G. da Natividade Mac.
11 min readFeb 15, 2023

DISCÍPULOS DE O’HAIR

Por Guilherme Natividade

“Um ateísta acredita que um hospital deve ser erguido ao invés de uma igreja. Um ateísta acredita que uma ação deve ser feita ao invés de uma prece dita. Um ateísta se compromete com envolvimento na vida e não em escapismo para a morte. Ele deseja pobreza aniquilada, doenças conquistadas e guerra eliminada.”

- Madalyn Murray O’Hair

Após os atentados terroristas planejados e promovidos pela Al-Qaeda (organização fundamentalista islâmica) contra o World Trade Center (Torres Gêmeas) no dia 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, um novo movimento surgiu no mundo com caráter irreligioso, secularista, humanista, ceticista e racionalista, pautado na ciência, no materialismo, no evolucionismo darwinista, em valores seculares e liberais e na defesa do Estado laico. Trata-se do chamado “neoateísmo” (novo ateísmo) ou “ateísmo do século XXI”, movimento cultural, político e social fundado no início dos anos 2000 com o intuito de promover ideais ateístas, laicistas e contrários às religiões — principalmente as hegemônicas dos mundos ocidental e oriental: cristianismo e islamismo.

O novo ateísmo do vigésimo primeiro século da Era Comum surgiu a partir das obras dos denominados “Quatro Cavaleiros do Não Apocalipse”, “Quatro Cavaleiros do Ateísmo” ou “Pais Fundadores do Neoateísmo”: os britânicos Richard Dawkins e Christopher Hitchens e os estadunidenses Sam Harris e Daniel Dennett. Nesse cenário, constata-se, bem como em épocas passadas, uma forte influência ocidental de vertente liberal na formação de um ativismo ateísta e secularista pelo mundo.

O etnólogo e biólogo evolutivo Richard Dawkins é autor do livro The God Delusion (Deus, um Delírio) — publicado originalmente no Reino Unido, em 2006 —, foi apresentador do documentário britânico The Root of All Evil? (A Raiz de Todo o Mal?) — exibido em dois episódios de 45 minutos cada pela emissora inglesa Channel 4, também em 2006 — e é fundador da Richard Dawkins Foundation for Reason and Science (Fundação Richard Dawkins para a Razão e a Ciência) — associação secularista que, em 2008, apoiou financeiramente a Atheist Bus Campaign (campanha publicitária ateísta vinculada nos ônibus da cidade de Londres, na Inglaterra), em parceria com a British Humanist Association — BHA (Associação Humanista Britânica), organização humanista secular do Reino Unido. O jornalista e escritor Christopher Hitchens, falecido em 2011 vitimado por um câncer — mas que se manteve ateu convicto até os últimos instantes de sua vida — , é autor do livro God Is Not Great: How Religion Poisons Everything (Deus Não é Grande: Como a Religião Envenena Tudo), publicado no Reino Unido em 2007, além de ser considerado um dos maiores militantes ateístas da história contemporânea. O filósofo e neurocientista Sam Harris é autor dos best-sellers The End of Faith: Religion, Terror, and the Future of Reason (O Fim da Fé: Religião, Terror e o Futuro da Razão), publicado em 2004, Letter to a Christian Nation (Carta a Uma Nação Cristã), publicado em 2007, e Waking Up: A Guide to Spirituality Without Religion (Despertar: um Guia para a Espiritualidade Sem Religião), publicado em 2014. Já o filósofo Daniel Dennett é autor das obras Breaking the Spell: Religion as a Natural Phenomenon (Quebrando o Encanto: A Religião como Fenômeno Natural), publicada em 2006, e Darwin’s Dangerous Idea (A Perigosa Ideia de Darwin), lançada em 1995.

Dawkins, Hitchens, Harris e Dennett foram os expoentes do movimento neoateísta, impulsionando o surgimento de focos de ondas e núcleos militantes em todo o planeta. Em terras luso-brasileiras, por exemplo, o ativismo ateísta ganhou força, destaque e notoriedade a partir dessas influências e através das fundações de associações seculares e de livre-pensamento, como é o caso da Associação Ateísta Portuguesa (AAP), criada em 2008 em Portugal, da Liga Humanista Secular do Brasil (LiHS), fundada em Porto Alegre/RS no ano de 2010 (está inativa desde 2019) e, principalmente, da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA), fundada em São Paulo/SP no ano de 2008 pelo engenheiro Daniel Sottomaior. A partir de então, o ativismo ateísta se proliferou universalmente, realizando ações secularistas e humanistas e difundindo propagandas e materiais antirreligiosos e laicistas pelo mundo, por intermédio, em especial, do chamado “ciberateísmo” (modelo de militância ateia virtual mobilizada e engajada através das mídias digitais, a partir da divulgação de conteúdos ateístas nas redes sociais).

