G. da Natividade Mac.
16 min readJun 15, 2023

O ATEÍSMO NO BRASIL

Por Guilherme Natividade

No Brasil, de acordo com dados do Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano de 2010, cerca de 15 milhões de habitantes do país sul-americano declaram não seguir nenhuma crença religiosa. É fato que o percentual de pessoas sem religião vem aumentando significativamente nas últimas décadas e, mais especificamente, nos anos mais recentes, em decorrência de avanços científicos e tecnológicos importantes, o que possibilita maior acesso à informação, ao conhecimento e a demais perspectivas e concepções filosóficas de mundo que diferem da ótica religiosa. Entretanto, é preciso esclarecer que não ter religião não significa necessariamente ser ateísta e, consequentemente, não possuir fé, crenças mitológicas e demais espiritualidades místicas.

Dentre os 15 milhões brasileiros que, no Censo 2010, se declararam sem religião, somente 615 mil se assumiram ateus/ateias, o que corresponde a uma média de 4% do percentual de não religiosos¹. Do total dos sem religiosidade, 124 mil se disseram agnósticos (singulares), número correspondente a menos de 1% dos irreligiosos no Brasil. Ou seja, apesar do aumento significativo do perfil de pessoas sem religião — o que indica um distanciamento por parte da população das mitologias religiosas e, consequentemente, para um futuro ainda distante, mas atingível, um definhamento destas em processo gradual — , tanto o ateísmo quanto o agnosticismo singular ainda permanecem em posições minoritárias, marginalizadas e segregadas da vida pública, fazendo com que o povo, mesmo que se afastando das doutrinas, não perca sua fé, nem passe a duvidar dela.

Atualmente, enquanto o percentual populacional dos sem religião é consideravelmente elevado anualmente, mostrando um certo avanço social da sociedade brasileira que, progressivamente, vem se libertando das amarras religiosas e dos domínios das igrejas, a porcentagem de ateístas segue em média de, no máximo, 5% da população, recebendo aumentos anuais pouco ou quase nada significativos. E o problema maior e mais complexo está justamente nos números medianos que, aproximados, não apresentam dados precisos quanto à quantidade real de ateus e ateias no Brasil.

Das problemáticas existentes, duas são mais significativas. A primeira se deve ao fato do IBGE, enquanto principal órgão provedor de informações geográficas e estatísticas do país, não incluir, dentre os perfis religiosos, uma opção específica de ateus e agnósticos ao grupo de pessoas sem religião. É verdade que, desde o Censo 2010, é possível registrar a identidade ateísta ou agnóstica do entrevistado quando este indicar diretamente ao recenseador durante o levantamento de dados; porém, caso o pesquisado declare que apenas não possui religião, mesmo sendo ateu, será indevidamente adicionado ao grupo geral de cidadãos sem religião, juntamente com aqueles que, não praticantes de alguma fé religiosa, cultivam uma crença em alguma divindade. Esse modelo dificulta a obtenção de uma especificidade numérica da comunidade ateísta enquanto subgrupo da população brasileira que não professa e pratica nenhuma religião.

A segunda problemática se deve à ateofobia que, estruturada na sociedade brasileira doutrinada pelo cristianismo cultural, oprime e discrimina as minorias sem religião e, mais especificamente, sem fé em deus. Por conta do medo da aversão, do desprezo e do ódio proferido por amigos, familiares e pela sociedade de modo geral, os descrentes enfrentam dificuldades para “saírem de seus armários” e se assumirem publicamente enquanto ateus/ateias na vida social. Nestes casos, o receio da invisibilidade, da exclusão e da intolerância praticada pelos sujeitos religiosos faz com que membros da comunidade ateísta optem, ao participar do Censo e de demais pesquisas que avaliem o perfil religioso da população barsileira, por se autodeclararem apenas como sem religião — assim, de forma ampla e nada delimitada —, quando não declaram, de maneira indevida, seguir a mesma religião de seus parentes e demais agentes do convívio social, a fim de reprimirem-se internamente e esconderem o ateísmo de suas particularidades personalísticas, privando-se da livre exposição identitária no intuito de se blindarem do preconceito e da discriminação que muito provavelmente deverão sofrer. Tal situação, para além das pesquisas de opinião pública e demográficas, faz até com que muitos ateus frequentem espaços religiosos, como igrejas e templos, e participem de rituais teístas compulsoriamente, na intenção de agradar a família, evitar o isolamento e ocultar suas posições ateístas da vida pública, limitando-as a exposições secretas em bolhas sociais oportunizadas pelo advento de canais de comunicação restritos ao ciberespaço.

