Tropa de Elite e o mito da crítica à violência policial

Guilherme Durand
10 min readJan 15, 2024

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Este ano chegaremos ao décimo sétimo aniversário de Tropa de Elite. Mesmo com quase duas décadas após seu lançamento, o segundo filme do Padilha continua sendo alvo das mesmas discussões que teve em 2007. Definido de diversas formas, tais como: filme fascista; critica a violência policial e a corrupção; retrato da violência urbana do Rio de Janeiro; glorificação do BOPE. Enfim, as mais variadas interpretações e os debates que com elas surgem continuam mantendo o nome do filme em alta. Teoricamente, isso seria algo bom; filmes cujo debate perdura por tantos anos normalmente são dotados de um estilo complexo que permite várias interpretações distintas e diversos meios para defender todas elas, mas, na prática, e especialmente neste caso, é algo péssimo. De 2007 pra cá, parece que os debates que surgiram a partir do filme não avançaram em aspecto nenhum; todos os lados usam sempre as mesmas muletas e os mesmos argumentos rasos que usavam em seu lançamento, raramente há alguma espécie de leitura fílmica decente e sempre há aquele indivíduo que diz “você não entendeu o filme” ou “o diretor já explicou que a proposta do filme era ser isso e aquilo”. Em breve o filme completará 20 anos na boca de boa parte dos brasileiros e as discussões não progrediram absolutamente nada; sempre precisam recuar para aquela máxima que o outro não entendeu o filme (logo um filme que reúne leituras tão opostas, sendo que a mais comum é tida como “errada”) ou usando as explicações do autor como verdade irrefutável.

Após um comentário grosseiro, mas um pouco provocador, relacionado ao Tropa de Elite em meu texto sobre Bacurau e após me deparar com uma enorme discussão sobre o segundo filme do Padilha no Twitter (com direito a tudo aquilo que citei no parágrafo anterior), decidi que precisava reassistir o filme uma última vez para poder botar um ponto final (pelo menos para mim) nessas incansáveis e repetidas discussões. Enfim, Tropa de Elite é realmente um filme fascista? Não. O problema do Tropa de Elite é uma dissonância extrema entre texto e forma: o texto é claramente uma crítica a violência policial e a corrupção dentro das instituições de segurança pública (os esquemas de propina e suborno dentro de diversos segmentos da polícia, os PM’s que negociam armas com traficantes, o humilhante e sádico treinamento para o BOPE que enraíza a violência nesses soldados, a tortura como algo comum em operações policiais, etc.), porém, em sua forma, Tropa de Elite acaba amenizando, humorizando ou anulando completamente o impacto desse texto e até mesmo, em alguns casos, justificando algumas de suas barbáries. Para alguém com uma intenção tão direcionada ao rodar o filme, não dá para saber porque Padilha optou por o rodar desta maneira.

O filme abre com uma afirmação do já falecido psicólogo americano Stanley Milgram (que tiveram a proeza de escrever o nome dele errado no filme): “usualmente não é o caráter de uma pessoa que determina como ela age, mas sim a situação na qual ela se encontra”. A frase por si só não é um problema, a escolha dela para abrir Tropa de Elite, sim. Inicialmente a ideia de Padilha é que o protagonismo do filme pertencesse ao personagem Mathias (André Ramiro), mas, por questões comerciais, acabou ficando ao capitão Nascimento (Wagner Moura). Talvez, se o protagonismo pertencesse a Mathias, a intenção do filme teria sido bem sucedida, afinal, é a única personagem que faz o filme escapar de ser uma completa contradição: Mathias, um policial honesto e de bom coração, decidiu entrar para o curso do BOPE para escapar de toda corrupção da polícia convencional (sim, o filme trata o BOPE como sendo isento de corrupção, o que já desconfigura qualquer argumento de que o filme seria uma espécie de “retrato” do Rio de Janeiro) e que, durante seu treinamento (uma espécie de prova de resistência humilhante) e serviço de campo, foi corrompido por essa instituição violenta e se tornou mais um dos broncos do BOPE. No cenário hipotético de Mathias como protagonista, a frase do psicólogo ao inicio do filme teria sido uma boa escolha, afinal, Mathias, que inicia o filme como um cara completamente honesto, tímido e de boas intenções, acaba que, por meio das torturantes “provas” e o brutal trabalho de campo do BOPE, agindo, ao final do filme, de uma maneira completamente diferente daquela que havíamos sido apresentado; a situação (entrar numa instituição onde o ódio e tortura é enraizado desde o treinamento) em que ele se encontra o faz tomar essas atitudes, não o seu caráter. Só que não foi isso que aconteceu; com o protagonismo pertencendo ao Nascimento (um dos membros mais importantes daquele batalhão) e com direito a narração, o que verdadeiramente aconteceu é que o fenômeno da projeção-identificação somados a frase do início do filme fez com que o espectador entendesse as ações do verdadeiro protagonista (no sentindo de justificá-las mesmo) e criasse empatia por ele (o que, para uma personagem cuja intenção era ser problematizada, é péssimo).

A partir daí, todas as barbáries acabam tendo uma justificava. Vemos o Nascimento não só em serviço como também em casa, sua narração nos informa sobre sua situação: em breve será pai; está com medo de morrer em serviço; o estresse está tomando conta de seu psicológico e, consequentemente, de seu corpo; ele odeia a corrupção da polícia convencional; ele precisa achar um substituto de qualidade o quanto antes para sair do BOPE e poder criar seu filho com menos riscos. Logo, por conta dessa narração e dessa intimidade (ver um policial em casa e saber de seus problemas), a personagem de Moura se desnuda ao público, conta seus anseios, seus planos, suas dores e é impossível, apesar de toda sua brutalidade, não criar empatia por ele, impossível não achar uma justificativa para suas ações ou pelo menos amenizá-las. Humanizar tanto uma personagem que foi criada para ser alvo de problematização não faz sentido. A todo instante o espectador, por já ter criado empatia com o protagonista, vai achar uma desculpa pra suas atitudes: o sadismo de Nascimento no treinamento para recrutas do BOPE se torna exemplo dedicação para achar um bom substituto; as torturas que ele comete são amenizadas (para alguns são até justificadas) com a soma de seu contínuo estresse de uma operação inútil que pode lhe custar a vida e de uma raiva acumulada pelo assassinato de seu amigo e possível substituto, Neto; o comportamento agressivo com sua esposa que surge de um momento de luto onde Nascimento, após ouvir o conselho de sua esposa que contrariava sua intuição, colocou Neto em uma operação que lhe custou a vida, se torna compreensivo. O problema é que, assim como Mathias, Nascimento é construído como uma pessoa que, dentro das contradições que sempre são justificadas, tem um bom caráter (marido trabalhador que se arrisca diariamente pela esposa e pelo filho que está para nascer, um homem que foi atrás do corpo de um informante para que a mãe pudesse o enterrar, preocupado em achar um substituto decente para não sair do BOPE os deixando com prejuízo), e talvez Nascimento realmente fosse uma pessoa melhor antes de entrar no BOPE e, assim como Mathias, teve essa mudança explicada pelos mesmos motivos, não temos como saber. Só que não dá para criticar a violência policial humanizando e fazendo com que o espectador “entenda” o líder (de campo) dessas operações. Ao final, toda tortura, assassinato, abuso de autoridade e procedimento irregular se transforma, para o espectador amparado pela ficção e que simpatiza com o protagonista, num meio necessário.

Além de humanizar o alvo da crítica, Padilha fez questão de desumanizar o outro lado. O policial torturador e assassino tem seus anseios e humanidade expostos ao espectador, o bandido não. Padilha disse em uma entrevista ao Roda Viva, logo após o lançamento do filme, que não entendia como as pessoas podiam achar que o filme glorifica o BOPE, afinal, segundo ele: “o filme tem cenas de tortura pesadíssimas e tortura é obviamente algo ruim”. O problema é que essa tortura acontece boa parte das vezes com esses bandidos desumanizados e animalizados (sempre que aparecem estão conversando com linguagem chula, cheirando cocaína, sendo agressivos e de cara fechada), ou seja, mesmo a cena em si tendo um forte peso imagético (composta sempre de primeiríssimos planos que mostram a face coberta por dor e desespero das vítimas), ela tem como alvo, na maior parte das vezes, essas personagens que passam o filme inteiro sendo tratadas como pessoas puramente ruins, não-civilizadas e até mesmo não-humanas. A cena por si só pode ser realmente pesada, mas, no contexto em que está inserida, ela fica aliviada, menos impactante, afinal; o espectador nutre o filme inteiro uma antipatia, um ódio, tão grande por esses criminosos, que até o mais progressista do espectador, tomado pela emoção, acaba por não se importar com a tortura. E quando a tortura acontece com civis e não criminosos, como na cena do cabo de vassoura ao final do filme; a vítima revela a informação pedida. Ou seja, não adianta nada os “chocantes” close-ups das vitimas sendo asfixiadas em um saco de plástico ou do plano onde o Mathias segura uma vassoura com o cabo manchado de sangue (indicando que outros civis já foram sodomizados com ela), não adianta nada a crueza das atuações e o realismo da cena se, ao fim, o espectador fica com a impressão de que aquela violência poderia ser evitada se o civil contasse logo o que sabe ao invés de “proteger” o criminoso, além disso, como o resultado foi eles conseguirem a informação, a barbárie se transforma em um método efetivo.

Quanto a crítica a corrupção dentro da polícia: o tom de humor que essas cenas ganham, principalmente pelo enorme carisma das personagens envolvidas nesses esquemas, acabam por torná-las muito mais “divertidas” e “engraçadas” do que de fato uma crítica. E não é que uma problematização não possa surgir do humor, apenas que no caso específico de Tropa de Elite, um filme tão frontal, sério e bruto, esse humor exagerado sempre nos momentos cujo assunto é corrupção acabam por criar mais uma espécie de alívio cômico nessas cenas do que qualquer outra coisa.

O que realmente afunda Tropa de Elite e o coloca num patamar de não apenas um dos piores filmes nacionais do século, mas de um dos piores filmes nacionais de todos os tempos, são duas coisas. A primeira é o segmento final: após toda excursão no âmago do capitão Nascimento, que acaba o humanizando e o tornando um protagonista confiável (afinal, a narração não o permite mentir ao espectador), após todas as sequências em que os criminosos são animalizados, após o assassinato de Neto (Caio Junqueira) pelo chefe do tráfico, Baiano (Fábio Lago), enquanto Neto fazia uma ação de caridade, ou seja; após toda uma construção narrativa para que criássemos empatia, entendêssemos o que se passa na cabeça dos policiais e para que sentíssemos raiva dos criminosos; uma missão final para pegar o líder do facção se inicia. Os soldados do BOPE sobem a favela de manhã, pegam alguns jovens civis e alguns criminosos e os torturam, acham o esconderijo do Baiano e, por fim, o matam com direito a um contra-plongée de Mathias ofuscado pelo sol atirando com uma escopeta que está mirada em direção a câmera (uma espécie de rito de passagem concluído, ele oficialmente se tornou um “grande policial”) nessa mesma manhã. A conclusão que resta ao espectador é de que o BOPE é foda! Segunda coisa: O Padilha e o Moura terem aberto a boca para dizer qual era sua intenção com o filme. Sim, algo extra filme consegue prejudicar o filme em si. Se ambos diretor e protagonista tivessem se calado, Tropa de Elite seria apenas mais um clássico nacional dos anos 90/2000, ou seja, mais um filme que sugou a estética americana padrão da época (tal qual Cidade de Deus, que poderia muito bem levar o nome de Scorsese na direção e todos acreditariam) de forma porca. Seria apenas um filme de ação extremamente pobre esteticamente (a montagem durante os tiroteios e a decupagem em momentos como quando o Nascimento e sua esposa estão discutindo por ele ter que sair cedo para trabalhar são de um amadorismo inacreditável) que mostra policiais altamente treinados versus traficantes, apenas um filme pro povão se divertir com a bandidagem tomando chumbo, apenas pro povão poder vibrar com um anti-herói que odiaria na realidade, mas, a partir do momento que sabemos da verdadeira ideia de Padilha com o filme, ele deixa de ser apenas fraco para se tornar algo inconcebível, um filme que tinha tudo em mãos para dar certo e conseguiu seguir pelo caminho oposto.

O Wagner Moura uma vez disse, em tom jocoso, durante uma entrevista, que ele e Padilha gastaram mais tempo defendendo o filme do que o fazendo. É obvio que o artista social-democrata que se acha de esquerda radical porque apoiou o Freixo não vai aceitar que enxerguem o seu trabalho pelo que ele é. Não vejo tanta diferença assim entre Nascimento de uma Nação (1915) e Tropa de Elite (obviamente que o discurso do filme do Griffith é, além de bem mais nocivo, criminoso): ambos são filmes que foram adotados por grupos de extrema-direita e que o diretor jurou não ter sido essa intenção, apesar do resultado ser bem claro, além de que, ambos os diretores lançaram outros filmes em seguida para tentar consertar a cagada. A diferença? Griffith lançou Intolerância, um dos maiores filmes de todos os tempos, enquanto Padilha lançou Tropa de Elite 2, que se me lembro bem, foi aplaudido de pé no cinema pelo mesmo povo que interpretou o primeiro Tropa de Elite errado, isto é; que não interpretou do jeito que o Padilha e Moura queriam.

Aos que ainda acreditam nessa ideia de Tropa de Elite ser uma critica não compreendida pelo grande público e só sabem dizer que os outros não entenderam o filme: existe sim critica em Tropa de Elite, mais especificamente em seu roteiro, o problema é que ela é completamente amortecida, abafada, revertida com sua forma pobre e dissonante. Talvez esteja na hora de pararem de aceitar a palavra de qualquer autor “bem-intencionado” como verdade absoluta e buscarem entender mais de linguagem cinematográfica, entender como as escolhas provocaram esse efeito contrário tão poderoso. Pararem de acreditar portar o dom da interpretação, portar a verdade sobre uma obra e que todo resto a compreendeu errada, e começarem a enxergar o que ela realmente é. E não digo isso achando que tudo que acabei de dizer seja a verdade final sobre o filme, mas sim que é exaustivo ver um lado cuja única defesa de sua visão são os malabarismos que o diretor fez para defender seu filme após perceber reações tão contrárias as que ele esperava se tornando majoritárias. Mais do que querer que esquecem esse filme, quero que um dia as defesas do Tropa de Elite sejam feitas a partir do material filmado, montado e finalizado, ou seja; a partir do próprio filme, e não a partir das intenções de seu autor.

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