Curiosidades da bola 1: o xadrez geopolítico dos Bálcãs

Guilherme Freitas Acadêmico
4 min readJun 21, 2024

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Mapa da região dos Bálcãs — Foto: Reprodução

Estamos no meio da fase de grupos da Eurocopa. Ontem a noite começou a Copa América com uma vitória da campeã mundial Argentina sobre o Canadá, uma das sedes da próxima Copa do Mundo. Com tanto jogo legal e craques internacionais desfilando pelos gramados alemães e estadunidenses pensei aqui comigo: “porque não escrever sobre questões sociais, políticas e históricas que envolvam os países que disputam os torneios?”

Desafio aceito, escreverei alguns textos sobre algumas dessas questões, com curiosidades e informações que também utilizo em minhas aulas e pesquisas. Não vou prometer um número total, vou escrevendo conforme dê tempo e o assunto seja legal. Serão textos mais curtos, que vocês poderão ler em uns 5 minutos no máximo. No fim dos textos posso indicar algumas leituras adicionais. Mas chega de papo, bora para o texto.

Lance de Croácia x Albânia durante a Euro 2024 — Foto: Reprodução

Vou começar falando de uma das regiões mais complexas quando o assunto é futebol e sociedade: os Bálcãs. Nessa região localizada no sudeste europeu, temos três seleções em ação nesta Euro: Sérvia, Croácia e Albânia. Territórios na Romênia, Turquia e Eslovênia, que também disputam esta Euro, são consideradas como parte geográfica dos Bálcãs, mas muitas vezes eles não citados como parte política/cultural da região. A maioria dos países da região (Bósnia e Herzegovina, Croácia, Eslovênia, Kosovo, Macedônia do Norte, Montenegro e Sérvia) integrava a antiga Iugoslávia que era um caldeirão étnico, cultural, línguistico e religioso quando foi um país unificado entre 1918 e 1992.

A dissolução da Iugoslávia em vários Estados gerou conflitos sangrentos na Europa e massivas ondas de refugiados para outras nações europeias, como para a Suíça que conta com vários descendentes de migrantes dessa região em sua seleção nacional. Até hoje ainda existe muita rivalidade entre esses países e no futebol essa hostilidade transparece.

A voadora de Boban — Foto: Reprodução

São vários exemplos dessa animosidade entre as nações dos Bálcãs envolvendo o futebol. A treta generalizada em 1990 no jogo entre Dínamo Zagreb e Estrela Vermelha quando o croata Boban deu uma joelhada em um policial sérvio e acirrou ainda mais os ânimos em tempos de pré-guerra de dissolução, o caso da bandeira no vestiário sérvio com o mapa do país incluíndo o território de Kosovo na Copa de 2022, a invasão de um drone com a bandeira da “Grande Albânia” no jogo entre Sérvia e Albânia durante uma partida em 2016 e até a águia de duas cabeças feitas pelos suíços-kosovares Shaqiri e Xhaka na Copa do Mundo de 2018 em jogo contra a Sérvia.

As crises entre as nações dos Bálcãs sempre ocorreram, mas escalaram na década de 1990. A Iugoslávia não conseguiu conter as ondas nacionalistas e independentistas que pipocavam em toda a região e os Estados que conhecemos hoje, foram se separando do país à partir de 1991. Ao longo de toda a década de 1990 aconteceram guerras que deixaram um saldo brutal de 140 mil de mortos e mais de 4 milhões de refugiados segundo historiadores.

Seleção da Iugoslávia na Copa de 1990 — Foto: Reprodução

Um ingrediente a mais neste tenso caldeirão são as diferenças religiosas. Sérvios, montenegrinos e macedônios são em sua maioria cristãos ortodoxos. Albaneses, kosovares e bósnios são de maioria muçulmana. E os croatas são católicos romanos. Durante séculos a região presenciou conflitos de cunho religioso, inclusive no período sob o guarda-chuva iugoslavo. Até hoje, esse é um ponto delicado na relação entre os povos balcânicos.

Neste século a situação do Kosovo, que se declarou independente da Sérvia em 2008, foi adicionada a conturbada região. Alguns países como os Estados Unidos e boa parte dos europeus, além da FIFA, reconhecem Kosovo como Estado independente. Os sérvios jamais aceitaram esta condição e muitos ainda consideram Kosovo como parte de seu território, como visto na polêmica bandeira na Copa de 2022.

Mapa da “Grande Albânia” que já foi compartilhada pela cantora britânica Dua Lipa, descendente de kosovares e albaneses — Foto: Reprodução

Atualmente a situação na região segue sendo rodeada de tensão. Neste ano, a Sérvia anunciou um plano de realizar exercícios militares próximo a fronteira com o Kosovo. E o país vizinho respondeu afirmando que iria intensificar os gastos em suas forças militares. Outro caso que já causou rusgas no passado entre os países balcânicos foram os refugiados oriundos da Ásia, que passavam pelos Bálcãs rumo a Europa Ocidental. Croácia e Eslovênia chegaram a se acusar mutualmente de estar “empurrando” refugiados ao território vizinho.

Dentro de campo croatas e albaneses já se enfretaram nesta Euro e ficaram em um empolgante empate de 2 a 2. Eles até que se dão bem no geral, mas tem um ódio em comum a Sérvia, que esta em outro grupo na Euro. Inclusive, as duas torcidas cantaram no estádio “mate um sérvio”. Dificilmente essas equipes vão se enfrentar no torneio na fase de mata-mata, mas essa rivalidade balcânica é sempre um combustível a mais quando falamos em Eurocopa e futebol, além de compreender essa rivalidade histórica entre vizinhos.

Como indicação, ouçam o episódio da dissolução da Iugoslávia do podcast, Copa Além da Copa aqui: https://open.spotify.com/episode/0JOQ5MCT7oXTAxp8GZ8lU2

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Guilherme Freitas Acadêmico

Alguns textos e trabalhos sobre esporte, sociedade, migração, globalização e identidade por Guilherme Freitas, doutor em Ciências e mestre em Filosofia pela USP