Mas fato é que, apesar de terem sido os expoentes do novo ateísmo, os pais fundadores neoateístas não foram os únicos, muito menos os pioneiros desse ativismo no planeta. É possível que eles sejam os mais famosos e conhecidos, principalmente na modernidade, porém não detém exclusividade quando o assunto é militância ateísta. Há mais perfis históricos que merecem destaque e reconhecimento.

Com a morte de Hitchens, em 2011, uma nova representante do movimento ateu entrou em cena, sendo considerada a “Quarta Cavaleira do Não Apocalipse e do Neoateísmo”, em substituição ao militante falecido. Trata-se da ativista negra e feminista ateia Ayaan Hirsi Ali, nascida na Somália e duramente perseguida pelo terrorismo islâmico após ter abandonado a mitologia e assumido o ateísmo em terras orientais. Sexualmente mutilada pelos radicais teocratas e exilada no Ocidente fugida do fundamentalismo islã, Hirsi Ali passou a combater o islamismo cultural, criticando a fé islâmica e a lei xaria, promovendo ideais humanistas e secularistas e defendendo a laicidade do Estado e os direitos humanos, em especial para mulheres árabes oprimidas pelo sistema muçulmano opressor. A ativista é autora de uma autobiografia intitulada Infidel: My Life (Infiel: Minha Vida), a qual fora publicada em 2006, contando sua trajetória de vida enquanto vítima da religião terrorista do Oriente Médio e sua desconversão do islã, e do livro Herege (2015), onde defende uma profunda reforma da mitologia islâmica.

Para além de Hirsi Ali, é possível citar, dentre o ativismo ateísta e secularista global, o papel de instituições humanistas estadunidenses como a American Humanist Association — AHA (Associação Humanista Americana), fundada em 1941, a Freedom From Religion Foundation — FFRF (Fundação Liberdade da Religião), fundada em 1978, a Atheist Alliance International — AAI (Aliança Ateísta Internacional), fundada em 1991, e a Black Nonbelievers — BN (Negros Descrentes), fundada em 2011 pela ativista afro-americana e ateia Mandisa Thomas. Além dessas organizações, destacam-se o movimento ateísta, antiteísta e antirreligioso Liga dos Militantes Sem Deus (também conhecido como Liga dos Ateus Militantes ou Sociedade dos Ateus) — fundado nos anos 1920 na União Soviética, durante o Estado ateu do bloco socialista — e a atuação de militantes históricos, como é o caso do filósofo iluminista e autor do livro Système de la nature ou Des loix du monde physique et du monde moral (Sistema da Natureza ou das Leis do Mundo Físico e do Mundo Moral), publicado em 1770, Barão d’Holbach, da feminista, sufragista e abolicionista polonesa Ernestine Rose, e da advogada estadunidense Madalyn Murray O’Hair — a qual é tema central deste artigo, após essa necessária introdução do ativismo ateísta mundial.

Quem foi Madalyn O’Hair?

Nascida com o nome de Madalyn Mays no dia 13 de abril de 1919 na cidade de Pittsburgh, no estado da Pensilvânia, a futura ativista ateia cresceu em lar religioso impregnado pelo cristianismo, tendo um pai, John Irvin Mays, presbiteriano e uma mãe, Schoelle Christina, luterana. Desde cedo, porém, Madalyn demonstrou-se uma pessoa questionadora e crítica das crenças religiosas, principalmente por culpa do fanatismo teísta de seus pais. Por conta disso, a partir de seus 22 anos, Madalyn se libertou das doutrinas e passou a se assumir como ateia perante a família e a sociedade, se opondo direta e incisivamente ao sistema cristão que feria os princípios-bases da laicidade nos EUA.

A ateia — graduada em Direito em 1949, mas que nunca exerceu a profissão — casou-se com William J. Murray Jr. nos anos 1940, com quem teve um filho, William J. Murray III, absorvendo o sobrenome Murray. Passados os anos, Madalyn deu à luz a um filho de pai desconhecido, Jon Garth Murray, e, mais tarde, casou-se novamente, desta vez com Richard O’Hair, no Havaí, quando obteve o sobrenome O’Hair. A partir de 1954, após o fim de seu primeiro casamento, Madalyn passou a viver com a mãe e seu primeiro filho na cidade de Baltimore, no estado de Maryland.

Em 1960, O’Hair ganhou notoriedade em seu país após processar a direção da escola onde seu filho mais velho, William, de 14 anos, estudava em Baltimore, devido a práticas obrigatórias de oração e leitura da Bíblia durante as aulas. Segundo relatos da época, os alunos eram submetidos a práticas confessionais cristãs no início das aulas, o que motivou a denúncia de Madalyn contra o sistema escolar estadunidense, alegando que tal fato feria o princípio de secularização e de liberdade constante na Primeira Emenda da Constituição norte-americana. O caso, que chegou à Suprema Corte dos EUA após longos processos em judiciários regionais, durou três anos de batalhas judiciais televisionadas por todo o país, ficando popularmente conhecido como Murray versus Curlett. Como resultado, em 1963, o sistema judiciário estadunidense concedeu vitória à ateia e à laicidade e declarou a atual prática como inconstitucional nas escolas de Maryland, decretando, assim, o banimento das orações e das oratórias bíblicas nas escolas públicas de todo o país. A partir da repercussão do caso jurídico, O’Hair tornou-se uma figura famosa, aparecendo em diversos programas de entrevistas na televisão, onde defendia abertamente ideais ateístas e secularistas e promovia críticas e ataques diretos à religião cristã e às igrejas pentecostais que dominam e influenciam a nação estadunidense.

Ateia convicta, feminista e progressista, Madalyn se dedicou ao ativismo ateísta com ênfase, protestando contra violações à laicidade do Estado, ataques às liberdades religiosas e a intolerância fundamentalista. Ainda em 1963, fundou a American Atheists (Ateus Americanos), organização sem fins lucrativos que até os dias de hoje promove a luta em prol do Estado laico e dos ateus nos EUA, bem como o combate ao cristianismo cultural, e a qual O’Hair assumiu o cargo efetivo de presidente até 1986.

Contudo, se tratando de um país extremamente religioso e conservador como os Estados Unidos — ainda mais em plena década de 1960 — , a atuação de Madalyn não passou despercebida e ignorada pelos doutrinados e alienados da fé. O ativismo ateísta, secularista, humanista e racionalista de O’Hair, ao defender a separação total e radical entre Estado e Igreja e a secularização das instituições públicas no país, assim como as críticas e os ataques lógicos e racionais da militante ao cristianismo e ao sistema confessional-cristão, incomodou os fiéis religiosos, que sentiram fortemente o poder de uma empoderada mulher ateia. O célebre embate de Madalyn com os teístas defensores do ensino religioso nas escolas nos tribunais e sua relação aberta e direta com o ateísmo, em oposição aos preceitos da fé, fez com que a ativista fosse duramente perseguida e discriminada pela sociedade conservadora cristã estadunidense, sendo vítima de ateofobia explícita e de diversas calúnias por durante toda a sua vida. As polêmicas em torno da militante por seus fortes posicionamentos sobre religião e ateísmo resultaram em muitos ataques contra a ateia, incluindo tentativas de assassinatos por parte dos extremistas da religião que, apenas na teoria, prega a paz e o amor. Assim, O’Hair sofreu por décadas com a aversão, o desprezo e o ódio cristão, sendo sabotada, segregada e invisibilizada inclusive pelos meios de comunicação. Porém, ela não se calou e, sendo uma das mulheres mais admiráveis de todos os tempos, resistiu às diferentes formas de opressão, repressão e silenciamento, tendo sido considerada, em 1964, pela Revista Time, “a mulher mais odiada da América”.

Entretanto, em agosto de 1995, algo terrível aconteceu com a ateia. Após anos assumindo de forma informal o comando da Ateus Americanos, Madalyn, seu filho mais novo, Jon, sua neta adotiva, Robin Murray O’Hair (filha de seu primeiro filho, William, um traidor que, corrompido e doutrinado pelo sistema religioso, se converteu ao cristianismo, rejeitando a brava luta de sua mãe), e um valor de US$ 600 mil que constava na conta bancária da associação ateísta desapareceram. Na época, foi-se especulado que a família havia fugido com o dinheiro, mas a verdade é que o sistema sócio-cultural cristão pouco se importou com o desaparecimento da ativista e de seus entes, celebrando o ocorrido.

Após uma série de investigações por parte do FBI, descobriu-se que O’Hair e seus familiares haviam sido sequestrados e as contas da Ateus Americanos roubadas. Os crimes foram cometidos por David Roland Waters, ex-funcionário da associação e homem de confiança da ateia (outro traidor), com a ajuda de dois cúmplices. A motivação se deve ao fato de Waters ter roubado parte das receitas da Ateus Americanos enquanto ainda trabalhava na fundação e, quando descoberto, ter sido demitido e publicamente exposto pela fundadora da instituição na American Atheist Magazine (revista da associação ateia). Ou seja, tratava-se de uma vingança, com desfecho trágico.

Mantidos presos em cativeiro por em torno de pouco mais de um mês, no dia 29 de setembro de 1995, Madalyn, aos 76 anos, seu filho e sua neta foram assassinados e tiveram seus corpos mutilados e enterrados pelos sequestradores. Waters, assim que capturado, prontamente assumiu a culpa à polícia estadunidense, sendo condenado a 20 anos de prisão pelos crimes cometidos. Apenas seis anos mais tarde, em 2001, o responsável indicou às autoridades o local onde os corpos do trio foram escondidos. Encontrados em um rancho no Texas, os cadáveres foram sepultados por William, filho mais velho de Madalyn, em local mantido em sigilo. Já o criminoso traidor, por sua vez, morreu de câncer de pulmão em 2003, ainda na cadeia.

Em 2017, a Netflix lançou a produção The Most Hated Woman in America (A Mulher Mais Odiada dos Estados Unidos), filme que conta a história de vida da ativista ateísta Madalyn Murray O’Hair (interpretada pela atriz Melissa Leo), desde o início de sua batalha judicial pela laicidade nas escolas públicas dos EUA, nos anos 1960, até seu desaparecimento e sua morte, nos anos 1990.

Madalyn é até hoje uma inspiração de resistência e luta por um Estado verdadeiramente laico, por visibilidade ateísta, pela secularização e contra a ateofobia e o cristianismo cultural no mundo ocidental. Sua trajetória, sua representatividade e seus marcos inspiraram e impulsionaram a militância de ateus e ateias no mundo todo. Hoje, somos seus seguidores.

O ativismo de Madalyn entre as décadas de 1960 e 1990, bem como da Ateus Americanos até os dias atuais, foi fundamental para a atuação ateísta e secularista não apenas nos EUA, mas em todo o planeta. A partir de sua iniciativa e de seus esforços em um país imperialista e conservador dominado pela doutrina cristã, foi possibilitado o surgimento do neoateísmo nos anos 2000, inspirados pelo continuísmo dado por Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Sam Harris, Daniel Dennett, entre outros. Assim, a militância ateísta foi alavancada, desenvolvida e modernizada, atingindo proporções relativamente significativas para a comunidade de livres pensadores.

Que no mês do Orgulho Ateu — comemorado nacionalmente no Brasil no dia 12 de fevereiro, em homenagem ao nascimento do naturalista britânico Charles Darwin, pai da teoria evolucionista das espécies pelo processo de seleção natural que refutou o criacionismo teísta — O’Hair sirva de inspiração para nós, enquanto seus discípulos, seguirmos seus passos na construção e na efetivação de uma laicidade factual, na consolidação de um ativismo ateísta mais consistente e abrangente e na destruição do sistema religioso socialmente constituído e imposto por meio de doutrinação sócio-cultural.

REFERÊNCIAS

A mulher mais odiada dos Estados Unidos. Direção: Tommy O’Haver; Roteiristas: Tommy O’Haver e Irene Turner; Produção: Elizabeth Banks, Max Handelman e Laura Rister; Edição: Michael X. Flores; Fotografia: Armando Salas; Música: Alan Ari Lazar; Produtora: Brownstone Productions; Distribuidora: Netflix. 2017. 91 min.

ARAUJO, Julio Cezar de. A fatal história da mulher mais odiada dos Estados Unidos. Mega Curioso, 2020. Disponível em: <https://www.megacurioso.com.br/artes-cultura/113183-a-fatal-historia-da-mulher-mais-odiada-dos-estados-unidos.htm>. Acesso em: 13 fev. 2023.

Madalyn Murray O’Hair: a trágica história da mulher ateia ‘mais odiada dos EUA’. BBC News Brasil, 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-46699569>. Acesso em: 13 fev. 2023.

Sequestrada e morta por ser ateia: Madalyn Murray O’Hair, a mulher mais odiada dos Estados Unidos. Aventuras na História — UOL, 2020. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/sequestrada-emorta-por-ser-ateia-madalyn-murray-ohair-a-mulher-mais-odiada-dos-estados-unidos.phtml>. Acesso em: 13 fev. 2023.

G. da Natividade Mac.

★ Estudante de Ciências Sociais na UFRGS, escritor, torcedor do Grêmio FBPA, social-democrata e ateu militante. • Porto Alegre/RS