Rio como Refúgio

A diáspora síria para o Rio de Janeiro

Glauco Lessa
Para O Bem Da Verdade
9 min readJun 15, 2016

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Foto: Murad Sezer (Reuters).

Por Gabriel Pellegrini, Glauco Lessa, Juliana Poiares e Maiara Santos

— Não vá para a Itália. Vá para o Brasil.

Essa era a frase que ecoava na cabeça de Ahmad. Tão logo chegou, fora ilhado em um quarto, de apenas uma cama, uma pia e um vaso sanitário. Estava na Itália. Quem é Ahmad?

— Vá para o Brasil.

Quem dera ele pudesse. Na verdade, Ahmad nunca tinha pensado em ir para o Brasil, nem para a Itália. Descendente de palestinos, ele sabe bem que as marcas da guerra não se apagam facilmente de uma geração para a outra. Sua avó tinha levado a família para o Líbano, onde ele também viveu. Foi na Síria, entretanto, que se estabeleceu e fez seu lar, agora destruído por bombas, e não importa de quem elas eram. Não mais.

A porta abriu. Uma porção de comida em um prato foi posto. A comida era péssima, mas era pouca, e já era o terceiro dia confinado nesse quarto. Sem água, comida e fumo o suficiente. Ahmad repetia, em seu inglês de forte sotaque árabe:

— Eu desejo ir para a Alemanha — Todos o entendiam perfeitamente, mas as autoridades italianas não lhe permitiam.

No quarto dia, seu pedido foi respondido com um grande soco no rosto. Quatro policiais grandes e armados estavam no quarto. Um deles vociferou, e Ahmad nunca esquecerá seu rosto:

— Eu odeio vocês, árabes! Não queremos mais lixo como você no nosso país! Você está indo para o Equador. Levante-se e vamos!

— Mas eu disse a vocês, eu tenho uma irmã que mora na Dinamarca. Quero encontrar com ela, mas para isso tenho que ir para a Alemanha. O nome dela é Darla! Podem procurar!

— Você não vai a lugar nenhum da Europa além deste quarto — e o espancaram mais forte.

Então, Ahmad foi algemado e levado para o avião. Depois de cerca de uma semana no Equador, os italianos o trouxeram ao Brasil. Toda vez que um repórter ou jornalista o entrevista ao lado de sua barraquinha de quitutes árabes, ele se lembra do quão horrível foram aqueles quatro dias. Hoje, você pode encontrá-lo por uma das ruas da Zona Sul do Rio, vendendo suas esfirras e pensando no futuro.

Ahmad já chorou demais. Viu coisas que nunca vai esquecer. Hoje ele ri. Ele ri como refúgio.

Na terra onde canta o sabiá

Vivendo uma saudade que nem Gonçalves Dias seria capaz de descrever em uma “Canção do exílio”, milhões de sírios têm abandonado seus lares e sua terra para fugir da sombra da morte. Ahmad e Rami são dois dos vários refugiados que podem ser encontrados pelas ruas da cidade trabalhando.

Ambos moravam no mesmo país e poderiam ser amigos de longa data, mas só se conheceram no Brasil. A guerra civil que assola a Síria desde 2011 fez com que essa ironia fosse possível. Os dois têm histórias diferentes de como chegaram aqui (e fugiram de lá), mas carregam a mesma tragédia e a mesma vontade de recomeçar suas vidas.

Rami trabalhando na Rua São Clemente. Foto: Maiara Santos.

Rami, de 25 anos, vivia no bairro de Daraya, na cidade de Damasco. Foi um dos primeiros bombardeios da guerra, e muito simbólico para o começo do conflito. O sírio buscou refúgio no Líbano, onde ficou por um ano. Depois, ao ouvir falarem bem da receptividade no Brasil, resolveu vir para cá. Chegou ao Espírito Santo sem saber Português nem Inglês nem conhecer ninguém, e aprendeu nossa língua no dia-a-dia. “Depois de três meses, fui para o Rio, porque ouvi que mais sírios estavam sendo recebidos lá e conseguindo trabalho”, Rami contou.

Ahmad acredita. Foto: Maiara Santos.

Já Ahmad, de 31 anos, queria ir para a Europa, porque sua irmã mora na Dinamarca, onde está casada e tem três filhos. Ao chegar na Itália, entretanto, sua entrada foi impedida pela polícia, e ele foi redirecionado para o Brasil. Ahmad ainda não fala Português fluentemente, pois chegou há menos tempo que Rami, mas consegue se comunicar em Inglês.

