pensando no calendário litúrgico¹ são, para mim, um exercício de me enxergar na teologia e na experiência de minha fé cristã que muitas vezes é questionada ou simplesmente não contemplada.
Jesus prometeu em João 14 que quando ele retornasse ao céu ele enviaria o Consolador. Em Lucas 24:49 ele ordena que os discípulos fiquem em Jerusalém até que eles fossem revestidos de poder. O Pentecostes é o dia em que comemoramos a descida do Espírito Santo sobre os seguidores de Jesus, 50 dias após a Páscoa. É considerado o dia do nascimento da igreja cristã. Nesta estação litúrgica lembramos também da ação da igreja no mundo e de sua história, revisitamos o livro de Atos e vemos a ação do Espírito sobre os cristãos na propagação do Evangelho.
Em Atos 2:1-13 temos o relato do momento em que o Espírito encheu os apóstolos e as demais pessoas ali presentes. O texto começa:
No dia de Pentecostes, todos estavam reunidos num só lugar. (v.1, NVT)
Geralmente, lemos esse versículo como algo que mostra as condições em que o Espírito se revelou. Eles estavam re-unidos, então podemos observar como a unidade é importante para o mover do Espírito. A unidade da igreja é, de fato, uma preocupação legítima e atual. No entanto, quero enfatizar outro ponto desse versículo: o fato de eles estarem reunidos num só lugar. Poderíamos pensar na possibilidade do Espírito descer sobre as pessoas em diversos lugares, poderíamos pensar em uma unidade espiritual, de fé e de compreensão que não se manifestasse de maneira visível ou material, mas o Espírito parece, neste momento, apresentar condições de localidade, de território.
Eles estavam em um mesmo lugar, era não somente um espaço, mas era um espaço comum, um espaço para todos (todas e todes). Podemos pensar claramente na igreja como um espaço comum onde o Espírito se move. De fato, é o que está surgindo aqui. Podemos então pensar: a Igreja é um lugar para todos, todas e todes? Chegamos aqui, mais uma vez (pois já falei disso em outro texto dessa série) no problema da falta de acolhimento de pessoas LGBTQIA+. A igreja falha (e até insiste em falhar) em nos acolher e não chegar até nós. A igreja, então, tem falhado em ser um espaço comum. Será que nós não precisamos da mensagem de boas-novas? Será que não podemos ser batizados no Espírito? Será que querem nos batizar com outro fogo?
Vamos sair um pouco disso, a Igreja não é o único lugar onde o Espírito se move. O Espírito apesar de se manifestar de maneira local, não se limita a um lugar específico. O Espírito se manifesta em espaços comuns, “onde estiverem dois ou três reunidos”. Penso na hospitalidade como um exercício de tornar um lugar um espaço comum, um lugar que em um primeiro momento pertence a alguém de forma específica e particular e se torna algo compartilhado e de todes que estão ali. Acredito que a hospitalidade seja um exercício cristão, e agora percebo que no exercício da hospitalidade o Espírito se move e se faz presente de maneira especial e real.
Onde encontramos exemplos de hospitalidade? Encontramos nas casas de acolhimento LGBTQIA+. Penso na Casa Nem, aqui no Rio de Janeiro, penso na Casa 1 em São Paulo e em outras casas espalhadas pelo Brasil, casas que acolhem pessoas da comunidade LGBT+ em situação de vulnerabilidade. Penso na série de TV Pose que mostra a realidade da comunidade nos EUA na década de 80 e 90 com as chosen families ("famílias escolhidas”) que são famílias formadas por várias pessoas que foram expulsas de casa e marginalizadas por conta de sua identidade de gênero e/ou orientação sexual. Penso nos grupos de rede social de cristãos LGBTQIA+, que debatem suas experiências de fé, identidade de gênero e sexualidade, compartilham suas dificuldades e suas alegrias e se apoiam.
Para a comunidade LGBTQIA+, a hospitalidade, o ato de tornar um lugar um espaço comum, é algo orgânico. Devido a marginalização de nossos corpos e existências, nos articulamos e resistimos construindo laços de fraternidade. A partir deles reivindicamos nossas existências, inclusive no espaço religioso. Aprendemos desde cedo que a exclusão é um mal e respondemos com acolhimento². Os espaços que eu citei e a própria comunidade são, portanto, espaços totalmente propícios ao mover do Espírito e creio que o Espírito já se move neles.
De repente, veio do céu um som como o de um poderoso vendaval e encheu a casa onde estavam sentados. Então surgiu algo semelhante a chamas ou línguas de fogo que pousaram em cada um deles. (v.2-3)
O Espírito aqui mostra outra característica: ele é experiencial. Se escuta um som e se vê línguas de fogo. O Espírito não se limita a uma fé racionalista, ele também é uma experiência estética, a ser contemplada, visualizada e experimentada. Existe uma criatividade artística no Espírito. A criança viada que canta hinos na igreja, o menino da dança, a menina do violão, o “jovem criativo” que organiza a arte da igreja, tudo isso é exemplo da mais bela manifestação do Espírito que enche a comunidade LGBTQIA+ de criatividade e sensibilidade. O Espírito de Deus se move em nós e nós dançamos como o rei Davi. Ele também está nos sentimentos, ele é Consolador e enxuga nossas lágrimas quando somos vítimas de preconceito e violência, mas ele também está na alegria do mês de Junho, ele ferve com a gente nas paradas.
Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas conforme o Espírito os habilitava. (v. 4)
O falar dos que estavam ali era um falar despretensioso, falavam sem se preocupar com o que diziam, pois não entendiam. Isso acontece para que eles possam falar a língua do outro. O Espírito, aqui, nos convida a nos desconectar de nossa língua, nossos dizeres, nossos raciocínios e sistematizações para acessarmos o modo de pensar do outro e a partir deste novo modo, levar o evangelho. A língua sempre está em uma cultura específica e o Evangelho tem esse poder (inexplicável, eu diria) de fazer-se compreensível em diferentes culturas e por meio delas, possuindo características próprias em cada uma delas.
O Pentecostes mostra, então, a possibilidade da diversidade, de outras línguas, modos de pensar, de outras experiências de fé. A comunidade LGBTQIA+, com suas muitas bandeiras, letras e cores, já vive a diversidade dentro dela e ela por si mesma é diferente e alternativa. Nós não temos uma língua diferente, mas temos um dialeto, temos dizeres, memes e uma cultura que é muito importante para nós. A comunidade LGBTQIA+, sendo afastada dos espaços religiosos, tem uma conexão especial e diferente com o Espírito. Um Espírito que habita outros lugares (como vimos acima) para além dos templos, que se manifesta em famílias nada tradicionais, um Espírito que sai do armário da igreja e fala pajubá para chegar até nós, um Espírito que nos faz dançar vogue nos balls.
Enquanto a igreja não se permite desapegar de seus dizeres e raciocínios cis-heteronormativos e não se permite acessar e contemplar nossas existências, não ficamos alheios. O Espírito se faz compreensível para nós e pela nossa cultura, falamos em “dialeto estranho”. Por mais que não queiram ele já desceu sobre nós e temos nosso próprio modo de experimentá-lo e contemplá-lo. Podemos ser chamados de perversos e bêbados (v.13), mas isso não muda nada.
Que neste período de Pentecostes, venhamos invocar “vem, Santo Espírito”. Que possamos nos encher de amor fraternal e hospitaleiro e exercitar, dentro dos limites da pandemia, nossa hospitalidade. Que sejamos revigorados pelo Espírito e de forma criativa venhamos celebrar nossas existências no mês que vem. Que nossa diversidade não seja empecilho, mas oportunidades de movimentos de poder do Espírito Santo nas nossas vidas. Amém.
1. Link dos outros textos dessa série, sobre o advento e a quaresma: https://vivemcomunhao.medium.com/advento-de-todos-e-no-seu-todo-f53f6bc92215
https://vivemcomunhao.medium.com/eterna-quaresma-crist%C3%A3os-ams-lgbtqia-sem-perspectiva-de-ressurrei%C3%A7%C3%A3o-fdbb8437eb32
2. Este texto de Jonatas Damasceno expõe de forma mais específica sobre a benção da hospitalidade sobre a comunidade, recomendo muito: https://jonsdamaceno.medium.com/deus-%C3%A9-com-as-lbgt-amor-divino-e-b%C3%AAn%C3%A7%C3%A3os-%C3%BAnicas-derramadas-sobre-n%C3%B3s-9ec4df56ebde