ATEÍSMO PROVEDOR E LIBERTADOR

G. da Natividade Mac.
11 min readApr 13, 2022

--

Por Guilherme Natividade

No texto do mês passado¹, alertei que nós, livres pensadores ateístas, devemos problematizar e desconstruir vícios de linguagens coloniais teístas da vida cotidiana, como o “deus me livre”, e demonstrei como podemos substituir expressões como “graças a deus” por “coisa boa”, por exemplo, secularizando nosso vocabulário e desdoutrinando-o. No artigo foram expostas as formas como a fé religiosa hegemônica — no caso o cristianismo, no mundo ocidental — doutrina e domina até as falas do povo e de uma nação, impondo sua supremacia sobre a sociedade plural e o Estado laico. Destacou-se, nesse caso, a introdução cultural e social de termos religiosos, ou de alusão à fé, naturalizando-os desde muito cedo até mesmo entre o vocábulo dos descrentes — o que não caracteriza, definitivamente, uma crença no sobrenatural e/ou no divino,mas um costume instituído e normalizado sistematicamente.

Mas não é apenas a linguagem colonizada e as expressões cotidianas que a religião intervém e influencia. Além da dominação sobre a mente e os corpos, a fé religiosa objetiva, impositivamente, moldar e comandar nossos hábitos, nossas posturas, nossos costumes e nossas formas de viver e perceber a realidade. Autoritariamente, a religião dita o que todos devem praticar e vivenciar, bem como as maneiras como devem agir e se portar. Assim, o ser humano passa a ser adestrado e censurado por meio de um conjunto de regras baseadas em conceitos dogmáticos que as mitologias supérfluas e surreais impõem social e culturalmente, restringindo e controlando a liberdade individual dos seres humanos.

Assinala-se que, por liberdade individual, entende-se a liberdade absoluta de um ser humano emancipado, capacitado, autônomo, consciente e responsável poder fazer tudo o que quiser com a sua própria vida e com seu próprio corpo, desde que suas ações particulares não interfiram na vida, no corpo e, consequentemente, na liberdade do coletivo, da sociedade em geral. Ou seja, o indivíduo deve ser plenamente livre para se vestir da forma como achar melhor, comer e beber o que bem entender, modificar, remover ou acrescentar algo em seu corpo e decidir sobre sua vida, sem intervenções da lei e da ordem, do Estado e da Igreja. Resumidamente, cada sujeito possui plenos poderes sobre si próprio e, desde de que não interfira nas particularidades de outros, de nada pode ser privado ou coibido no tocante à sua singularidade.

Porém, as religiões desprezam o conceito de liberdade e o respeito às particularidades. Conservadoras e fundamentalistas por essência, as mitologias têm o costume de oprimir e reprimir liberdades individuais, instituindo e impondo hábitos proibitivos e coercitivos. Para a fé, o ser humano é um escravo que deve se subordinar a “mandamentos” e normas de um suposto deus generoso e poderoso, por medo de sua fúria e de seus castigos impostos aos “hereges” e “pecadores” (lê-se “insubordinados” ou “desobedientes”).

No cristianismo, em específico, a raíz dos conceitos dogmáticos, proibitivos e coercitivos se origina nas fábulas bíblicas, bem como boa parte da podridão que fora introduzida neste mundo injusto e imperfeito. É a Bíblia cristã que fomenta a censura através de ritos que visam proibir e coibir ações de sujeitos independentes, emancipados, racionais e, segundo as contradições da própria mitologia, possuidores do livre arbítrio “concedido por deus”. Entretanto, basta analisar alguns versículos do livreto religioso que a ditadura do cristianismo se revela e se torna perceptível perante mentes livres, racionais e questionadoras.

Confira alguns trechos de Levítico, livro bíblico em que a fé cristã (ou o deus judaico-cristão, se preferível) condena determinadas atitudes do cotidiano e estabelece e impõe proibições à humanidade, coibindo a liberdade individual e contradizendo a narrativa do livre arbítrio:

Proibido comer carne de porco: “o porco, embora tenha casco fendido e dividido em duas unhas, não rumina; considerem-no impuro. Vo­cês não comerão a carne desses animais nem tocarão em seus cadáveres; considerem-nos impuros.” (Levítico 11:07–08)

Proibido comer alguns frutos do mar: “Tu­do o que vive na água e não possui barbatanas e escamas será proibido para vocês.” (Levítico 11:12)

Proibido cruzar raças de animais, cultivar duas plantas diferentes num mesmo jardim e vestir roupas tecidas com fios diferentes: “Guardareis os meus estatutos. Não permitirás que se cruze o teu gado com o de espécie diversa; não semearás o teu campo com semente diversa; nem vestirás roupa tecida de fios diversos.” (Levítico 19:19)

Proibido cortar o cabelo e raspar a barba: “Não cortareis o cabelo, arredondando os cantos da vossa cabeça, nem danificareis as extremidades da tua barba.” (Levítico 19:27)

Proibido fazer tatuagens: “Não fareis incisões na vossa carne por um morto, nem fareis figura alguma no vosso corpo. Eu sou o Senhor.” (Levítico 19:28)

Observe que, só em Levítico, há tanto hipocrisias, quanto contradições cristãs.

Curiosamente, o mesmo livro que condena a homossexualidade como sendo algo “impuro”, “imoral” e “abominável” (Levítico 18:22) é o que condena diversas práticas e hábitos que os cristãos fazem cotidianamente, como usar roupas feitas com tecidos diferentes e cortar o cabelo. De forma hipócrita, os crentes, ao mesmo tempo em que criticam os costumes alheios e os caracterizam como “pecados perante deus”, impondo padrões a serem seguidos pelos outros com base nos princípios da sua religião, são os que contrariam o que diz a própria Bíblia, praticam coisas que ela condena e só lembram e fazem o que lhes convém, de modo oportuno e tendencioso. Mas seguir a fábula mitológica à risca ninguém se arrisca, afinal, poderiam acabar presos caso cometessem as atrocidades que o conto fantasioso incita.

Quanto ao último versículo aqui referenciado, este, em particular, é o que mais evidencia a hipocrisia e a contradição cristã.

Discriminar e criticar quem faz tatuagem para os cristãos é fácil, pois, de acordo com a teoria mística, pecadores são os que se tatuam, que marcam o corpo, “obra divina”, com figuras e incisões. Entretanto, é comum religiosos fazerem tatuagens de crucifixos, terços, imagens de santidades e até de versículos bíblicos. Nesse caso, o questionamento que fica é: como podem cristãos fazerem tatuagens religiosas, ainda mais em alusão ao cristianismo, se a própria Bíblia condena e proíbe tatuagens entre os estatutos divinos? Na teoria, os religiosos irão para o tal “inferno” por estarem desobedecendo seu Senhor. Na prática, provam, com ações, que nem eles levam o livro “sagrado” tão a sério ou que desconhecem seu real conteúdo.

Mas voltando a abordar especificamente as censuras impostas pelos dogmas mitológicos às liberdades individuais, ignorando momentaneamente a hipocrisia e a contradição cristã, devo ressaltar que as proibições e coerções nem sempre se limitam às páginas da Bíblia. Há os crentes alienados e uma maioria doutrinada social e culturalmente pela fé que se deixa seduzir pelas imposições espirituais, se privando de viver e curtir a vida por conta do que ordena a doutrina autoritária e os líderes e representantes dos templos. Com esse tipo de gente não existe autonomia e consciência livre e lógica, mas apenas adoração e devoção irracional, sustentada pela culpa e pelo medo introduzidos por intermédio dos métodos de doutrinação religiosa.

As seitas evangelizadas (lê-se “doutrinadas”) fundamentalistas, por exemplo, repudiam o álcool e o tabaco, proibindo que seus adeptos gozem dos prazeres da vida e usufruam daquilo que, conscientemente, desejarem. Esses mesmos grupos cerceiam os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, controlando seus úteros e restringindo suas liberdades individuais sobre decidir sobre o próprio corpo. Além disso, religiosos amantes das privações são fascinados por proibir determinados hábitos e comportamentos, por silenciar opiniões e posicionamentos contrários à moral e à ética religiosa (lê-se “opiniões e posicionamentos livres e racionais”) e por comandar corpos, falas, mentes e ações. A religião tem o intuito de ditar o que se pode e o que se deve vestir, comer, beber, gostar, usar, opinar e fazer. Seu método autocrático e etnocêntrico impõe o que sociedades que, no imaginário democrático, deveriam ser plurais e seculares devem seguir e obedecer.

