O “ambiente acadêmico” está sendo massacrado como diz Bolsonaro?

Gregório Grisa
5 min readMar 11, 2019

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O presidente fez (imagem abaixo) declarações no Twitter (11/03/2019) sobre o ambiente acadêmico, que segundo ele vem sendo massacrado pela ideologia de esquerda, o que acarretaria o “esquecimento” da formação do cidadão em prol da conquista de militantes. Será mesmo?

É difícil depreender o que o presidente está chamando de “ambiente acadêmico”, irei tomá-lo aqui pelas universidades (199 unidades) públicas e privadas, centros universitários (189 unidades) e faculdades (2020 unidades). Esses espaços, pela amplitude de seus números, são necessariamente diversos e multifacetados, quem viveu algum tipo de experiência acadêmica sabe disso.

O Brasil tem mais de 340 mil docentes atuando na educação superior. Nas Universidades Federais estamos falando de 114 mil professores. Todas áreas do conhecimento, formações, trajetórias e visões políticas estão representadas nesse conjunto de profissionais.

De acordo com a CAPES, nosso sistema acadêmico se divide em 9 grandes áreas: ciências exatas e da terra; ciências biológicas; engenharias; ciências da saúde; ciências agrárias, sociais aplicadas; humanas; linguística e artes e multidisciplinar. Dentro dessas grandes áreas existem pelo menos 49 áreas de avaliação da CAPES, dentro dessas centenas de subáreas. Todas as áreas abarcam mais de 38,7 mil cursos de graduação e pós-graduação stricto-sensu no Brasil. Há mais de 400 periódicos do Brasil indexados na Plataforma SciELO e muitos outros espalhados pelas instituições.

Seria fundamental analisar os periódicos nacionais, os internacionais em que autores brasileiros publicam e os eventos consagrados de todas áreas para identificarmos como ocorre o “enaltecimento do socialismo” no ambiente acadêmico. Outro exercício seria o de analisar todos os currículos dos cursos de graduação e a grade de disciplinas da pós-graduação no Brasil para ver se identificamos o que ele denuncia.

Talvez o presidente esteja se referindo apenas a algumas áreas do conhecimento, o que já reduziria a ordem de grandeza e a intensidade (aparelhamento gigantesco; massacre) do problema, mas caberia também fazer o levantamento proposto acima para as supostas áreas a que ele se dirige: humanidades, ciências sociais e artes.

Mesmo que nessas áreas tudo que o presidente considera “de esquerda” (humanistas, marxistas, sociais-democratas, iluministas, decoloniais, pós-modernos, liberais-igualitários, comunitaristas, etc.) represente maioria, se encontrará ampla diversidade de posições e abordagens. Cabe lembrar que docentes dessas áreas do conhecimento não constituem a maioria dos docentes em número absoluto, por óbvio.

Talvez o presidente entenda que produção acadêmica e currículos não possam ser critério para identificar o referido domínio da esquerda e sua formação de militantes. Qual seria a evidência que comprova que isso seja algo disseminado no meio acadêmico?

Os cursos que concentram a metade de todas matrículas no ensino superior são razoavelmente bem distribuídos em termos de área do conhecimento (imagem abaixo). É muito difícil imaginar que as pessoas estejam homogeneamente submetidas ao “domínio da esquerda” no meio acadêmico.

Censo da Educação Superior — 2017 (INEP)

O presidente dá a entender que a formação das pessoas no meio acadêmico está sendo esquecida. Essa é uma afirmação difícil de ser feita, o número de estudantes cresceu muito nas últimas décadas, a maioria está na rede privada.

Censo da Educação Superior — 2017 (INEP)

Mesmo assim, os resultados do ENADE não indicam queda sistêmica na qualidade da formação. No caso das universidades federais, as avaliações têm sido regularmente positivas, seja qual for a área do conhecimento. Os Programas de Pós-Graduação de excelência cresceram no Brasil, como mostra levantamento da própria CAPES.

A produção acadêmica vem aumentando de modo significativo. Hoje o Brasil ocupa a 13° posição na produção científica mundial mesmo com as graves restrições orçamentárias para a ciência e a tecnologia no Brasil.

Em Relatório da Clarivate para a CAPES sobre a produção científica do Brasil de 2011 a 2016, observamos que as publicações de impacto internacional também vem crescendo.

Além de ampliar seu espaço na publicação global o Brasil tem intensificado sua capacidade de colaboração, mesmo quando nos comparamos com países como China e Índia e Japão.

O número de mestres e doutores cresceu de modo importante na última década. Das poucas metas do Plano Nacional d Educação que devemos atingir até 2024, uma é essa (imagens abaixo). Isso significa formação acadêmica mais qualificada e não o contrário. Portanto, é difícil dizer que a formação tem sido “esquecido” no ambiente acadêmico em nome de suposta doutrinação.

INEP
INEP

No último tuíte o presidente reivindica o monopólio da ética e da virtude para seu lado do espectro político (a direita). O meio acadêmico é composto por pessoas de direita, de centro e de esquerda. O volume de pessoas nesses espaços não permite a simplificação realizada por Bolsonaro.

Ao invés de deduzir, com base em exceções, que exista uma conspiração acadêmica de esquerda que prejudicaria a formação e aliciaria estudantes adultos (os ainda poucos que chegam lá), seria bom pensar em como combater o grau de desemprego entre os doutores e mestres no país, por exemplo.

Temos um ambiente acadêmico plural que faz muito com os insumos que tem. A ciência no Brasil é praticamente realizada nas instituições estaduais e federais. O convite para trabalharmos juntos feito pelo presidente no seu post deveria contemplar os professores e não os excluir por motivos imprecisos e/ou inexistentes.

O temor legítimo de quem faz ciência e pesquisa no Brasil, em especial nas instituições públicas, é o de que esse discurso do presidente sirva de bode expiatório para implementação da proclamada “revolução cultural” que o governo pretende fazer. A introdução de agenda alicerçada nos valores morais e de costumes do grupo político do presidente como uma política de Estado para as universidades representaria forte ataque a autonomia dessas instituições.

Com base nessa narrativa fictícia de “domínio perverso da esquerda”, poderemos experimentar a ascensão autoritária de práticas superadas na ditadura, como a nomeação de interventores e a censura de determinados temas e conteúdos. A sociedade civil deve ficar atenta a esses e outros sinais (relação com a imprensa) cotidianamente dados pelo atual governo.

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Gregório Grisa

Doutor em Educação e Pós-Doutor em Sociologia pela UFRGS | Professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul