O MITO DO “RACISMO” NO GRÊMIO
Por Guilherme Natividade
“Eu sou gremista porque o céu é azul, a paz é branca e eu sou preto”.
(Gilberto Gil, torcedor ilustre e sócio do Grêmio FBPA).
Resumo: A partir de análises documentais, fontes jornalísticas e referenciais bibliográficos, este ensaio se propõe a analisar e desmistificar narrativas que tentam justificar a falsa alegação de que o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense é um clube institucional e culturalmente racista e elitista. Abordando detalhadamente cada argumentação favorável à afirmação popularmente proferida por torcidas rivais do futebol brasileiro contra a agremiação gaúcha, o texto apresenta contrapontos fundamentados que, ao mostrar a verdade sobre cada acusação, evidenciam a real origem e essência gremista.
Há, em todo o Brasil, uma mística que tenta estigmatizar o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense como um clube institucionalmente racista e, consequentemente, sua torcida, de modo geral, como um grupo de torcedores culturalmente racistas. A acusação leviana que tacha o Imortal Tricolor e a nação gremista, vinculando-os ao grave crime de racismo, parte do Rio Grande do Sul — um estado brasileiro marcado historicamente por massacrar a população negra — , mas ultrapassa fronteiras por um gigantesco país marcado por um forte e terrível passado escravista.
Seria hipocrisia demais negar que há ou que já houve racismo no Brasil, no Rio Grande e mesmo no Grêmio, enquanto instituição futebolística sulista. Da mesma forma, seria um negacionismo social e histórico absurdo a não aceitação do racismo estrutural e institucional factível e perceptível em estâncias gaúchas e, de modo geral, brasileiras. Entretanto, afirmar sem embasamento verídico algum que um clube de futebol é institucional e culturalmente racista por conta de invencionices históricas de seus rivais, casos esporádicos de injúria racial, mitos sem comprovação documentada e factoides derivados de acontecimentos descontextualizados de seus sentidos e cenários específicos — para fins de mera “corneta” esportiva que sustente a rivalidade entre grupos — é não apenas hipócrita e leviano, como propriamente demagógico e, por essência, estigmatizante.
Tendo isso em vista, a proposta deste ensaio é desmistificar, com base em análises documentais, fontes jornalísticas e referenciais bibliográficos, o famoso boato nacionalmente propagado no meio esportivo brasileiro de que a instituição futebolística Grêmio FBPA é um “time de racista” originalmente fundado e desde sempre composto única e exclusivamente por adeptos alemães, elitistas e/ou, pior, supremacistas brancos. Essa noção deturpada e desonesta utilizada pelos rivais como provocação a nós gremistas — acusando-nos de sermos criminosos — será pontualmente analisada e, a partir de dados historiográficos, refutada, para que calúnias e difamações espúrias nunca mais sejam naturalizadas e aceitas como “flauta” nas arquibancadas de arenas e estádios brasileiros. E para que a luta antirracista seja factualmente fortalecida, sem a intervenção de narrativas canalhas que mais desunem e enfraquecem do que agregam à mobilização por igualdade racial, mostrarei não só como o clube alvo dos estigmas sociais não possui um passado marcado pelo preconceito e pela discriminação racial, mas sim vinculado à inclusão, à diversidade e à equidade, como um definitivo e legítimo clube popular e de todas as cores.
A SUPOSTA “REJEIÇÃO” AOS NEGROS NO QUADRO DE ATLETAS
Grêmio; do verbo “agremiar”, que significa agregar, remetendo aos verbos acolher, incluir. Grêmio; que deriva da palavra “agremiação”, substantivo derivado do verbo agremiar, que também significa agrupar, associar, reunir-se em assembleia, em associação, em grêmio. Foi assim que o sorocabano Cândido Dias da Silva e seu grupo de mais de 30 comerciantes pensaram quando, na noite do dia 15 de setembro de 1903, agremiaram-se em torno de uma bola de futebol revestida em couro para, assim, fundar uma agremiação futebolística na cidade de Porto Alegre, capital do estado localizado na extremidade sul do Brasil. E deste ato de agremiarem-se, isto é, de reunirem-se em grêmio, surgiu o agrupamento agregador que resultou na associativa agremiação porto-alegrense devidamente nomeada de Grêmio.
Enfim, Grêmio é Grêmio; significa Grêmio, soa como Grêmio, fazendo jus ao nome. Grêmio não segrega; Grêmio agrega, agrupa, agremia, acolhe. Grêmio inclui, não discrimina, mas associa uma mesma paixão a uma pluralidade de variadas vidas, em variados sentidos provenientes das subjetividades de cada agremiado.
Entretanto, apesar dessa entonação agremiativa, há uma gravíssima acusação segregacionista contra uma nação de gremistas agremiados em torno de seu amado Grêmio.
Dizem as más línguas que o Grêmio foi o último clube de Porto Alegre, do Rio Grande do Sul e até mesmo do Brasil a aceitar atletas negros em seu quadro esportivo. Os rivais afirmam que o Tricolor só aceitou jogadores negros a partir da década de 1950, quando supostamente o atleta Osmar Fortes Barcellos — o Tesourinha — teria quebrado o tal “tabu” gremista. Assim aponta Ricardo Santos Soares no texto “O negro no futebol de Porto Alegre: um olhar sobre duas fontes gremistas”, onde diz que “em Porto Alegre, o último clube de futebol a permitir um jogador negro teria sido o “elitista” Grêmio em 1952, enquanto o Internacional, “clube do povo”, os aceitaria desde seus primórdios, segundo o senso comum” (2021, p. 127).
Mas o que há por trás do mito racista que em nada condiz com a natureza inclusiva desta nobre agremiação associativa e acolhedora?
Primeiramente, uma mentira que, contada mil vezes, foi tomada como verdade, a fim de manchar e prejudicar a imagem e o nome de um grande clube e sua torcida. Nunca houve, em nenhum artigo sequer do estatuto social do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, restrições de adesão, seja no tocante a atletas ou sócios-torcedores, por motivações étnicas, raciais, religiosas, sexuais, de gênero ou nacionalidade. Referindo-se única e exclusivamente a impeditivos etários e de conduta — como em muitos outros clubes esportivos do país —, a partir de análise documental, jamais foi encontrada qualquer cláusula oficial nos primeiros estatutos tricolores que proibisse a inclusão de atletas não brancos, ou propriamente negros, no quadro associativo ou de jogadores do clube gaúcho. Tal fato, somado a demais fatores que apresentarei na sequência, desmentem a premissa de que, de maneira oficial, o Grêmio não aceitava negros até a década de 1950, justamente pela falta de comprovação que ateste a tão proliferada lenda.
Nesse sentido, além de ser uma inverdade que o Imortal rejeitava atletas não brancos em seu quadro, a história e os registros documentais do próprio clube comprovam que o Tricolor dos Pampas não apenas não foi o último, como na realidade foi o primeiro clube porto-alegrense a contar com jogadores negros em sua formação, principalmente na comparação específica entre a rivalidade Grenal. De acordo com o jornalista Léo Gerchmann, em seu livro Somos azuis, pretos e brancos, o meio-campista Adão Lima foi “o primeiro atleta inquestionavelmente negro a jogar na dupla Gre-Nal” (2016, p. 13), tendo atuado no Grêmio por uma década, de 1925 a 1935. Para se ter uma noção, “o primeiro jogador negro do Internacional foi Dirceu Alves, em 1928. Dirceu atuou em dez jogos, durante oito meses, de setembro daquele ano a maio de 1929. Adão, no Tricolor, foi anterior e criou mais vínculo com o clube” (p. 29).
Além deste referencial, registros oficiais dos arquivos do Portal Oficial do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense¹, que retratam o memorial histórico e as curiosidades do clube, relatam a presença de outros atletas não brancos na história tricolor, muito antes da década de 1950. Segundo a fonte:
Ao contrário do que se imagina, Osmar Fortes Barcellos, o “Tesourinha”, não foi o primeiro atleta de cor negra a vestir a camisa do Grêmio. Ele foi sim o primeiro atleta negro de destaque na era profissional em 1952. Antes dele, brilharam nomes como Antunes (1913/14), Adão (1926/35), Laxixa (1937/40), Mário Carioca, Hélio, Prego (anos 40) e Hermes (1948/50).
Desse modo, Álvaro Antunes, atacante gremista de 1913 a 1914/16, foi a primeira personalidade afrodescendente a atuar com a camisa gremista na história do clube.
Portanto, ao contrário do que é popularmente dito, Tesourinha não foi o primeiro atleta não branco e propriamente negro a defender as três cores gremistas. Antes dele, em torno de uns dez jogadores de origem afrodescendente, além do factualmente negro Adão Lima — laureado pelo clube —, atuaram pelo Tricolor. Tesourinha foi, na verdade, o primeiro jogador negro a se destacar na era profissional da entidade; o pioneiro a ter relevância com a camisa do Grêmio, devido à sua trajetória vitoriosa na carreira. Porém, a instituição teve por décadas, ainda no período de amadorismo, atletas tidos como pardos em suas formações, mesmo que com baixo destaque; sendo que “apenas em 1952, com a contratação de Osmar Fortes Barcellos, […] o debate torna-se público” (SOARES, 2021, p. 138).
Mas se os arquivos do próprio Grêmio e a análise documental realizada nos primeiros estatutos do clube não são suficientes para desmistificar a narrativa estapafúrdia de que o Tricolor foi a “última instituição futebolística brasileira a aceitar negros em seu quadro de atletas”, talvez uma declaração oficial de uma outra entidade de igual finalidade refute definitivamente essa infundada suposição.
No mês de setembro de 2020, em homenagem à luta do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), o Clube Náutico Capibaribe, de Recife/PE, anunciou o lançamento de seu terceiro uniforme para a temporada, surpreendendo seus torcedores e os amantes do futebol no país inteiro com a apresentação de uma nova camisa negra, contendo o escudo do clube monocromático em preto. O objetivo do Timbu ao apresentar um uniforme com a cor de seus maiores rivais (Santa Cruz e Sport) foi apoiar a luta antirracista mundial e promover uma reparação histórica internamente na instituição pernambucana.
De acordo com matéria do site Globo Esporte do dia 18 de setembro de 2020², data de lançamento do terceiro uniforme alvirrubro, o Náutico foi, por muito tempo, conhecido como o “clube dos brancos” e o “último dos grandes de Pernambuco e tradicionais do Brasil a aceitar negros”. O primeiro negro a vestir a camisa alvirrubra foi Gentil Cardoso, como treinador, apenas em 1960.
Ainda conforme a matéria jornalística, mesmo após a inclusão de negros no início da década de 1960 (oito anos após Tesourinha ser anunciado pelo Grêmio e 35 anos após a estreia de Adão Lima no Tricolor gaúcho), o racismo interno no clube pernambucano perdurou por longos anos. Casos que vitimaram o atacante jamaicano Alan Cole, em 1973, e o goleiro Nilson, em 2002, ficaram marcados na história do Timbu, que tenta até os dias atuais reparar sua imagem perante a comunidade negra brasileira e, especialmente, nordestina.
Segundo o ex-goleiro alvirrubro Nilson, após ter sido chamado de “macaco” pela sua própria torcida em clássico disputado no estádio dos Aflitos contra a equipe do Santa Cruz, válida pelo Campeonato Pernambucano de 2002, “até 1960 existia esse preconceito, esse racismo. Jogadores negros não jogavam no Náutico”. Já de acordo com o vídeo introdutório de apresentação do uniforme comemorativo do Timbu, publicado nas redes sociais da instituição: “fomos [Náutico] o último clube grande a permitir negros vestindo a camisa alvirrubra. O preto não fazia parte das nossas cores […]”.
Essas confissões e autoafirmações do próprio Náutico, que reconheceu seu passado racista, desmistificam por completo a falácia de que o Grêmio teria sido o último clube a aceitar negros no Brasil. A verdade é que a associação recifense foi de fato a última instituição futebolística tradicional do país a incluir a comunidade negra em seu quadro de atletas, enquanto a agremiação porto-alegrense foi a pioneira a agregá-la em sua formação na capital gaúcha.
Então de onde surgiu essa falsa alegação de que o Grêmio rejeitava os negros?
De acordo com relatos do jornalista e escritor Eduardo Bueno em entrevista concedida em 2021 ao humorista e apresentador Rafinha Bastos no programa “Mais que 8 Minutos”, no canal do mesmo no YouTube³, essa imagem de racista atribuída indevidamente ao Grêmio foi inventada pelo seu maior rival, o Sport Club Internacional. Tal estigma foi fomentado pelos torcedores-símbolos do Colorado desde a década de 1940 — como o farsante Vicente Rao e seus discípulos — , sendo propagado até os dias atuais pela chamada Imprensa Vermelha Isenta (IVI) ao restante do Brasil. A torcida colorada e o próprio Inter, portanto, foram os principais responsáveis por criar essa lenda que se proliferou pelo país, contando, inclusive, com o apoio de demais torcidas rivais do Tricolor para espalhar o boato.
Já segundo o texto “A rivalidade gre-nal e o uso do termo “macaco” na torcida do Grêmio”, de Gustavo Andrada Bandeira, “a partir de 1937, [o Inter] passou a utilizar jogadores negros e pobres para fazer seu time mais forte. Com isso, o clube acabou conquistando nove dos dez campeonatos citadinos da década seguinte” (2021, p. 404–405). Contudo, essa foi apenas uma sábia estratégia colorada para combater seu maior rival, o Grêmio, tanto dentro quanto fora das quatro linhas. Pois, segundo Gerchmann (2016), “em momentos de crise dentro e fora de campo, na segunda metade dos anos 1930, o Internacional recorreu às classes desfavorecidas, entre as quais se perfilavam os negros ex-escravos, para formar um time forte, que resultou no grande Rolo Compressor […] e institucionalmente adotou o marketing inteligente de se autoproclamar o “clube do povo”” (p. 19).
Em suma, durante momento interno de crise técnica e econômica, o Inter recorreu a uma certa “mão de obra” mais acessível e barata, encontrando nos canelas pretas excluídos das ligas Porto-Alegrense e Rio-Grandense uma maneira de superar a hegemonia do Imortal Tricolor em campo e, ao mesmo tempo, suportar a instabilidade nas receitas originada ao final da década de 1920. Paralelamente a isso, o clube vermelho se aproveitou de sua medida dita “progressista” para a época para, dessa forma, promover uma sacada de marketing que ocultava sua origem igualmente elitista fundada por comerciantes brancos imigrantes, apropriando-se das alcunhas de “clube do povo” e “clube dos negros”, enquanto atribuía a fama de “clube de elite e racista” supostamente fundado exclusivamente por alemães ao rival azul. É assim que surge o mito do Grêmio ser um “time de racista”, como os colorados adoram entoar nas arquibancadas de seu recinto à beira do lago Guaíba.
Distorcendo a história, negando evidências e usufruindo da comunidade negra segregada por todos os clubes das principais ligas gaúchas e brasileiras em poucas décadas após a abolição da escravatura no Brasil, o Inter e sua torcida souberam, com maestria, criar uma narrativa e produzir um fato para utilizar como provocação ao maior rival, repetindo mais de mil vezes uma mentira que, para milhões de torcedores do Brasil inteiro, ainda é tida como verdade absoluta.
A REAL ORIGEM DO TERMO “MACACO” E AS RAZÕES DE SEU USO
O lado bom do futebol clássico está nos velhos tempos de cancha, quando se preservava a cultura de provocações sábias e sadias, sem tanto temor aos confrontos e, consequentemente, à violência antidesportiva promovida por ditos “torcedores”. Eram bons tempos de futebol raiz que, infelizmente, o futebol moderno da geração marcada pelo movimento de arenização destruiu com seus invencionismos exagerados e ditos “modernizantes”, “padrão FIFA”.
Houve um tempo em que a torcida do Juventude chamava a torcida do Caxias de “galinhas”. Houve uma época em que os rivais cariocas do Flamengo chamavam os flamenguistas de “urubus”. Houve um período em que os rivais paulistas de Palmeiras e Corinthians chamavam os palmeirenses e corintianos de porcos e gambás, respectivamente (e de certa forma os chamam até os dias de hoje). No caso de Flamengo e Palmeiras, por exemplo, os próprios clubes alteraram seus mascotes, oficializando os símbolos das provocações dos rivais, sem maiores polêmicas e problematizações. Já no caso do Internacional de Porto Alegre, os colorados frequentemente chamam os gremistas de “Smurfs”, por conta da cor azul, e “gazelas” (talvez este último adjetivo contendo alguma conotação homofóbica), o que também não costuma ser problematizado pelo senso comum.
Nestas saudosas épocas, enfim, vascaínos, tricolores e botafoguenses não eram tachados como “racistas” por proferirem gritos de “urubuzada” contra flamenguistas, assim como são-paulinos, santistas e corintianos igualmente não eram quando proferiam cânticos de “porcada” contra suas vítimas palestrinas. Naquele tempo, as referidas palavras, em primeiro lugar, remetiam a animais presentes na fauna brasileira; e mesmo que usadas de forma pejorativa, com a finalidade de “corneta” esportiva fruto da rivalidade, jamais carregaram tom discriminatório contra grupos étnico-raciais, visto partirem, na maioria dos casos, de torcidas oriundas das classes populares no futebol nacional.
É importante destacar que palavras com significados variados não carregam consigo sentidos exclusivos. Quando um termo é proferido, deve-se sempre avaliar o contexto e a forma como este foi empregado, bem como, por vezes, por quem e contra quem foi dito. Nesse sentido, há aspectos de conotação etimológica e posição social dos sujeitos que interferem nas relações sociais estabelecidas em uma sociedade tão diversificada.
Um exemplo que pode ilustrar bem o que aqui expresso é a palavra “veado”, que, primordialmente, remete a um mamífero da espécie dos cervídeos. Ao ser empregada no contexto social, tal expressão torna-se uma gíria (“viado”) que se origina de uma conotação discriminatória, mas que, com o passar do tempo, é subvertida, ganhando um sentido identitário. Desse modo, se um individuo heterossexual chamar um sujeito homossexual de veado, diminuindo-o a posição de um animal, isto é, inferior a espécie humana, percebe-se um caráter discriminatório na relação estabelecida. Já se um sujeito homossexual chamar outro indivíduo, também homossexual, de veado, a relação tende a estabelecer um caráter bem mais amistoso, fortalecendo, assim, laços e identidades. Ou seja, a questão central não está no que é propriamente dito, mas como, quando, onde, por quem e contra quem é dito, relativizando noções que envolvem diretamente contextos e conotações que retiram e, ao mesmo tempo, atribuem sentidos às palavras que, apesar de não serem neutras, não carregam consigo significados de forma isolada e totalizante.
Tendo isso em vista, podemos partir ao ponto central da argumentação.
É sabido que “a torcida do Grêmio, historicamente, se refere à torcida do Internacional como “macacos” e sua derivação “macacada”” (BANDEIRA, 2021, p. 407), como forma de provocação aos rivais vermelhos, aos moldes como os corintianos chamam os palmeirenses de porcos e os alviverdes chamam os alvinegros de gambás. Até aí tudo normal. Porém, mais do que uma simples relação de rivalidade, sustentada por conotações e contextos específicos, há dois embasamentos históricos que explicam e justificam o porquê da torcida colorada, coletivamente, ser pejorativamente chamada de “macacada” pelos gremistas.
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que, assim como no caso das expressões “galinha”, “gambá”, “porco”, “urubu” e “veado”, a palavra “macaco”, que sequer é utilizada como denominação de um conjunto de seres vivos no âmbito científico, se refere a mamíferos da espécie dos primatas. Lógico que, quando este termo é empregado socialmente e, a partir de um contexto histórico, usado contra pessoas especificamente da raça negra ou não brancos de modo geral, a palavra ganha uma conotação de origem racializada, sendo indevidamente proferida para inferiorizar o negro a uma condição sub-humana. Contudo, as palavras por si só, quando descontextualizadas, ou quando não avaliadas no contexto histórico em que são/foram empregadas, não estabelecem sentidos e relações sem a intervenção de aspectos complementares que as direcionem para concepções positivas ou negativas. Ou seja, o valor do julgamento está na intenção que embasa a utilização das expressões em sociedade.
“Os termos “macaco” e “macacada” para ofender os colorados constituem, de maneira muito significativa, os torcedores do Grêmio” (BANDEIRA, 2021, p. 410), fazendo parte da nossa cultura de arquibancada e de nosso estilo castelhano de torcer. Os próprios hermanos argentinos e uruguaios também os utilizam — apesar de, em muitos casos, num sentido xenofóbico e, de certa forma, até mesmo racista — , portanto não é algo originado e exclusivo no Tricolor. As raízes das provocações antecedem a torcida gremista, ultrapassando os limites de seus espaços de concentração nos estádios brasileiros.
A primeira versão histórica que explica a real origem do termo “macaco” e as razões de seu uso pela torcida gremista vem lá da época do Estádio dos Eucaliptos, a primeira casa colorada, inaugurada em 1931. Reza a lenda que naquele tempo os torcedores do Inter, para poderem assistir às partidas do Colorado sem precisar adquirir ingressos, ou quando estes já estavam esgotados, costumavam subir nas árvores posicionadas ao redor do estádio e, pendurados em seus galhos, acompanhavam os confrontos do clube vermelho da capital gaúcha pelo campeonato citadino. E convenhamos, quem sobe em árvores e fica pendurado em galhos é, por estereótipo popular, o macaco; ou melhor, a cadeia de primatas que, de modo geral, recebe esta nomenclatura. A analogia é simples e direta, sendo passada de geração em geração e utilizada por gremistas, brancos ou não, contra colorados, brancos ou não, sem qualquer conotação étnico-racial ou sentido discriminatório.
Já a segunda versão, que serve como complemento e reforço da primeira, parte do início do século XXI, quando, no ano de 2001, surge a Geral do Grêmio, a primeira barra brava do Brasil. Por mais que o termo tenha origem entre os gremistas ainda no século XX, sendo muito proferido desde a década de 1990, a cronologia histórica mostra que o seu uso só passou a ser popularizado nas arquibancadas a partir dos anos 2000, com os cânticos criados pela nova torcida tricolor.
A Geral do Grêmio surgiu com o propósito de formar um conjunto de torcedores que não fosse organizado e uniformizado em torno de uma identidade própria da torcida, em detrimento do clube, e que não cobrasse mensalidades. A brilhante ideia partiu de gremistas que, visando exaltar as cores do Tricolor acima de tudo nas arquibancadas do saudoso estádio Olímpico Monumental, “abrasileiraram” as populares hinchadas latino-americanas, especialmente uruguaias e argentinas, adaptando suas inspirações às culturas gauchescas, ao estilo castelhano de torcer que tanto abrilhanta a Copa Libertadores, grande obsessão gremista. O não uso de uniformes padrões de torcidas organizadas e a falta de controle restrito de participantes-membros, juntamente com a massiva utilização de faixas, bandeiras, trapos, instrumentos e cânticos que expressam a paixão pelo clube, sua história e cultura, são até hoje as marcas registradas da Geral e de qualquer outra barra brava da América Latina.
Contudo, após a criação da Geral em 2001, torcedores de outros clubes do país passaram a também ter um setor destinado a uma barra brava em seu estádio. A festa que a hinchada gremista promovia nas arquibancadas do Olímpico, fascinando o Brasil inteiro com a emblemática avalanche tricolor, fez com que outras torcidas brasileiras seguissem os passos tricolores ao adaptar esse estilo castelhano de torcer. E a primeira a fazer isso, copiando diretamente a Geral, foi justamente a torcida colorada.
Apenas três anos após a fundação da barra gremista, com o fechamento do setor da “Coreia” no estádio Beira-Rio, a torcida do Inter criou os movimentos “Popular do Inter” e “Guarda Colorada” — os quais posteriormente se fundiram, transformando-se na famosa “Guarda Popular do Inter”. Tais núcleos adotaram o mesmo estilo de torcer das hinchadas latino-americanas, o qual a Geral havia trazido ao Brasil poucos anos antes, nas arquibancadas do estádio colorado. Inspiradas pela nova torcida gremista e motivadas pela inveja que tinham deste fascinante espetáculo tricolor, a Popular e a Guarda do Inter adotaram as faixas, as bandeiras, os trapos, os instrumentos e os cânticos praticamente idênticos aos da Geral, somente com a diferenciação das cores, dos dizeres e dos símbolos adaptados à cultura de seu clube. Em suma, o que a torcida do Grêmio “abrasileirou” em 2001 foi, em 2004, copiado pelos colorados com a mesma proposta e estilo. E certamente os vermelhos só não incorporaram a avalanche tricolor para o plágio não ficar ainda mais evidente.
Fato é que os torcedores colorados tiveram décadas para fundar a primeira barra brava no Brasil e se tornarem os pioneiros no país a fazerem isso, porém optaram por replicar a ideia promovida pela Geral, consolidando-se como os primeiros a seguir os passos da iniciativa gremista, com uma proximidade um tanto curiosa e nada convencional. Dessa forma, ao invés de buscarem uma originalidade para suprir a ausência do setor mais popular do Beira-Rio, extinto pelo próprio clube, optaram por copiar, ou melhor, “macaquear” a proposta adaptada pelo rival. E foi assim que se o termo “macaco” — originado décadas antes do período mais usual — se popularizou entre os tricolores.
É claro que a expressão também veio incluída no “combo” latino-americano que as hinchadas argentinas e uruguaias utilizam para provocar os rivais (vezes em intuito racista e xenofóbico, vezes não), a partir da adaptação gremista à festa e cultura de arquibancada, mas sua utilização carrega uma história por detrás dos acontecimentos. “Macaco”, no sentido em que é empregado, é um termo que costuma ser usado “no contexto de fazer macaquice: trejeito, gesto cômico ou imitação mal feita” (SOARES, 2021, p. 137), o que vai de acordo com a definição de “inveja colorada” formulada por Eduardo Bueno ao caracterizar o Internacional como “um simulacro, um avatar, uma cópia malfeita” de seu maior e principal rival (GRÊM10x0: 100 anos de Grenal, G7 Cinema, 2010).
Ou seja, macaco é conhecido por ser um animal que, além de subir em árvores e trepar em galhos, imita, arremeda gesticulações alheias. Poderia ser papagaio, mas esta ave apenas reproduz falas, não trejeitos próprios. E a torcida do Inter imitou, além dos cânticos, as faixas, as bandeiras, os trapos, os bumbos, quase todo o estilo castelhano de torcer que a Geral exibia nas arquibancadas do Olímpico, por uma imensa vontade de fazer o que os rivais fazem e ser como eles são.
Há uma canção da Geral do Grêmio denominada de “Gremistas do Mundial” que identifica e explica o verdadeiro significado e uso do termo “macaco” pela torcida tricolor. A letra diz o seguinte:
Somos gremistas, sempre apoiando
Macaco puto segue sempre imitando
Somos gremistas do Mundial
Somos gremistas e cantamos com a Geral
Portanto, não há absolutamente nenhuma conotação racial no contexto e na forma em que a palavra é empregada. O uso de animais da natureza — sejam eles galinhas, urubus, gambás, porcos ou macacos — para provocar torcedores rivais faz parte da cultura do futebol raiz e, mais especificamente no caso aqui analisado, da cultura de arquibancada gremista e, simultaneamente, castelhana que a modernidade e o etnocentrismo futebolístico europeu tanto insistem em destruir.
Um grupo de torcedores negros gremistas — o que tem sido muito comum no Imortal, clube que vem se popularizando a cada década — pode muito bem chamar um grupo de torcedores brancos colorados — o que também tem sido muito comum no Internacional, clube que vem se elitizando a cada década — de macacada, sem perder o real sentido da provocação que em nada se relaciona com características físicas e genéticas. Para se afirmar que o uso do termo tem origens e/ou conotações racistas na torcida do Grêmio, deve-se considerar que (1) ser colorado é uma identidade étnico-racial, quando na verdade é apenas uma nomenclatura que identifica torcedores do Internacional/RS e, igualmente, do Vila Nova/GO; (2) que só há indivíduos não brancos ou propriamente negros compondo a torcida colorada, o que evidentemente não é um fato social observável; ou (3) que brancos também são vítimas do racismo estrutural e institucional brasileiro, aceitando assim a quimera de “racismo reverso” tão proclamada por sujeitos que respaldam o mito da democracia racial no Brasil. Há de se ter uma explicação lógica e coerente que justifique o porquê da expressão, neste caso específico, ser arbitrariamente considerada racista, a fim de definir uma instituição e todos os seus adeptos como essencialmente racistas.
Em contrapartida, há ações da própria torcida colorada que justificam cada vez mais a utilização do termo pelos gremistas. De uns anos para cá, as próprias “vítimas” das provocações copiaram (como de costume) casos semelhantes de torcedores de outros clubes, aceitando e absorvendo a popular expressão e seus símbolos em sua cultura e identidade, ressignificando-os. Exemplos notórios são os dos adeptos de Palmeiras e Flamengo, os quais, após tantos anos sendo chamados de “porcos”, no caso dos alviverdes, e “urubus”, no caso dos rubro-negros, pelos rivais, adotaram os animais como seus mascotes oficiais, em substituição aos tradicionais periquito e marinheiro Popeye, respectivamente.
Os colorados, portanto, decidiram seguir os passos dos palmeirenses e flamenguistas ao fazer o idêntico movimento, adotando a expressão “macaco” e sua identidade nas arquibancadas do Beira-Rio. A partir de então, a própria torcida do Internacional passou a se assumir e se identificar como macacada, utilizando fantasias de primatas, exibindo faixas com os dizeres “Planeta dos Macacos” e entoando gritos contínuos de “ah, eu sou macaco!”. Já o clube, por sua vez, substituiu por alguns anos o seu tradicional mascote, o saci-pererê, pela figura de um macaquinho, o qual foi oficializado institucionalmente como símbolo de projetos sociais da instituição e denominado pela alcunha de “Escurinho”, em homenagem a um atacante negro que atuou na equipe colorada durante a década de 1970⁴. E talvez não haja nada mais racista do que representar uma pessoa negra, em dita “homenagem”, com a figura de um primata como símbolo de sua representatividade.
Talvez os próprios torcedores do Inter, bem como o próprio clube institucionalmente, vinculem diretamente o termo “macaco” e sua imagem representativa aos negros, negando, inclusive, a existência de primatas com outras tonalidades além da cor preta. É provável que as acusações levianas de racismo contra os tricolores dialoguem mais com as percepções dos próprios colorados do que com as raízes agregadoras gremistas, enquanto acobertam casos explícitos de racismo envolvendo a instituição Sport Club Internacional.
Enfim, a expressão “macaco” só pode ser considerada como racista quando empregada socialmente em um contexto em que seja direcionada, de forma explicitamente pejorativa, a um indivíduo negro ou a um grupo de indivíduos negros. É um modo de discriminação e de injúria racial cometido contra a população negra, em específico, e não branca, em contexto geral. Sendo assim, o termo, quando utilizado pela torcida do Grêmio, é direcionado a toda torcida colorada de maneira coletiva, independentemente da etnia e descendência de seus integrantes. A raça não tem referência ou relevância no momento em que os gremistas se referem aos colorados como “macacada” ou “macaco imundo”, como eles indevidamente afirmam.
Entretanto, para evitar maiores polêmicas e, por ser mal compreendido e descontextualizado, não prejudicar mais o Grêmio nas competições em que disputa, a própria torcida gremista tomou consciência e se dispôs a voluntariamente abolir as expressões de seus cânticos, substituindo-as por “vermelhos”, “amargos” ou “morangos”, em relação à cor do clube rival. Por mais que o conjunto de colorados será sempre, conforme nossa cultura de arquibancada, uma “macacada reunida”, como um trapo da própria Popular do Inter expressa, talvez seja necessário se adaptar aos novos tempos e modificar alguns velhos costumes, alterando as provocações às exigências do lamentavelmente já consolidado futebol moderno.
Uma pena que, na lógica institucionalizada do “dois pesos, duas medidas” praticada pelo judiciário desportivo e promovida nas ondas especulatórias da IVI e da mídia do centro do país, a problematização e a conscientização só sirvam e só sejam destinadas a um único lado da grenalização. Para o outro polo, cânticos como “eu vou matar um puto tricolor” ainda aparentam ser naturalizados pela imprensa esportiva e pelos tribunais do esporte, tanto nacionais quanto regionais. Mas questionar esse sistema ilógico aparenta não agradar as narrativas e, ao mesmo tempo, incomodar o tão poderoso establishment vermelho.
A FALSA DICOTOMIA ENTRE O “CLUBE DO POVO” E O “CLUBE DA ELITE”
Além de racista, a torcida colorada também inventou que o Grêmio é um clube elitista fundado exclusivamente por alemães e que o Inter, em contrapartida, é um clube popular fundado por irmãos negros ou não brancos, o que justificaria a rejeição dos fundadores colorados pelo Tricolor em 1909. Mas tudo isso não passa de um mito que vem sendo desconstruído de décadas para cá.
No prefácio da segunda edição da obra Somos azuis, pretos e brancos (2016), Marcos Rolim aponta que o autor Léo Gerchmann, ao desmontar o mito da segregação racial atribuído ao Grêmio, mostrou que “era muito difícil para os negros jogarem nos clubes brasileiros por razões, sobretudo, socioeconômicas. Havia sim um processo de exclusão dos negros, mas ele nunca foi proposto pelo Grêmio, mas pela sociedade brasileira, profundamente hierárquica e preconceituosa” (p. 9). Na mesma produção bibliográfica, o próprio Gerchmann informa que, sobre a fundação da agremiação porto-alegrense em 1903, “não eram apenas alemães os nossos pioneiros. O clube criado só por alemães era o Fussball [primeiro rival gremista, fundado também em 1903], ligado ao alto comércio, que continuou existindo por algumas décadas e jamais se fundiu ao Grêmio, como dizem”, e destaca que “não há registro de que o Grêmio, clube fundado pelos integrantes do baixo e do médio comércio porto-alegrense, com sobrenomes de diversas origens, tenha […] rejeitado qualquer etnia, religião ou cor de pele. Nem mesmo de um suposto documento de empréstimo do Fortim da Baixada em que isso teria sido exigido” (p. 18). Sua última frase faz referência a uma lenda urbana nunca comprovada de que a família Mostardeiro e, em particular, a senhora Laura Mostardeiro, doadora do terreno do antigo Estádio da Baixada e organizadora das primeiras festas “mistas” (entre negros e brancos) de Porto Alegre, realizadas na Chácara dos Mostardeiros por volta do ano 1900, teria exigido a recusa aos negros pelo Grêmio, como divida pela área concedida no bairro Moinhos de Vento, em cláusula jamais localizada no estatuto do clube.
É importante frisar que “tanto Grêmio como Internacional foram fundados por grupos de comerciantes da cidade, dentre eles muitos descendentes de imigrantes” (SOARES, 2021, p. 141), e sendo “todos eles brancos, em média por volta de vinte anos. Predominavam comerciantes, comerciários, estudantes e funcionários públicos” (GERCHMANN, 2016, p. 23). Verificando as atas de fundação do Imortal datadas da década de 1900, observa-se sobrenomes como Silva e Ribeiro entre seus associados, o que não condiz com a alegação de predominância exclusiva alemã nas origens do clube. Haviam sim alemães como descendentes e imigrantes de outras nacionalidades, tanto no Grêmio como no Inter, mas nada que sustente a ideia de exclusividade. A única diferença é que o Tricolor possuía muito mais alemães em relação ao seu rival e residia em área com maior presença e influência germânica — próximo ao Banco e Hospital Alemão — , enquanto o Colorado abarcava uma pluralidade de nacionalidades superior entre seus associados; o que, aliás, é uma das principais explicações para a adoção do nome Internacional.
Contudo, é claro que, tratando-se do início do século XX — período de fundação de ambos os clubes — , em pouco mais de uma década da abolição da escravatura no Brasil, haveria reflexos explícitos e diretos da escravidão, fomentando, em todos os clubes, principalmente no sul do país, um racismo coletivo em um esporte que, naquela época, era elitista de modo geral. Infelizmente convivemos com o racismo estrutural até os dias atuais no futebol brasileiro e mundial, imagine então numa época em que não havia o mesmo debate e conscientização da atualidade. Porém, segundo o historiador Sérgio da Costa Franco, a partir da profissionalização do esporte no Brasil e de uma grande dificuldade financeira que possuía, estando em posição inferior à estrutura hegemônica do Grêmio, o Inter recorreu à adesão massiva de jogadores negros pelo custo de mercado da época; quando, assim, criou a estratégia de marketing de se declarar como o clube “do povo” e “dos negros”, visando se popularizar, aumentar sua torcida e, consequentemente, elevar suas receitas, enquanto o rival seria tachado como o clube “da elite” e “dos alemães”. Uma ideia que deu muito certo, fazendo o Internacional, de menor expressão no cenário gaúcho até a década de 1940, passar a ser reconhecido regionalmente e crescer consideravelmente.
Fato é que, atualmente, além da história dos dois clubes, contextos sociais desmistificam essas noções elitistas na origem e, principalmente, na essência gremista. Desde a década de 1980, por exemplo, a torcida do Imortal tem crescido exponencialmente, tornando-se a maior do sul do Brasil e variando entre a quinta e a sexta posição no cenário nacional, o que demonstra quem é o verdadeiro clube do povo do Rio Grande do Sul. Além disso, a estratificação social entre torcedores de Grêmio e Inter tem sido invertida desde os primórdios dos dois clubes, resultando no novo perfil de adeptos da dupla Grenal. O Tricolor, que teve seu princípio no Moinhos de Vento — bairro localizado na zona central de Porto Alegre e que se tornou nobre graças à expansão comercial na região, que fora proporcionada pela presença do Grêmio — , se transferiu, na década de 1950, para o bairro classe média da Azenha — também localizado na zona central da cidade —, e, posteriormente, na década de 2010, se mudou para o bairro periférico do Humaitá — localizado na zona norte da capital gaúcha. Tais movimentos fizeram o clube se popularizar no decorrer dos anos e, com isso, angariar a maioria dos torcedores gaúchos, principalmente negros e entre as classes D e E. Já o Colorado, por sua vez, deixou suas raízes no Menino Deus — bairro classe média localizado na região centro-sul de Porto Alegre — , transferindo-se para o bairro nobre do Praia de Belas — localizado na zona central da cidade e que vem se elitizando com as obras e investimentos próximos ao estádio Beira-Rio, inaugurado sobre um aterro no final da década de 1960. Tal mudança faz com que o Internacional venha se elitizando no decorrer dos anos, angariando mais torcedores brancos e se posicionando como a segunda maior torcida do estado e da região sul do país.
Portanto, é falsa a suposição do Grêmio, enquanto clube de raiz cisplatina, ser de origem e essência elitista e totalmente germânica, bem como é inverídico o mito por trás do slogan “clube do povo” tão difundido pelos colorados, ainda mais na dicotomia com o estigma de “clube da elite” atribuído ao Tricolor. Na grenalização, bem como em qualquer grande rivalidade futebolística do cenário mundial, muitos amantes fanáticos se utilizam do subterfúgio de manchar e desacreditar a imagem e a história do adversário, a fim de valorizar e estabelecer supremacia da imagem e da história de seu próprio clube. É assim quando inventam boatos sobre as origens do rival; é assim quando se aproveitam de acontecimentos vergonhosos para distorcer os fatos e, dessa forma, emplacar narrativas que sustentem “cornetas” estúpidas e descompromissadas com as dignas e fundamentais lutas de movimentos sociais.
O “CASO ARANHA” E A ESPETACULARIZAÇÃO DA “PUNIÇÃO EXEMPLAR”
Diferentemente dos cânticos de “macaco” e “macacada” proferidos desde o início dos anos 2000 pela Geral do Grêmio contra a abrangente torcida colorada — não possuindo conotação em sentido racializante, como já fora demonstrado — , chamar, gesticular ou fazer coro de macaco a um indivíduo ou a um grupos de indivíduos negros ou não brancos, de forma individual ou coletiva, é caracterizado como um ato de injúria racial, por tentar inferiorizar a condição do ser humano a de um primata, em função de suas características físicas, seus traços genéticos e/ou sua originalidade e descendência. Foi assim, por exemplo, no que ficou popularmente conhecido como “Caso Aranha”, fatidicamente ocorrido na Arena do Grêmio.
Na noite do dia 28 de agosto de 2014, por volta dos 40 minutos do segundo tempo da partida entre Grêmio e Santos/SP realizada em Porto Alegre — válida como jogo de ida das oitavas de final da Copa do Brasil daquele ano — , um pequeno grupo de torcedores (de um público total de mais de 30 mil espectadores) posicionados no setor Arquibancada Norte da Arena do Grêmio, destinado às torcidas organizadas, proferiu xingamentos de cunho racista contra o goleiro Aranha, da equipe paulista, que denunciou os insultos que ouviu por detrás de uma das goleiras ao árbitro do jogo — o qual paralisou a disputa em campo por alguns minutos, em acordo com a regulamentação vigente da competição.
Esse é o resumo do caso. Não pretendo aqui adentrar em seus desdobramentos jurídicos e midiáticos posteriores, nem abordar detalhes do ocorrido ou das quatro pessoas envolvidas que foram devidamente identificadas pelo clube mandante da partida, pela empresa que gere o estádio e pelas autoridades responsáveis, com auxílio de imagens de emissoras de televisão que transmitiram o jogo. Fato é que, sim, foi um ato de racismo praticado por um pequeno grupo torcedores do Grêmio que ofenderam, menosprezaram e discriminaram um atleta negro da equipe adversária. Isso é indiscutível. Contudo, me proponho a demonstrar como esse que é mais um dos inúmeros e infelizes casos de racismo praticados no futebol brasileiro e mundial não configura a torcida gremista, de modo geral, como racista, muito menos o Grêmio como um clube institucional e culturalmente racista.
Defendo essa posição primeiramente porque, na época, o próprio Grêmio, juntamente com o Bahia/BA, foi um dos primeiros clubes brasileiros a promover ações de combate ao racismo e de conscientização aos seus torcedores, a partir da campanha “Somos azuis, pretos e brancos”, lançada em 2013. Em entrevista após a partida, a própria vítima, Aranha, atestou isso, ao declarar que: “a outra vez que viemos aqui jogar a Copa do Brasil [Grêmio x Santos, também pelas oitavas de final, em 2013] tinha campanha contra o racismo”⁵. E em segundo lugar porque, após o acontecimento, o próprio Grêmio cumpriu com a única parte que lhe era de responsabilidade, identificando os responsáveis pelo cometimento do crime e informando seus dados às autoridades competentes, a fim de colaborar integralmente com as investigações e as devidas punições aos envolvidos.
Os poucos racistas que vestiam a camisa do Tricolor, se autodeclarando torcedores do clube, e que hostilizaram o jogador santista naquele dia não representam os mais de 30 mil espectadores que estavam na Arena na data da partida, muito menos os mais de 10 milhões de gremistas que residem no mundo inteiro. Da mesma forma, a instituição Grêmio, que nunca incentivou ou estimulou atos racistas e que já vinha fiscalizando e coibindo essa prática por parte de sua torcida, não tem qualquer responsabilidade por ações individuais de quem frequenta, por direito previsto no Estatuto do Torcedor, seus espaços internos, apesar da arbitrária e inédita até os dias de hoje “punição exemplar” aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) em 2014, multando e eliminando o clube com a “perda de três pontos” de uma competição integralmente realizada sob o sistema de mata-mata; isto é, sem acúmulo de pontuação e critérios que prevejam especificamente a aplicação de tal medida no regulamento do torneio nacional.
Como bem disse o Dr. Fábio André Koff, então presidente gremista na época, após a indevida condenação e, consequentemente, eliminação do clube por racismo: “se essa decisão [do STJD] acabar com a injúria racial no Brasil, o Grêmio fica feliz”. Entretanto, infelizmente, não foi o que vimos em quase dez anos após o episódio espetacularizado pela mídia e pelo judiciário esportivo. Casos isolados de discriminação envolvendo torcidas e clubes de futebol — parecidos ou piores do que esta eventualidade em 2014, que se tornou notória — já vinham e ainda vêm ocorrendo frequentemente no esporte, tanto no Brasil quanto no planeta inteiro.
Segundo levantamento apontado no relatório de 2020 do Observatório da Discriminação Racial no Futebol⁶ — projeto que tem como objetivo monitorar e divulgar casos de racismo no futebol brasileiro, combatendo a discriminação racial dentro do esporte nacional —, em 2014, ano em que Aranha foi hostilizado na Arena e que o Observatório foi criado, foram registrados 20 casos de injúria racial no futebol brasileiro. Seis anos mais tarde, em 2019, houve um aumento de 235%, chegando a haver registros de mais de 50 episódios no esporte nacional; recorde até então. Atualmente, com exceção do período da pandemia de coronavírus que atingiu o mundo inteiro, impossibilitando o acesso das torcidas às arenas esportivas entre 2020 e metade de 2021, os índices vêm aumentando consideravelmente no país e, invariavelmente, envolvendo diversos clubes, não apenas o Grêmio. Porém, jamais vimos a repetição da mesma punição aplicada em 2014, a qual deveria, na teoria, servir como “exemplo” de combate ao racismo pelo STJD e pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF).
Enfim, fatos dessa natureza ocorrem em diversos clubes, em diversos esportes, em diversas ligas, em diversas regiões e em diversas torcidas do Brasil e do mundo, não se restringindo exclusivamente a uma instituição ou a um grupo específico. Os casos recentes envolvendo o atleta brasileiro Vinícius Júnior, na Espanha, e até mesmo os famosos exemplos da torcida da Lazio, na Itália, evidenciam essa lastimável realidade que o planeta enfrenta. Porém, é importante frisar que “nenhum clube de futebol no Brasil pode ser adjetivado como racista ou como antirracista. Dada a capacidade que nossos grandes clubes têm de possuírem torcedores com as mais diferentes perspectivas políticas e de mundo, um clube de futebol sempre estará atravessado pelos dilemas que constituem nossa cultura” (BANDEIRA, 2021, p. 410).
Já houveram casos de racismo cometidos por atletas, dirigentes, torcedores e funcionários de diferentes instituições futebolísticas no Brasil e no mundo. Já ocorreram casos de racismo envolvendo clubes tradicionais do futebol brasileiro, como Flamengo, Corinthians, São Paulo, Palmeiras, Cruzeiro, Fluminense, Santos e Botafogo, mas nenhum ganhou fama nacional de “time racista e elitista” ou de “maioria de torcedores racistas” como o Grêmio, clube que é constantemente visado e perseguido midiática e judicialmente por sua origem e tradição sulista, tendo como base um caso esporádico que ganhou muita notoriedade na época em que ocorreu. Aliás, já aconteceram, inclusive, casos de racismo envolvendo diretamente o dito “clube do povo e dos negros”, S. C. Internacional de Porto Alegre.