Enfim, estas são as principais problemáticas sociais que dificultam a obtenção de dados mais fidedignos quanto ao percentual de ateus/ateias e mesmo agnósticos singulares no Brasil. Aliás, por se tratar de um dos países mais religiosos do planeta, além de ser, segundo levantamento do Instituto Ipsos realizado em 2023², a nação que mais crê em um deus monoteísta no mundo (89% da população), a ateofobia é, dentre os maiores percalços do movimento, o aspecto estruturante que, enraizado na sociedade religiosa e num Estado teoricamente laico, detém responsabilidade por vitimar e violentar a comunidade ateísta nas relações sociais e nas ações deste grupo por direitos, liberdades, visibilidade e representatividade. É assim desde os primórdios da história do ateísmo no Brasil.

Talvez você se pergunte ou já tenha se questionado quando surgiu o ateísmo e, principalmente, a militância ateísta no Brasil. Um tema tão pouco abordado na historiografia, na mídia e no debate público brasileiro (e, quando citado, sempre de forma pejorativa e ofensiva) merece receber uma maior atenção por parte de historiadores e pesquisadores da área das ciências humanas e sociais.

Pois bem, de acordo com o livro O ateísmo no Brasil: os sentidos da descrença nos séculos XX e XXI, publicado pela editora Paco Editorial no ano de 2020 e escrito pelo Doutor em História e professor Ricardo Oliveira da Silva — o qual estuda a historiografia do ateísmo no Brasil e no mundo, ministrando, desde 2019, a disciplina optativa de História do Ateísmo na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), no campus de Nova Andradina/MS, além de ter sido um dos idealizadores do curso e do projeto de extensão Ateísmos, Descrenças Religiosas e Secularismo — , o ateísmo militante é identificado no país desde o advento da República, que aboliu o sistema do padroado e pôs fim ao império monárquico e ao catolicismo oficial da nação, estabelecendo, por intermédio da promulgação da primeira Constituição Federal, em 1891, a laicidade no Brasil. A partir de raízes positivistas e concepções cientificistas provenientes do Iluminismo que impulsionaram a eclosão ateísta em terras tupiniquins, o movimento teve origem no anticlericalismo do início do século XX, por meio de ligas anticlericais que se opuseram às fortes influências de uma Igreja Católica recém expurgada do poder estatal pela nova era republicana. Contudo, foi através de setores populares do operariado que os ideais irreligiosos e secularistas ganharam força e notoriedade em nível nacional.

O ateísmo encontrou espaço na sociedade e na política brasileira a partir do anarquismo e do marxismo, os quais absorviam posições anticlericais e laicistas. Dentre os anarquistas, a expressão máxima se deve ao jornal periódico A Lanterna (1901–1935), fundado por Benjamim Mota e sendo um importante instrumento de combate ao clero na época. Já entre os marxistas, estes influenciados pelo materialismo histórico-dialético corrente na filosofia e nas obras de Karl Marx e Friedrich Engels, bem como de Vladimir Lenin, o anticlericalismo e o ateísmo materialista foram expressados desde a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1922, absorvendo a política irreligiosa instituída oficialmente durante o Estado ateu promulgado na União Soviética socialista em meados da década de 1920.

Entretanto, segundo Silva (2020), “as duas primeiras décadas do século XXI foram palco de um ativismo em torno do ateísmo sem paralelo com outras épocas históricas” (p. 139). Ou seja, durante este período, o ateísmo passou, talvez pela primeira vez em sua história, a ser o ponto central das ideias de uma comunidade, bem como um fator capaz de unificar um grupo em torno de um ideal comum (MOREIRA apud SILVA, 2020, p. 145). Desse modo, os movimentos anarquistas e marxistas deixaram de ser os canais necessários para se expressar uma posição anticlerical, laicista e irreligiosa.

Após os atentados terroristas islâmicos contra o World Trade Center (Torres Gêmeas) ocorridos no dia 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, uma nova fase do movimento ateísta ganhou forma no mundo, construindo um ativismo até então inédito na historiografia do ateísmo. A partir das obras dos considerados “quatro cavaleiros do ateísmo” — os britânicos Richard Dawkins e Christopher Hitchens e os estadunidenses Sam Harris e Daniel Dennett — , surgiu o chamado “neoateísmo” (novo ateísmo), ou “ateísmo do século XXI”, o qual passou a se concentrar, para além de livros sobre a temática publicados ao longo da primeira década, em atividades de militância racionalista, humanista secular e antiteísta nos meios virtuais, denominadas de “ciberateísmo” pela professora Salma Ferraz (SILVA, 2020).

No Brasil, o neoateísmo deu seus primeiros passos após a tradução de obras de intelectuais do movimento, como, por exemplo, o livro The God Delusion (Deus, um Delírio), de Dawkins, publicado no Reino Unido em 2006 e lançado no território brasileiro em meados de 2007, pela editora Companhia das Letras. Infelizmente, poucas obras produzidas no exterior sobre o tema foram traduzidas para o português e, consequentemente, lançadas no Brasil, assim como são escassos os trabalhos produzidos sobre a temática, em diversas áreas do conhecimento, no país. Quase não há referenciais bibliográficos referente ao ateísmo na língua portuguesa, assim como há raros projetos de pesquisa sobre o assunto no universo acadêmico. Em contrapartida, o pouco que se pode encontrar de produções acadêmicas sobre a temática relaciona-se, quase que em totalidade, com as áreas da teologia e das ciências da religião, além de alguns exemplares provenientes do campo da História. Um caso notório de material historiográfico traduzido para o português é o livro História do Ateísmo, do francês Georges Minois, publicado no Brasil pela editora Unesp.

Porém, o neoateísmo só foi impulsionado no país com a criação de associações que, assim como no restante do planeta, deram notoriedade ao ativismo ateísta para fora dos limites das redes sociais, de blogs e de fóruns on-line, adentrando também nos espaços políticos e jurídicos. Em 2008, na cidade de São Paulo/SP, foi fundada por Daniel Sottomaior, Alfredo Spínola e Mauricio Palazzuoli a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA), reconhecida como a primeira organização de ateus brasileira e considerada a maior da América Latina. Dois anos mais tarde, em 2010, surgiu, em Porto Alegre/RS, a Liga Humanista Secular do Brasil (LiHS), a qual promoveu, em 2012, o I Congresso Humanista Secular do Brasil, realizado na capital gaúcha. Já em 2013, foi fundada, em Brasília/DF, a Associação Ateísta do Planalto Central (APCE), presidida por Glória Amâncio da Silva.

Todas as entidades citadas promoveram ações sociais e judiciais em defesa da comunidade ateísta e da laicidade constitucional prevista no artigo 19 da Carta Magna de 1988. No caso especial e mais notório da ATEA, que tem no ativismo jurídico sua principal forma de atuação na vida pública (Montero; Dullo, 2014), destaque para o processo judicial feito pela associação contra o apresentador José Luiz Datena e a Rede Bandeirantes no ano de 2010, após, na referida data, o comunicador ter proferido discurso discriminatório contra a comunidade ateísta, associando o ateísmo à criminalidade em edição do programa Brasil Urgente, na emissora paulista. No ano subsequente, tanto o apresentador quanto o canal foram condenados a pagarem multa no valor de R$ 10.000,00³, sendo esta uma das mais expressivas vitórias da ATEA e, especialmente, da população ateia.

Já no âmbito social, devido à maior popularidade da associação presidida por Daniel Sottomaior, destaca-se também a campanha publicitária realizada em outdoors da cidade de Porto Alegre/RS no ano de 2011. A campanha, que ganhou visibilidade nas principais avenidas da capital sul-rio-grandense, foi originalmente inspirada na Atheist Bus Campaign — ação promovida em 2009, veiculando a mensagem There’s probably no god. Now stop worrying and enjoy your life (Provavelmente deus não existe. Pare de se preocupar e aproveite sua vida) nos ônibus de Londres, na Inglaterra. A ideia inicial da ATEA foi reproduzir no Brasil o mesmo que a iniciativa britânica realizou na capital inglesa, divulgando mensagens de cunho ateísta e antirreligiosa nos ônibus das principais capitais brasileiras. Contudo, devido à receptividade negativa por parte das empresas de transportes das cidades pretendidas, bem como de interpretações equivocadas e controversas das legislações municipais — evidenciando casos de ateofobia explícita contra a propagação do ateísmo — , a primeira campanha ateísta do Brasil teve de ser limitada a painéis publicitários das vias públicas porto-alegrenses, o que acabou minimizando a visibilidade da ação e, a partir da baixa notoriedade que obteve, fomentando ainda mais o preconceito contra ateus no país e o desprezo da sociedade religiosa para com os ateístas, que foram “percebidos socialmente como uma “minoria fundamentalista”” (Montero; Dullo, 2014, p. 59).

Atualmente, desde a irregular desativação da página oficial da ATEA pelo Facebook em 2018, devido alegação falaciosa da plataforma de suposta promoção de “intolerância religiosa” por parte da associação (lê-se perseguição à comunidade ateísta por pressão de grupos fundamentalistas às big techs), a entidade tem reduzido suas atividades anualmente, limitando-se às cada vez mais escassas ações judiciais em defesa do Estado laico e da população ateia, por conta de baixas arrecadações que possibilitem a abertura de processos, e ao compartilhamento de memes ateístas e contrários à fé religiosa pela internet, o que tem sido um cômodo e desgastado costume que o ativismo ateísta tem, infelizmente, se delimitado a cada ano que passa. Quanto à APCE e à LiHS, a primeira segue em atividades remotas, sendo coordenada quase que única e exclusivamente por Glorinha Silva, sua fundadora, enquanto a segunda, apesar de oficialmente ainda existente, está a alguns anos inativa na prática efetiva. Tal cenário evidencia a necessidade da comunidade ateísta se unir e, coletivamente, criar novas instituições que representem e coordenem as futuras ações do movimento, seja por meio de uma associação ou mesmo de um partido político ateu.

É importante destacar que o neoateísmo brasileiro teve seu auge entre os anos de 2010 e 2015, com seu ápice aproximadamente pelo ano de 2012 e seu forte declínio a partir de 2016. Pode-se afirmar que a “primeira onda neoateísta brasileira”, digamos assim, plantou sementes e colheu bons frutos, enquanto perdurou. Uma pena que, desde 2013, com o aprofundamento da crise política no país e, consequentemente, do cenário de polarização e radicalização dos últimos anos, o movimento foi aos poucos se definhando, o que fez com que vários adeptos abandonassem a causa, bem como a própria posição ateísta, ou passassem a militar isoladamente, desunindo ainda mais um grupo demasiadamente minoritário. Com a ascensão do neoconservadorismo entre a sociedade e a potencialização de setores fundamentalistas religiosos na vida pública, a militância ateia foi aos poucos perdendo força, e o ateísmo passou a não ser mais um fator suficientemente capaz de, sozinho, unificar os indivíduos em torno desta afinidade em comum, a qual passou a ser mais vista como uma mera opinião pessoal reclusa à vida privada e não merecedora de uma luta político-social ativa e organizada.

Contudo, até o declínio da onda inicial, o neoateísmo no Brasil obteve importantes conquistas ao longo dos anos, contando com a realização de eventos significativos nas modalidades virtuais e também presenciais.

A partir de movimentações de entidades ateístas, o dia 12 de fevereiro passou a ser reconhecido, a nível nacional, como o Dia do Orgulho Ateu, em homenagem ao nascimento do naturalista britânico Charles Darwin. Infelizmente a data não é oficialmente reconhecida perante a Estado brasileiro no calendário nacional — como ocorre com feriados e demais festividades de viés religioso, mesmo num Estado constitucionalmente laico — , e muitos ateístas desconhecem a existência do marco comemorativo para se expressar o orgulho descrente, porém considera-se uma significativa vitória coletiva em prol da visibilidade de ateus e ateias no Brasil.

Outros simbolismos são encontrados principalmente nos meios digitais, onde se concentra quase que exclusivamente a militância neoateísta. Para além de páginas ateias que visam o compartilhamento de mensagens, memes e propagandas em favor da filosofia ateísta e críticas às religiões no Instagram e, principalmente, no Facebook, canais no YouTube que, até os dias atuais, propagam a “palavra ateia” visando desconverter e conscientizar a sociedade doutrinada pelo cristianismo cultural, através da promoção da identidade, da representatividade e da visibilidade ateísta. Dos mais notórios, cito especificamente o paleontólogo Paulo Miranda Nascimento, o Pirulla, que, pioneiro na abordagem da temática na plataforma, tem expressado seu ateísmo abertamente desde o início da década de 2010, levando o tema ao debate público e gerando discussões importantes sobre o assunto. Além deste, destacam-se os trabalhos contra-apologéticos de Antônio Miranda, do canal Teologia Reversa, ex-Liga Racionalista, as pesquisas junto à opinião pública, por meio de entrevistas nas ruas de diferentes cidades brasileiras, promovidas por Jason Ferrer, do canal Além da Fé, e das vídeo-aulas sobre história do ateísmo ministradas pelo professor Ricardo Oliveira da Silva no canal Ricardo Russell. Tais conteúdos de cunho neoateu por vezes podem também ser localizados em produções de personalidades declaradamente ateias, como é o caso do psicólogo e neurocientista Daniel Gontijo, do historiador Leandro Karnal e do renomado médico Drauzio Varella.

Mas por fora da bolha das mídias sociais o ativismo neoateísta também se fez presente. Entre os anos de 2012 e 2016, por exemplo, desde o ápice até o declínio da primeira onda, foi organizado o Encontro Nacional de Ateus (ENA), contendo reuniões tanto virtuais quanto presenciais em diversos estados brasileiros. Segundo Silva (2020), “o I Encontro Nacional dos Ateus foi promovido [em 2012] pela Sociedade Racionalista, entidade fundada em 2011 com foco na difusão do conhecimento racional, e contou com o apoio dos principais blogs e entidades ateístas brasileiros, como a ATEA, a LiHS, o Ateísmo pelo Mundo, o Ateus do Brasil, o blog do jornalista Paulo Lopes [Paulopes] e o Troll Divino. Em sua primeira edição, o evento teve um caráter mais informal. Em vários estados o encontro foi voltado para a confraternização entre ateus, no sentido de estreitar laços de sociabilidade além daqueles mantidos nas redes sociais da internet” (p. 183–184). A segunda edição ocorreu em 2013, no estado do Acre, onde, no ano de 2012, foi criada a Associação de Ateus e Agnósticos do Acre, a qual passou a organizar o evento anualmente até 2016.

Também em 2013, foi publicada, em formato digital, a primeira edição da Revista Ateísta, idealizada pelo jornalista Gabriel Filipe. A iniciativa de um folheto de propaganda ateísta que abordasse pautas relacionadas ao ateísmo e à laicidade do Estado contou com quatro edições digitais e quatro impressas. A primeira edição física foi lançada no ano de 2014, a segunda em 2016, a terceira em 2017 e a última em 2018, contando com o auxílio de financiamento coletivo através da plataforma on-line Catarse para a produção e impressão dos exemplares. Eu, inclusive, me orgulho de ter sido um dos financiadores das duas últimas edições, contribuindo com a realização da ideia, enquanto apoiador bronze.

No ativismo político, apesar de alguns atores da vida pública, especialmente no campo da esquerda, se dizerem ateus de forma um tanto velada por receio de uma rejeição por parte do eleitorado — levando em consideração recentes pesquisas de opinião pública que retratam a aversão à comunidade ateísta pela sociedade brasileira e exemplos famosos como o de Fernando Henrique Cardoso que, em 1985, após falsas acusações de ateísmo, perdeu a eleição para a prefeitura de São Paulo/SP —, a atuação militante no cenário político institucional fica por conta exclusiva do jornalista, Mestre em Comunicação e autor do livro Ateufobia: aversão, desprezo e ódio contra os descrentes — publicado em 2022 pela editora Helvetia Edições e o qual contém um relato pessoal meu sobre discriminações vivenciadas — Edmar Luz de Almeida, o “político ateu”. Candidato a vereador por São Paulo/SP nas eleições municipais de 2016 e 2020 e a deputado federal pelo estado paulista nas eleições gerais de 2018, Edmar foi o único ator político a se assumir publicamente ateísta durante as campanhas e a levantar bandeiras em defesa da visibilidade ateia e do Estado laico, utilizando inclusive o símbolo do ateísmo em seus materiais de propaganda eleitoral. Em meio ao cenário crescente de candidaturas religiosas nos últimos pleitos⁴, Luz buscou ser um representante do movimento ateu na política institucional brasileira, a qual é frequentemente corrompida por agentes fundamentalistas inimigos da laicidade. Infelizmente, por conta da baixa visibilidade midiática, de poucos recursos financeiros destinados pelos partidos e, em especial, da ateofobia que compõe os pensamentos retrógrados da sociedade cristã, o candidato acabou não sendo eleito devido à quantidade inexpressiva de votos por ele obtida nas disputas legislativas, inclusive de parte da própria comunidade ateísta, que, de certo modo, compactua com o cristianismo cultural ao preterir candidaturas representativas por agentes que representam e atendem aos interesses obscuros das igrejas. Entretanto, as lutas e os esforços de Edmar Luz ao plantar sementes para que outros ateus ocupem os espaços públicos em nome da ideologia ateísta, enfrentando as diversas formas de opressão oriundas do seio cristão, devem ser valorizados e devidamente reconhecidos pela aguerrida comunidade de livres pensadores ateístas do Brasil.

