Existe doutrinação nas escolas?

Gregório Grisa
4 min readNov 22, 2018

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Parece-me relevante tentarmos entender a que se referem os propositores do Projeto Escola Sem Partido quando afirmam existir ampla doutrinação nas escolas e universidades brasileiras. Afora os casos caricatos e condenáveis de falta de bom senso em que docentes, de qualquer matiz ideológica, se usam do espaço de sala para fazer propaganda de algum candidato ou partido, do que estamos falando?

Pelo discurso e pelas propostas apresentadas pela bancada evangélica (que não representa a diversidade da população evangélica), pelos atores políticos que orbitam em torno do presidente da república, desconfio que o que eles compreendem por doutrinação não pode ser assim classificado. Doutrinar é um ato de catequese, trata-se de incutir uma doutrina ou conjunto de valores fechados.

Por exemplo, quando professores de sociologia debatem as revoluções europeias, o iluminismo, o marxismo e o liberalismo, explicando a seu modo o que cada corrente de pensamento propunha ou defendia, ele está apresentando o estado da arte do seu conteúdo. Isso será feito sempre de forma diversa, conforme a postura, a formação e a personalidade do professor. Porém, o simples fato de debater ou opinar sobre esses temas parece ser considerado doutrinação. “Ah, mas o professor pode ser tendencioso”. Há por traz dessa afirmação um anseio ingenuo de que é possível uma neutralidade técnica e política na educação.

Dentre os objetivos da educação previstos na Constituição Federal está o de preparar para o exercício da cidadania, o que pressupõe desenvolver habilidades para entender as desigualdades sociais e intervir a fim de diminuí-las. Em especial nas humanidades, o fenômeno estudado é a sociedade, constituída de contradições, desigualdades e diversidades. Qualquer tentativa de se apresentar como neutro é uma tomada de posição política pela naturalização das relações sociais como elas estão naquele momento histórico. Portanto, o que pode estar sendo considerado doutrinação nada mais é do que a formação para o protagonismo político que nos faz caminhar como civilização, ou seja, a preparação das futuras gerações para que elas busquem superar iniquidades e preconceitos.

Quando dados em relação a desigualdade de gênero no mercado de trabalho são apresentados e se alça a categoria do machismo (culturalmente enraizado) como central para explicar essa desigualdade, estaríamos doutrinando? Poderia dar vários exemplos de casos que são tomados como doutrinação e não necessariamente são. Isso ocorre em função da restritiva visão educacional, política e moral que caracteriza os setores que estão propondo a Escola Sem Partido.

Cresceram significativamente nas últimas duas eleições as bancadas consideradas conservadoras. O presidente eleito (seu partido) e governadores próximos a ele tiveram expressiva votação.

Pesquisas de opinião que aferem as preferências das pessoas em relação aos costumes e temas morais mostram como o brasileiro tem um perfil conservador. Essa é uma constatação. Temas como drogas, armas, segurança pública e aborto sempre encontram resistências sólidas no imaginário popular.

Como afirmar que há essa sistêmica doutrinação diante disso?

O que se deduz é que a denúncia de suposta doutrinação generalizada se presta como estratégia para classificar o campo político oposto como “ideológico”, como “errado e perigoso”. Mostra o intento de silenciar o pensamento contrário e não de promover “neutralidade”, como se vende.

Mas é ainda mais grave, a confusão é tamanha que em função dessa pauta da doutrinação se instituem correlações absolutamente falsas: direitos humanos = ideologia de esquerda, debate sobre desigualdade de gênero = “incentivo a homossexualidade”; educação sexual = sexualização precoce; racismo = fomentar vitimização e tantas outras.

Para você isso pode parecer tolo, mas tais correlações têm uma forte receptividade em boa parte da sociedade.

Infelizmente, do ponto de vista educacional, o que existe é o contrário. Temos uma defasagem enorme de debates sobre cidadania e direitos humanos. Discussões sobre ciência política, ideologia, liberdades individuais, discriminações e desigualdades não ocorrem em grande escala e de modo qualificado no país.

Ao fim e ao cabo, aquilo que de maneira vulgar essas pessoas classificam como doutrinação não é um proselitismo partidário, esse sim condenável, mas o florescimento dos debates acima listados, tão necessários.

Em uma sociedade que se mata, que não consegue conviver com a divergência, que julga e violenta o diferente e que banaliza a segregação e a desigualdade, todos os debates são urgentes. A pluralidade de concepções pedagógicas e a liberdade de aprender e ensinar são pilares civilizatórios.

A educação nacional tem desafios enormes e complexos. Sabe-se como se pode dar início a um projeto baseado em evidências e em boas práticas nacionais e internacionais. Definitivamente esse tema da doutrinação não é uma pauta prioritária, ela mais deturpa do que elucida.

Há mecanismos para combater ações indesejadas por parte de professores e eles devem ser usados se for o caso. Nada justifica o cerceamento e o constrangimento dos profissionais da educação. Nosso desafio é garantir uma escola cada vez mais plural, diversa e aberta aos temas mais delicados.

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Gregório Grisa

Doutor em Educação e Pós-Doutor em Sociologia pela UFRGS | Professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul