A MORAL ATEÍSTA

G. da Natividade Mac.
7 min readJul 14, 2021

--

Por Guilherme Natividade

Foto: ATEA - Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos

Os religiosos frequentemente apelam para o tema da moralidade ao defenderem suas doutrinas mitológicas e condenarem o ateísmo. Segundo eles, “um ateu não pode ser moral, pois não há discernimento moral sem haver crença em deus”, assim como “um indivíduo que não teme os deuses nada tem a temer ou a perder, portanto tudo é permitido”. Mas essas afirmações têm algum sentido ou fundamento lógico?

No texto do mês passado¹ mostrei que os países menos religiosos são mais desenvolvidos, mais ricos e mais pacíficos, apresentando um comparativo de pesquisas e estudos e entre o IDH de países mais e menos religiosos no planeta. Também destaquei que os países com maior influência e domínio da religião são mais violentos e atrasados, enquanto que nações com maior número de ateus, como a Suécia e a Holanda (ambas com altos índices de desenvolvimento humano), fecharam e reutilizaram presídios por conta da baixa criminalidade e pela falta de detentos.

Se analisarmos os dados, observarmos a realidade social e compararmos os diferentes aspectos, veremos que a moralidade não está diretamente relacionada à religião ou a falta dela. Primeiramente, moralidade é algo muito subjetivo, o que difere da ética, que costuma manter um consenso universal entre as mais diferentes sociedades e sobre atitudes e normas gerais estabelecidas. O que é moral para um determinado grupo pode não ser considerado moral para uma comunidade oposta, e vice-versa. Um grupo fundamentalista religioso, por exemplo, considera o tema do aborto como um tabu e trata como algo imoral, enquanto um movimento feminista o absorve como causa e o trata como uma questão moral, de acordo com seus interesses.

Agora vamos analisar o mundo de forma geral, em contexto global. O planeta é composto por um número predominante de teístas e religiosos — independente de qual seja a religião — em detrimento de uma pequena parcela de ateus, que são uma minoria numérica e social. Neste mesmo planeta, a criminalidade e a violência são registradas em grande escala em diversas regiões, sendo tratadas como problemas sociais e “imorais”, digamos assim (aí vale considerar subjetivamente o que cada grupo e nação considera como ato criminoso). Então se os ateus são “imorais” e uma minoria no mundo todo, como que há altos índices de criminalidade e violência em diversos países, principalmente naqueles com percentual de religiosos acima de 85%? A conta não bate com a narrativa.

Se observarmos o Brasil em especial, um dos países com as maiores taxas de homicídios e criminalidade do mundo (de acordo com dados da ONU²) e com maior número de religiosos — predominantemente cristãos: católicos e evangélicos (de acordo com pesquisa Datafolha de 2019³) — , veremos que a falácia da “imoralidade ateísta” é reversa. Os ateus representam apenas 1% entre 2% da população brasileira, e os percentuais de criminalidade no país são muito superiores a isto. Nem se todos os ateus do Brasil e do mundo cometessem crimes por supostamente “não terem referência de moralidade por não possuírem fé” e porque “sem deus tudo seria permitido”, não atingiríamos as altíssimas taxas de homicídios e violência, como estupro e roubos, que atualmente registramos no planeta inteiro.

Ora, repare bem os fatos. Você jamais viu ou irá ver um meliante, após ter cometido os crimes mais perversos e inúmeras barbaridades contra a sociedade, assim que detido, ir à frente de um delegado ou juiz e declarar, em alto e bom tom: “eu não acredito em deus!”. Todos acreditam, com convicção. Podem ser religiosos daqueles bem crentes, de orarem e irem à igreja, ou não. Mas a maioria massiva dos criminosos são teístas, doutrinados a serem crentes em algum deus (e no caso do Brasil, cristãos, que creem no mito judaico-cristão).

Sabe o que você irá relatar, observar e/ou presenciar? Pastores evangélicos envolvidos em esquemas de corrupção, como lavagem de dinheiro. Padres acusados de praticar pedofilia dentro da igreja. Líderes e ditadores sanguinários e autoritários que promovem genocídios em nome de deus e/ou com a “bênção” de deste (como é o caso de Hitler, que era cristão). Religiosos — daquelas famílias “de bem” hipócritas que vão à igreja todos os domingos — denunciados por agredir e estuprar a esposa dentro de seus lares (por tratarem as mulheres como sua propriedade; “submissas”, como pregam essas mitologias). Criminosos assassinos com tatuagens de crucifixos, versículos bíblicos ou com a imagem de Jesus estampadas pelo corpo na cadeia. Quase nunca um ateu, ou muito menos um militante ateísta convicto de sua liberdade racional.

Isso tudo ocorre porque as religiões são hipócritas e contraditórias por natureza, o que consequentemente torna os religiosos seres hipócritas e contraditórios. Dizem que a religião prega o “amor” e a “paz” mas os próprios religiosos não convivem em paz uns com os outros e os extremistas religiosos não são extremamente pacíficos ou amorosos — visto as guerras santas e os conflitos em territórios e fronteiras entre países teocráticos. O que de fato as mitologias irracionais e imundas pregam é intolerância, preconceito, segregação, repressão, violência, torturas, extermínio e discriminação. E são essas práticas que são imorais, ao menos para nós ateus e livres pensadores.

Boa parte das guerras e dos conflitos bélicos tiveram ou têm motivações religiosas, de ideais religiosos — como é o caso do conflito entre Palestina e Israel. A grande maioria dos crimes cometidos e da violência praticada são ocasionados por teístas ou por pessoas religiosas. A discriminação e a intolerância contra grupos minoritários é predominantemente instigada por grupos fundamentalistas religiosos. Mas os ateus que supostamente são os “imorais” somente pelo fato de não terem um amigo imaginário e invisível benevolente…

Uma coisa é certa e muito clara: religião ou a ausência dela não define o caráter de ninguém. Vários ateus são pessoas muito boas, solidárias e com uma índole impecável, superior a qualquer idólatra religioso. Em contrapartida, muitos religiosos são pessoas inescrupulosas, ordinárias e de péssima índole. Portanto que seja extinta a falácia canalha de que ateus são imorais e pessoas inconfiáveis, perigosas e sem caráter.

Os cristãos particularmente se apropriam da moralidade como se fosse uma qualidade e uma característica própria apenas deste grupo. Eles tratam os mandamentos de “não matarás” e “não roubarás” como se representassem somente a sua comunidade e a “moralidade cristã” unicamente. Mas e quanto aos milhões de ateus e outros religiosos que não matam ou roubam no mundo? E quanto aos milhões de cristãos que cometem ou cometeram estes crimes? Provavelmente vão imputar que os justos e morais seguem a cartilha hipócrita cristã, enquanto irão tentar desvincular o cristianismo do seio dos criminosos imorais. É o método do mecanismo estrutural teísta ignorar e deturpar o fato de que a moral e a justiça antecedem a religião e permanecem mesmo após a sua superação.

O filósofo materialista e ateísta Barão d’Holbach, em sua obra O Sistema da Natureza (1770), já fazia essa crítica à moral religiosa. Segundo ele, a religião constrói uma base errada da moral e que é perigoso fazer dela os alicerces da moral; pois se esses alicerces se desmoronarem, a moral corre sério risco de desmoronar com eles.

E a moral ateísta é pura e verdadeira. Os ateus não praticam o bem ou são solidários por esperar uma “recompensa divina” ou por temer o castigo de um “deus todo-poderoso” e vingativo. Tudo o que fazemos é puramente por nossa própria consciência, nosso caráter e nossas ideias, para o bem-estar da sociedade e da humanidade, e não por uma recompensa num “paraíso” ou para evitar uma punição num “inferno”. E é justamente por isso que a moralidade religiosa é hipócrita, genuinamente hipócrita. Alguém que é realmente bondoso não será justo e solidário somente porque está sendo supostamente “vigiado” por um ser onipresente e onisciente ou porque busca ser recompensado numa suposta “vida eterna” após a morte. Ter e demonstrar caráter por medo ou interesse não é nada orgânico nem verídico, mas falso e submisso — doutrinado. E os ateus não são assim. Somos educados a seguir e a obedecer a lei e a ordem, que são as únicas instâncias que nos fiscalizam, em consonância com nossos princípios materialistas e seculares. Por isso a nossa moralidade (a mais legítima e verdadeira) é pura, resiliente e incompatível com a moral e a ética religiosa que tanto rejeitamos.

Um estudo britânico realizado em 2018 pela Frontiers in Psychology e divulgado pelo jornal The Independent⁴ atestou que os ateus são pessoas mais inteligentes do que os religiosos. De fato as religiões são irracionais e não possuem o mínimo de lógica ou embasamento científico, porém não concordo tanto com a posição apontada pelo estudo. Não vejo que o fato de ser ateu ou religioso (ao menos não um fundamentalista religioso) defina a inteligência de alguém, da mesma forma que não define o caráter. Inteligência parte de um capital cultural adquirido, da absorção de conhecimentos que compõem o intelecto, e que pode sim ser facilitado pela ausência de dogmas religiosos torpes. Mas crença ou descrença puramente não estabelece isso. O que de fato idealizo é que nós ateus somos psicologicamente, não intelectualmente, mais evoluídos e superiores do que os crentes bitolados. A ausência de fé e o predominante uso da razão estimulam nossa capacidade mental, propiciando o livre pensamento que os crédulos são incapazes de atingir por conta de seu aprisionamento às mitologias e seus ritos e de sua inconstante relação com a realidade. E isso é um fato facilmente observável.

REFERÊNCIAS

¹ Ver A religião e a política do atraso: https://guilhermenatividade.medium.com/a-religi%C3%A3o-e-a-pol%C3%ADtica-do-atraso-ea024806c5ce

² MATTOS, João. Índice de homicídios no Brasil é cinco vezes a média global, aponta OMS. Jornal do Comércio, 2018. Disponível em: <https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/2018/05/geral/627930-indice-de-homicidios-no-brasil-e-cinco-vezes-a-media-global-aponta-oms.html>. Acesso em: 12 de julho de 2021.

³ 50% dos brasileiros são católicos, 31%, evangélicos e 10% não têm religião, diz Datafolha. G1, 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml>. Acesso em: 12 de julho de 2021.

Ateus são mais inteligentes do que pessoas religiosas, aponta estudo. UOL, 2018. Disponível em: <https://www.uol.com.br/tilt/ultimas-noticias/redacao/2018/01/29/ateus-sao-mais-inteligentes-do-que-pessoas-religiosas-aponta-estudo.htm>. Acesso em: 12 de julho de 2021.

--

--

G. da Natividade Mac.

★ Estudante de Ciências Sociais na UFRGS, escritor, torcedor do Grêmio FBPA, social-democrata e ateu militante. • Porto Alegre/RS