Pode-se apontar, inclusive, que uma imposição clássica do cristianismo é a que ocorre anualmente na semana da qual os cristãos tratam como sendo “santa” (e que neste texto proponho transformá-la em “Semana Secular”, ao problematizar e desconstruir seus costumes). Essa dita semana “sagrada” e “milagrosa”, na qual estamos no momento em que produzo este artigo, celebra seu ápice na sexta-feira, a qual eles, os cristãos, tratam como sendo “santa” também (e que também proponho uma alteração em sua nomenclatura para “Sexta-feira Secular”), e se encerra no “Domingo de Páscoa”, data em que, além de, principalmente, se degustar delicisos chocolates (isto graças à significação secular e capitalista que fora atribuída ao feriado, minimizando o simbolismo religioso), os crentes comemoram o assassinato de seu ídolo, Jesus — também conhecido popularmente, entre os ateus, como o mão furada (o que evidencia mais uma contradição cristã, o que não surpreende vindo daqueles que adotam um instrumento de tortura que matou seu mártir como emblema e representação).

O rito cristão proibitivo da “Semana Santa” é quanto ao consumo de carne na “Sexta-feira Santa” por ser considerado “pecado” (a mesma lenga-lenga de sempre), aos moldes da proibição de comer carne de porco em Levítico 11:07–08; porém, nesse exemplo, sem restrições datadas. A alegação cristã é que o ato de comer carne na “Sexta-feira Santa” é pecaminoso, assim como cultivar plantas diferentes, raspar a barba, fazer tatuagem, não cobiçar a mulher do próximo (confesso que este, mais do que os outros, é um dos mandamentos que mais sinto prazer em “desobedecer”) e tantos outros que eles, os crentes, praticam frequentemente sem se importar ou fiscalizar.

Contudo, há uma regra que deve ser obedecida pelos adestrados da fé: não se pode comer carne, mas deve-se comer peixe. Essa é a ordem da semana que fora imposta pela mitologia cristã para relembrar que deus permitiu que matassem seu filho que na “verdade” é ele próprio. Como se peixe não fosse carne (seguem as contradições)...

Faça um teste e ponha o rito à prova: pergunte a um vegano se ele come peixe tendo em vista que, segundo o cristianismo, não é considerado carne. Se o vegano for crente, as chances de haver uma disfunção cerebral do que restou do percentual racional do órgão são altas. Portanto, cuidado para não ser acusado de “intolerância religiosa” (comum quando a fé é questionada e confrontada pela lógica).

Aliás, recomendo que você, livre pensador, passe a fazer esse exercício: questione e confronte ritos, dogmas e superstições impostos social e culturalmente pela fé, buscando desmistificar e desconstruir o que a religião e o espiritualismo pregam. Desvirtue o que a moral e a ética religiosa trata como sendo correto e normal, invertendo os valores cristãos em direção à racionalidade e ao ceticismo e negando, acima de tudo, os seus princípios. Assim os mitos, quando confrontados com a verdade e, principalmente, a realidade natural e material, cairão por terra e, com o tempo, desaparecerão.

O que torna um dia como outro qualquer “santo”? Na “Sexta-feira Santa” não ocorrem incidentes, tragédias, catástrofes e tantos infortúnios? O fato de não comer carne por um dia vai mudar algo na vida de alguém? E se comer, o que ocorre? Alguém já morreu ou foi punido por comer carne nesse dia? Se sim, onde fica o livre arbítrio e a bondade divina? Por que deus se importa mais com alguém comendo carne por um dia do que com milhões passando fome todos os dias? Afinal, comer carne nessa data é crime perante a lei? Se uma pessoa em situação de insegurança alimentar comer carne na “Semana Santa” ela será considerada pecadora? E se um cristão quiser comer seu peixe e não conseguir comprá-lo ou prepará-lo, é pecador também? Pois, afinal, peixe não é carne animal?

Questionamentos…

Sabe o que difere o ateísmo da religião, fazendo com que este não possa ser considerado uma doutrina religiosa? É que a religião tem como base o teísmo e a espiritualidade, enquanto que o ateísmo, como o próprio nome atesta, é uma negação ao teísmo e se concentra, em geral, no ceticismo e na racionalidade. A fé religiosa é constituída por mitos, dogmas e ritos de passagem, enquanto que o ateísmo não estabelece crença em mitos, não doutrina, não institui dogmas, não impõe conceitos e, principalmente, não proíbe, não coíbe e não restringe as liberdades individuais. Um ateu, para ser o que é, não precisa seguir, adorar e obedecer nada que seja místico ou sobrenatural. Para nós, não há mandamentos, concepções, proibições, culpa, medo ou vigilância divina.

Fora a legislação vigente, a nossa educação adquirida e a nossa própria consciência moral pura e autêntica, sem bases religiosas, nada nos comanda, nos priva ou nos restringe. Um livre pensador é um indivíduo independente, consciente, racional e responsável por seus atos e por suas atitudes, que preza pela laicidade e defende a secularização da sociedade e a democracia. Têm-se a ciência de que o ser humano é centralizador no planeta, o que tudo cria, o que tudo faz e o que arca com as obrigações e as consequências no mundo físico e material. Sabe-se que não há deus algum e assume os compromissos sem terceirizar suas responsabilidades e competências para seres invisíveis e imaginários, estes idealizados pela mente humana.

O ateísmo preza pela liberdade plena, pelas particularidades, pela emancipação dos povos e pela autonomia dos corpos, das mentes, dos hábitos, das falas e das ações. O ateísmo não possui um conjunto de regras, como a Bíblia, que impõe e dita o que a sociedade deve ou não fazer, como deve ou não agir. O ateísmo não manda e não instiga seus adeptos a obedecer e a se curvar, quando, em sentido contrário, nos instiga a questionar e a levantar a cabeça. O ateísmo não se submete a nada além da realidade, segue a lógica e busca o conhecimento; o saber, não simplesmente acreditar. O ateísmo é autossuficiente e provém a liberdade.

A canção composta por Caetano Veloso em 1968 como forma de luta e resistência à ditadura civil-militar-religiosa no Brasil, “É proibido proibir”, pode ser interpretada como um ato ateísta puro e simples. Nós ateus vivemos sob uma concepção de mundo extremamente cética e realista, sem deus. Somos autossuficientes o suficiente e resistimos, não aceitando imposições irracionais e privações ou coerções autoritárias sobre nossas vidas, nossas mentes e nossos corpos. Nós, livres pensadores não regidos por “mandamentos divinos” e por princípios cristãos, comemos peixe na Semana Secular se quisermos; se não quisermos, comemos qualquer outra coisa que nos esteja ao alcance e que satisfaça as nossas vontades. Não se trata de proibir ou condenar a carne ou o peixe, é sobre garantir liberdade de escolha, poder de decisão e alternativas. Nenhuma mitologia sem o mínimo de fundamento empírico, lógico e sem evidências científicas nos diz o que devemos ou não comer, beber, vestir, usar, fazer, opinar ou gostar. E é por isso que muitos de nós, como é o meu caso em particular, somos convictos e orgulhosos do nosso ateísmo provedor e libertador. Não como religião, mas como filosofia de vida².

Se a pior prisão é a da mente, e a religião é a cela do pensamento, o ateísmo é a chave de sua libertação. O abandono da fé é a porta e o caminho para o desenvolvimento, para a evolução e para o progresso do ser humano. Não permitindo perguntas e impedindo respostas, a fé religiosa coíbe o avanço e oferta o atraso como alternativa e solução final.

Além de provedor e libertador, pode-se dizer que o ateísmo é também um ideal transformador. São essas as essências do ateísmo progressista: prover a racionalidade, libertar a mente e transformar o indivíduo e a sociedade. Como costumo dizer, e afirmo com convicção: o ser humano é capaz de fazer coisas incríveis quando aceita que deus não existe.

O ateísmo liberta!

REFERÊNCIAS

¹ Ver Secularizando um vocabulário doutrinário: https://guilhermenatividade.medium.com/secularizando-um-vocabul%C3%A1rio-doutrin%C3%A1rio-f4c6d239b29a

² Ver Ateísmo como uma filosofia de vida: https://guilhermenatividade.medium.com/ate%C3%ADsmo-como-uma-filosofia-de-vida-b217cf1d62d1

--

--

G. da Natividade Mac.

★ Estudante de Ciências Sociais na UFRGS, escritor, torcedor do Grêmio FBPA, social-democrata e ateu militante. • Porto Alegre/RS