Enfim, como bem aponta o Dr. Ricardo Oliveira da Silva em seu livro sobre a história do ateísmo no Brasil, “o ativismo na internet ainda é o meio privilegiado para que os ateus manifestem suas opiniões. Porém, diante das divergências, cisões e embates existentes, o que se pode esperar ou desejar é um mínimo de coesão desse grupo para enfrentar os desafios impostos por um país cada vez mais radicalizado politicamente e onde diversos grupos religiosos tentam moldar as instituições do Estado às suas crenças e aos seus valores” (2020, p. 219).

A comunidade ateísta tende a conhecer muito a Bíblia e a história geral das religiões. Inclusive, é através de conhecimentos bíblicos e de estudos apologéticos oriundos de campos da teologia e das ciências da religião que muitos indivíduos abandonam a fé e se tornam livres pensadores ateístas, emancipando-se do aprisionamento religioso e evoluindo socialmente. Contudo, é fundamental que nós conheçamos também a historiografia do ateísmo e a nossa própria história enquanto grupo oprimido, segregado e estigmatizado, para que, assim, possamos construir uma identidade e formar uma militância ativa e combativa em torno de uma causa ideológica e de pautas que nos elevem ao poder. É conhecendo o passado que se compreende o presente e se planeja o futuro.

Após uma série de derrotas recentes e um tanto significativas do fundamentalismo religioso, bem como o fim de um período obscurantista, negacionista científico, moralista, reacionário e ultraconservador da história do Brasil, devemos somar forças e unificar o movimento em defesa de um Estado verdadeiramente laico e da visibilidade e representatividade ateia na sociedade. É nosso dever enquanto livres pensadores, por necessidades de causa, fundar uma nova onda neoateísta no Brasil, desta vez mais incisiva e radical do que a anterior, propondo combater direta e abertamente as mitologias religiosas no Poder Público, enfrentar o cristianismo cultural, almejando sua destruição, e instaurar um sistema que promova a separação total entre Igreja e Estado, a secularização de todos os órgãos públicos e o afastamento da religião e suas instituições representativas da esfera pública brasileira, concentrando-as em campos reclusos ao âmbito estritamente privado, em preservação aos princípios humanistas seculares.

Se a história da humanidade é construída a partir de ideais revolucionários, a revolução brasileira deve ser e será ateísta.

REFERÊNCIAS

¹ CARRANÇA, Thais. Jovens ‘sem religião’ superam católicos e evangélicos em SP e Rio. BBC News Brasil, 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61329257#:~:text=Quem%20s%C3%A3o%20os%20brasileiros%20'sem%20religi%C3%A3o'&text=No%20Censo%20de%202010%2C%20por,agn%C3%B3sticos%20(0%2C8%25). Acesso em: 09 jun. 2023.

² Brasil é país que mais crê em Deus no mundo, diz estudo: 89% da população. O Globo, 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/05/brasil-e-pais-que-mais-cre-em-deus-no-mundo-diz-estudo-89percent.ghtml. Acesso em: 09 jun. 2023.

³ 7/11: Datena condenado em primeira instância. ATEA — Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, 2011. Disponível em: https://www.atea.org.br/datena-2/. Acesso em: 10 jun. 2023.

⁴ VASCONCELLOS, Fábio. Candidaturas de religiosos crescem 11%; 9 em cada 10 são de evangélicos. G1, 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2022/eleicao-em-numeros/noticia/2022/08/31/candidaturas-de-religiosos-crescem-11percent-9-em-cada-10-sao-de-evangelicos.ghtml. Acesso em: 10 jun. 2023.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MONTERO, Paula; DULLO, Eduardo. Ateísmo no Brasil: da invisibilidade à crença fundamentalista. Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 100, p. 57–79, 2014.

SILVA, Ricardo Oliveira da. O ateísmo no Brasil: os sentidos da descrença nos séculos XX e XXI. Jundiaí-SP: Paco Editorial, 2020.

G. da Natividade Mac.

★ Estudante de Ciências Sociais na UFRGS, escritor, torcedor do Grêmio FBPA, social-democrata e ateu militante. • Porto Alegre/RS