Ambos, já no Rio, encontraram o apoio da Cáritas, organização católica que, dentre outros trabalhos relacionados a direitos humanos, ajuda refugiados vindos de todos os lugares que chegam ao Brasil. Foi questão de tempo para que pudessem começar a trabalhar em suas próprias barracas, vendendo esfirras e outros lanches árabes. A recepção das pessoas, segundo Ahmad, é muito calorosa. “As pessoas se emocionam quando conto minha história. Elas frequentemente me perguntam sobre como as coisas estão na Síria. Até agora, o povo brasileiro me recebeu muito bem. Não sofri nenhum tipo de preconceito”, ele disse, quando teve de se ausentar da entrevista por um instante — os clientes o chamavam pelo nome e o abraçavam, em meio a selinhos no rosto e falas entusiasmadas. Ahmad já é famoso pela Zona Sul do Rio; até foi entrevistado por uma repórter do NBR, canal televisivo do governo federal.

A família de Ahmad está segura no Líbano, mas a de Rami ainda está na Síria. “No começo, a comunicação era muito difícil, mas de uns tempos para cá, até ficou mais fácil”, Rami desabafou, apesar de ainda estar muito preocupado com o rumo que o conflito pode tomar em seu país.

Toda guerra é mundana

O ano era 2011. O mundo árabe vivia o auge dos protestos e revoltas contra governos que ocupavam o poder há décadas no Oriente Médio. Era a Primavera Árabe. Milhares de pessoas foram às ruas do Egito, Tunísia, Argélia, Jordânia, Iêmen, e Líbia (para citar alguns), reivindicando maior participação na política de seus países.

Na Síria, as manifestações começaram na cidade de Deraa, a pouco mais de 100 quilômetros da capital Damasco, quando pessoas se reuniram para protestar após a prisão e tortura de adolescentes que pintaram slogans da Primavera Árabe no muro de uma escola. A forte repressão das manifestações pelas forças de segurança do governo de Bashar Al Assad, há 16 anos no poder, aumentou ainda mais a indignação da população com a situação política e econômica do país. A Síria se transformou em um barril de pólvora prestes a explodir.

Manifestação em Deraa, onde 16 manifestantes morreram. Foto: AFP.

A pressão sobre Assad o fez perder apoio de setores do Exército Sírio. Devido à carência de aliados, no fim de 2011, militares desertores de suas tropas regulares e civis formaram o Exército Livre da Síria. De orientação secular, a nova força lutou para derrubar o governo e instalar uma liderança mais democrática no país.

Em 2012, a Cruz Vermelha e a ONU classificaram o conflito na Síria como guerra civil, abrindo caminho para a cobrança da aplicação do Direito Humanitário Internacional e para a investigação de crimes de guerra.

Na mesma época, as manifestações ganharam um contorno sectário. Uma série de grupos rebeldes surgiu e se apropriou de uma identidade religiosa como forma de conquistar apoio político. Nessas circunstâncias, em novembro de 2012, o Exército Livre da Síria se aliou a outros grupos (muitos de caráter religioso) para formar a Coalizão Nacional Síria da Oposição e das Forças Revolucionárias.

Segundo Vinícius Armele, mestrando em Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF), as manifestações inicialmente não tinham caráter religioso. Contudo, com a eclosão do conflito armado, o caminho se abriu para grupos fundamentalistas ganharem força.

Deus e o Estado

Embora o governo sírio seja de orientação secular, Bashar Al-Assad pertence à vertente alauita do Islã (próxima do Xiismo), enquanto cerca de 80% da população é sunita. Essa discrepância ajudou o fortalecimento de questões religiosas, culminando na ascensão de organizações radicais.

Dentro dos grupos jihadistas, o que mais chama a atenção do mundo pelas constantes violações dos direitos humanos é o EI (Estado Islâmico ou Daesh). O grupo é responsável por diversos ataques, como o atentado de Paris, em novembro de 2015, e a tomada de controle de metade do território sírio, incluindo o sítio arqueológico de Palmira e os campos petrolíferos do país. Para Armele, “o Estado Islâmico não é fruto da Síria. Ele é decorrente da invasão do Iraque por parte dos Estados Unidos em 2003. Grande parte do setor de comando do EI era ligado a altos cargos do governo de Saddam Hussein no Iraque”.

O Daesh também foi responsável pelo ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo na França, no começo de 2015. Foto: Getty Images.

