O Que Faz de “Witcher 3” um PUTA Jogo

Guaracy Carlos da Silveira
6 min readMar 16, 2017

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Witcher III — The Wild Hunt

Segundo o site IGN “The Witcher III” é o mais premiado jogo de todos os tempos. O CD Projekt RED (time de desenvolvedores) se empenhou, primando por competência técnica e um profundo respeito com o público consumidor, evitando a sanha de ganho fácil que assola o mercado na forma de DLCs cobradas. (A equipe lançou duas é verdade, ambas excelentes e cheias de conteúdo).

No prestigiado GAME AWARDS de 2015 recebeu o premio de jogo do ano. Dentre as categorias em que foi premiado incluem-se: Melhor Movimento, Performance, Som, Direção de Arte, Feito Técnico e Design Visual. Todas estas fazem de Witcher 3 um excelente jogo. O que faz dele um PUTA jogo é a Narrativa (categoria em que também foi premiado).

Para os que desconhecem o jogo, a série The Witcher é baseado na obra do escritor polônes Andrzej Sapkowski (com 8 livros traduzidos para o português). Estes são ambientado num mundo medieval fantasioso, os Witchers são uma casta de profissionais especializada em caçar monstros, treinados desde crianças e submetidos a mutações que lhes concedem poderes sobre-humanos. O personagem principal “Geralt de Rivia” vaga pelo mundo vendendo seus serviços profissionais.

O quatro primeiros livros da série

Diferentemente da abordagem “monstro da semana” muito comum em obras de fantasia, onde monstros pulam detrás de arbustos em qualquer cruzamento implorando para serem abatidos, a prática profissional de um Witcher envolve um bocado de investigação e preparo. Ao invés de se atirar as cegas de espada em punho contra qualquer criatura, a obra de Andrzej enfatiza o processo de coleta de informação sobre o inimigo (investigando cenas do crime, realizando necropsias, buscando rastros e compreendo o habitat dos monstros), elemento este que foi transposto para o jogo de forma magistral. Engajar-se na busca de monstros, como em qualquer caçada, envolve o uso de iscas, armadilhas e um bocado de preparo por parte do jogador.

Como resultado disto, no mundo de Witcher os monstros não existem num vácuo. Eles alimentam-se, deixam rastros, defecam, copulam e enfim, comportam-se como criaturas vivas (ou morto-vivas). Isto confere um excelente aspecto de solidez e realismo as histórias. Ao incorporar estes elementos no jogo os Designers fazem com que o jogador passe a ter de se preocupar com os combates, algo pouco comum em jogos do gênero, que tornam-se uma tediosa sucessão de lutas.

Geralt de Rivia (protagonista do jogo)

A apropriação dos elementos da narrativa de Andrzej Sapkowski feita pelos desenvolvedores é magistral, de modo que o jogador acaba por envolver-se não só na fruição do jogo, mas também na história que lhe é contada.

Ilustro isto com um relato pessoal de minha experiência com o jogo.

Em dado momento da trama, conheci “Phillip Strenger” também conhecido como “Bloody Baron”, que me incumbiu de encontrar sua esposa e filha, supostamente sequestradas. No curso de minha investigação, encontrei evidências contrárias a isto e quando confrontei o barão, descobri na verdade uma sequencia de episódios de violência domestica que culminaram na fuga de sua esposa e filha. Contudo, contrariando a imagem inicial de bruto insensível o barão acabou revelando-se ser uma pessoa complexa, arrependida e disposto a fazer o necessário para recompor a família que destruiu.

No universo de Witcher nada é em preto e branco, mas rajado de tons de cinza. Os casamento do barão regeu-se por adultério e crueldade de ambas as partes, num cenário onde fica bem difícil definir quem estava errado. No fim das contas me comprometi a encontrar esposa e filha do barão em troca de informações acerca de minha enteada Ciri (a quem Geralt considera uma filha).

Phillip Strenger (The Blood Baron)

O desenrolar desta busca, caracteriza-se por uma sequencia de missões intercaladas com diálogos entre os dois personagens. Não vou narrar toda a busca, suficiente dizer que a conclusão desta culmina num dramático encontro entre o Barão, sua esposa e filha, no momento em que livre de uma maldição, a esposa encontra-se prestes a morrer. Frente ao cadáver da mãe a filha informa ao pai que nunca mais quer vê-lo e parte. O barão resignado, informa-me que cumpri minha parte do contrato e que irei receber meu pagamento quando reencontra-lo em sua morada. Veja aqui o vídeo.

Ao retornar as terras do barão para cobrar a recompensa, para minha surpresa constato que desgostoso com o resultado, ele resolveu tirar a própria vida. Pausa. O jogo me informa que terminei minha missão, me recompensa com experiência e itens… E eu fico com um tremendo de um gosto ruim na boca.

No decorrer da aventura passei a me relacionar com o pobre diabo do barão. Tomei gosto por ele. O fato dele ser tão humano, de errar, destruir seu relacionamento, mas ainda assim tentar redimir-se, fez com que eu visse nele, facetas de pessoas que conheço e me importo. Ser surpreendido com ele desistindo assim da vida, afetou-me profundamente.

O fim do Barão.

É isto que faz do “Witcher 3” um PUTA jogo. Tradicionalmente em jogos de RPG, questguivers são apenas isto, uma mecânica do jogo pela qual se atribuem missões aos personagens. E difícil que o jogador se envolva com eles, além da relação missão = pontos a receber. A maestria dos desenvolvedores de Witcher foi trabalhar os personagens de tal forma que este permitem que você crie pontes emocionais, passando a se importar e gostar deles.

(Por uma crueldade intrínseca da mecânica do jogo, refazer minha jornada de modo a obter um resultado mais positivo exigia refazer algo em torno de 20 horas de jogo, o que no meu caso estava fora de cogitação).

Do ponto de vista do desenvolvimento de um jogo a decisão de ênfase narrativa e cuidado nos personagens, transforma-se numa sucessão de ações que envolvem entre outros: a redação dos diálogos, a escolha de atores, a gravação da atuação (movimento) e interpretação (voz), a concepção das cenas digitais (cutcenes)onde estes diálogos ocorrerão, os planos e enquadramentos, expressões faciais, a composição das cenas, articulação destas com o desenrolar do jogo, o planejamento de uma árvore de ações e consequências. Todo este trabalho, se bem articulado, faz com que a cada interação dos personagem, você invista uma pequena partícula de emoção. O fato dos personagens por possuírem tiques, defeitos e nuances (não sendo unidimensionais)resulta em envolvimento.

É ai que reside a diferença entre um bom jogo e um PUTA jogo. A capacidade de provocar o engajamento emocional. Deixamos de nos focar na mecânica do jogo e nos fixando na narração que se desenvolve. O jogo deixa de ser somente entretenimento e torna-se experiência, possuindo a capacidade de despertar no jogador sensações boas e ruins. O levando a empatia, sentimento e até a reflexão. Algo que todo o desenvolver deveria almejar, e que o pessoal da CD Projekt RED conseguiu de forma monumental.

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Guaracy Carlos da Silveira

Doutor em Educação, Artes e Historia da Cultura no Mackenzie, Doutorando em Design na Anhembi Morumbi. Publicitário, Professor, e Gammer.