Medusa

Graci Paciência
3 min readMay 5, 2023

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Em 2015, a cineasta carioca Anita Rocha da Silveira balançou o cenário do audiovisual brasileiro com o seu primeiro longa-metragem, Mate-me, Por Favor (atualmente, disponível na Netflix). Ela já havia dirigido os curtas O Vampiro do Meio-Dia (2008), Handebol (2010) e Os Mortos-Vivos (2012), mas foi com a história de uma onda de assassinatos e a curiosidade que isso gerou que a direção de Anita chegou a dois públicos: o do cinema nacional e o os fãs de terror. Com Medusa, ela volta a trazer questões ligadas ao universo feminino para o centro de sua narrativa. Dessa vez, alguns aspectos religiosos são exacerbados e o espectador mergulha na piscina do conservadorismo do Brasil do século XXI.

A jovem Mari (Mariana Oliveira) está inserida em uma bolha social que preza pela submissão feminina e onde a aparência de mulher perfeita é supervalorizada, o que a faz tentar controlar tudo e a todos, ao lado das amigas. Para isso, as garotas formam uma gangue que têm como missão punir jovens como elas que têm a ousadia de não se dobrar a costumes ultrapassados e posicionamentos que já não cabem nos dias de hoje, incluindo o termo “bela, recatada e do lar”.

Inserida em um meio tão opressivo, Mari vê com naturalidade a violência provocada pela igreja e não se dá conta dos absurdos que ela e suas amigas sofrem.

Há a lembrança e uma espécie de culto em torno de Melissa (Bruna Linzmeyer, de O Grande Circo Místico), uma mulher que não abaixou a cabeça para as regras impostas pela igreja e pela sociedade e acabou pagando um preço alto por isso. Quando Mari decide ir em busca de Melissa e descobrir o que aconteceu com ela, uma série de questionamentos surge em sua cabeça e a jovem perde a segurança em relação ao que ela considera seus princípios.

Michelle (Lara Tremouroux, da novela Um Lugar ao Sol) também é uma personagem interessante e traz um oceano a ser estudado, com comportamento contraditório, resultado da opressão sob a qual vive e a aceitação do papel que lhe é designado. Ver as duas personagens, Mari e Michelle, em tela e perceber a distinção de seus objetivos, por mais que haja semelhança no que secretamente desejam para si mesmas, humaniza as jovens e as torna mais reais. No fim das contas, são jovens que conhecem pouco do mundo, mas que acham que conhecem o suficiente para a vida que acreditam que é a que lhes cabe.

Elas vão de encontro não somente com todo o risco de viver em uma sociedade que julga e pune a mulher todos os dias, mas também de perceber os perigos do fascismo, que está presente, mesmo que de maneira tímida, no Brasil. A alienação, em todos as suas formas, apresenta risco aos envolvidos e aos que os cercam. É preciso erguer a cabeça para não se permitir que as consequências dessa alienação tome conta de todos, um por um.

A trilha sonora do filme, com synthpop em destaque, dá o toque final no clima dark, gótico e nostálgico. O ritmo dançante se contrapõe ao clima de opressão do filme e desperta a vontade de se rebelar contra tudo aquilo.

O amadurecimento do trabalho de Anita, de um longa para o outro, é perceptível. Sua direção, aliada à estética que usa no filme, se mostra mais firme, segura, ousada e consciente do que quer provocar. O clima sombrio do filme expõe a influência de Dario Argento (Suspiria) sem abrir mão de mostrar a própria identidade. O reconhecimento de Medusa consagra Anita Rocha da Silveira como um dos nomes do terror nacional que merecem ser acompanhados de perto, ao lado de Gabriela Amaral Almeida (O Animal Cordial) e Dennison Ramalho (Morto Não Fala).

Medusa estreou na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Depois, participou de diversos festivais, incluindo o IndieLisboa (Prêmio Especial do Júri) e Festival do Rio (Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Atriz Coadjuvante para Lara Tremouroux). É uma distribuição da Vitrine Filmes, por meio do projeto Sessão Vitrine, contemplado pelo PROAC 34/2022, programa de fomento do Governo do Estado de São Paulo e Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo. Após o lançamento comercial nos Estados Unidos, França e Alemanha, o filme estreia nos cinemas brasileiros dia 16 de março de 2023.

Texto publicado originalmente no site Cinema de Buteco.

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Graci Paciência

Gosto terror e rock. Autora de "Confissões de uma Adolescente Grávida" e host do podcast Soul do Rock. Twitter: @gratona_ https://medium.com/@cronicasdagraci