De orientação sunita, o EI estabeleceu Abu Bakral Al-Baghdadai como líder e sucessor do Profeta Maomé ao se autoproclamar um califado, em junho de 2014. Também ordenou todos os muçulmanos a jurarem lealdade a seu Califa.

Como o Daesh se mantém

Não se sabe exatamente quantos integrantes o Estado Islâmico possui. As estimativas da CIA (Agência de Inteligência do Governo Estadunidense) apontavam para 31.500 membros, mas os números do Syrian Observatory for Human Rights (Observatório Sírio dos Direitos Humanos) estimam mais de 50.000 jihadistas.

Para manter o grupo e realizar ataques, o EI obtém recursos por meio de extorsões praticadas contra comerciantes das zonas ocupadas pela organização terrorista, impostos sobre minorias religiosas forçadas a pagar taxas por não se converterem, sequestros que renderam 20 milhões de dólares só em 2014, e doações privadas feitas por instituições de caridade islâmicas do Oriente Médio, principalmente da Arábia Saudita e Catar.

Queda do caça russo.

Por estar no controle de uma série de poços de petróleo, o EI também é financiado pelo dinheiro da venda do combustível fóssil. Entre os países que consomem o petróleo vindo do Estado Islâmico está a Turquia, sob forte suspeita da comunidade internacional. Em novembro de 2015, a Rússia acusou o presidente turco Recep Tayyip Erdogan e sua família de estarem diretamente envolvidos no tráfico de petróleo vindo do EI. A derrubada de um caça russo pela Turquia, naquele mesmo mês, teria sido uma forma de proteger as rotas e as vias por onde passam o petróleo.

A Guerra é na Síria, mas não só dela

As suspeitas contra a Turquia, Arábia Saudita e Catar são somente a ponta do iceberg de um intenso jogo de interesses que envolve os principais países do Oriente Médio, Estados Unidos e Rússia.

No caso da Turquia, embora o país se declare oficialmente como oposição a Assad, o seu verdadeiro objetivo por trás do conflito é enfraquecer as forças curdas principalmente ligadas ao PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), que tem se estabelecido como a principal linha de frente no combate ao EI.

Já para a Arábia Saudita, o conflito sírio é a oportunidade de retirar do poder um governo alauita e abrir caminho para uma liderança sunita. Assim a zona de influência do Irã, seu rival, diminui. Os sauditas têm contrabandeado armas e financiado uma série de grupos de oposição no país.

O Irã, por sua vez, é o aliado mais forte do governo de Assad. O governo do Teerã tem fornecido armas, suprimento e treinamento às forças dos governistas. O país também “é um dos principais países islâmicos do mundo, só que diferente das outras nações islâmicas, é de maioria xiita e possui uma política externa que apoia governos e movimentos liderados por xiitas”, de acordo com Armele.

No ocidente, os Estados Unidos mantêm a posição de opositor ao governo sírio e ao EI. Os americanos lideram uma coalizão que está conduzindo ataques aéreos contra os territórios controlados pelo EI, ao mesmo tempo que treina outras forças de oposição a Assad.

A Rússia também realiza bombardeios para conter o avanço do EI, mas diferente dos americanos, Moscou é aliada do governo sírio de Assad há décadas e luta pela sua manutenção no poder. O pesquisador esclarece que “A Síria se encaixa dentro do plano estratégico russo. É importante manter um governo sírio que esteja de acordo com a Rússia.”

Atualmente, o cenário político sírio se encaminha para a consolidação de Bashar Al-Assad no poder, enquanto as forças do Estado Islâmico têm perdido território graças aos avanços curdos e da coalizão internacional.

No entanto, mesmo com a retração do EI, a crise na Síria ainda parece longe de acabar. Em meio aos interesses internacionais e os conflitos com a política interna, a população é colocada em segundo plano no grande tabuleiro da política internacional.

Em meio a esse cabo de guerra geopolítico, segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, a guerra em cinco anos já causou 470 mil mortes e mais de 4,8 milhões de refugiados. Quase cinco milhões de vozes, por vários cantos do mundo, entoando suas próprias canções do exílio.

Não permita Deus que morram, sem a chance de voltarem para lá.

Ahmad e Nawaf, outro colega refugiado. Foto: Maiara Santos.

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Glauco Lessa
Para O Bem Da Verdade

Autor, assistente editorial na Jambô Editora, redator da Dragão Brasil. Ele.