Para um clube autodeclarado “popular” e supostamente “aberto a todos, independentemente de raça, credo e sexualidade”, o Inter veio a ter um jogador negro em seu quadro de atletas apenas em 1928, com Dirceu Alves, três anos após o Grêmio, com Adão Lima, se tornar o pioneiro a incluir a população negra nos campos porto-alegrenses. Contudo, diversos casos de racismo marcam a história do “clube do povo”, da mesma forma como também atingiram e inevitavelmente ainda atingem a imagem de diversos outros clubes do esporte mundial, manchando suas reputações.
No dia 06 de abril de 1963, na coluna “Roteiro de um boêmio”, do jornal Última Hora, o cantor e compositor negro Lupicínio Rodrigues — autor do terceiro e atual hino oficial do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense — publicou um artigo intitulado “Porque sou gremista”, onde relata as razões de seu amor pelo Imortal Tricolor. Neste texto, o artista justifica sua torcida pelo Grêmio ao contar a história de que “Henrique Poppe Leão, um dos fundadores do Internacional, quando assumiu a Presidência da Liga de Foot-Ball Porto-Alegrense, em 1911, foi contrário à filiação do F. B. C. Rio-Grandense, clube predominantemente composto por negros” (SOARES, 2021, p. 129–130). O Rio-Grandense foi um clube fundado em 1909, na cidade de Rio Grande/RS, por dissidentes do quadro diretivo do Sport Club Rio Grande. Dentre seus fundadores estava Francisco Rodrigues, pai de Lupicínio, que relata em seu texto que “no dia em que o Rio-Grandense pediu inscrição na Liga não foi aceito porque justamente o Internacional, que havia sido criado pelo ‘Zé Povo’, votou contra. Isso magoou profundamente os mulatinhos, que resolveram torcer contra o Internacional e, o Grêmio, sendo seu maior rival, foi o escolhido para tal. Fundou-se [em 1912], por isso, uma nova Liga, que mais tarde foi chamada de Canela Preta, e quando esses moços casaram, procuraram desviar os seus filhos do clube que hoje é chamado o ‘Clube do Povo’, apesar de não ter sido ele o primeiro a modificar seus estatutos para aceitar pessoas de cor” (Última Hora, 06 de abril de 1963). Portanto, “o Grêmio aceitou o Rio-Grandense e foi voto vencido. O Inter e outros clubes da época não o aceitaram”, na ocasião em que Henrique Poppe, fundador do Colorado, “presidia a liga de futebol da cidade em 1911” (GERCHMANN, 2016, p. 99).
Com a crise dentro e fora de campo até meados dos anos 1930, o Inter passou a recorrer a atletas oriundos da Liga da Canela Preta, a fim de superar a supremacia tricolor do período, formando um quadro financeiramente mais barato. Assim foi criado pelos colorados o marketing de “clube do povo e dos negros” que deu certo a partir da década de 1940, com a grande virada vermelha possibilitada pelo chamado “Rolo Compressor”, time formado por maioria de jogadores negros. Entretanto, casos de racismo⁷, semelhantes ou piores do que o que vitimou o goleiro Aranha na Arena em 2014, seguiram ocorrendo em torno da instituição colorada.
Em 1935, por exemplo, após perder o Grenal Farroupilha por 2 a 0 no Fortim da Baixada, o Conselho do Internacional decidiu afastar o centroavante negro Tupan Ernâni dos Santos, culpabilizando-o diretamente pela derrota no clássico. Já em 1974, após partida contra o Esportivo de Bento Gonçalves/RS, o então vice-presidente colorado, Gilberto Medeiros, proferiu xingamentos ao vivo em rádio do Rio Grande do Sul contra o árbitro negro do confronto, Luiz Louruz, chamando-o de “crioulo sem-vergonha”, “negro safado” e “macaco”.
Além destes casos pouco lembrados e conhecidos pelo público, talvez o mais notório envolva o ex-futebolista Jair Gonçalves Prates, também conhecido como “Príncipe Jajá”, meia-atacante que defendeu a camisa colorada entre 1974 e 1981. Criado nas categorias de base do Internacional e membro do time que levou o coirmão ao tricampeonato Brasileiro nos anos 1970, Jajá afirmou diversas vezes ter sido vítima de racismo enquanto atuava pelo clube vermelho de Porto Alegre. Em entrevista concedida à Revista Placar em 1980, quando estava prestes a deixar o Colorado, Jair relatou o racismo que sofreu no Rio Grande do Sul e, particularmente, no “Clube do Povo”. Segundo o atleta, durante os seis primeiros anos em que atuou pelo Inter, não conseguiu agradar os dirigentes e a torcida do clube, apesar do bom futebol que desempenhava dentro de campo. “Racistas não me deixam ser ídolo [do Inter]”, afirmou o então jogador em frase que destaca a manchete da entrevista.
“Sabe por que há tanta resistência à minha permanência no Inter? Por causa do racismo. É por causa desse maldito sentimento”.
- Jair à Revista Placar, em 1980.
Já em uma entrevista do ex-jogador concedida em 2017 ao ‘Cardápio do Zé’ — coluna do jornalista e repórter José Alberto Andrade, na Gaúcha ZH⁸ —, Jair expressou sua mágoa com o Internacional por ter sido vítima de racismo dentro do clube e, por conta disso, ter sua saída projetada em 1981. De acordo com relato do próprio atleta: “fazia mais que os outros e não tinha valorização. Além disso, ganhava a fama de não gostar de treinar ou jogar apenas quando queria. Só porque eu era negro”.
Por fim, e para além desses fatídicos exemplos, é possível citar também casos de racismo mais recentes envolvendo o Internacional, como o praticado por torcedores colorados contra o lateral-esquerdo do próprio clube, Fabrício dos Santos Silva⁹, em partida realizada no Beira-Rio contra o Ypiranga de Erechim/RS, válida pela 6ª rodada do Campeonato Gaúcho de 2015; o praticado pelo zagueiro argentino Víctor Cuesta, defensor do Colorado na época, contra o atacante Elton¹º, do Ceará, em partida realizada em Fortaleza/CE, válida pela 13ª rodada do Campeonato Brasileiro Série B de 2017; e o praticado por torcedores colorados contra o atacante Felipe Pires¹¹, do Juventude, em duelo realizado no Beira-Rio, válido pela 24ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2022. Tais ocorrências, contudo, não caracterizam o Sport Club Internacional como um clube institucionalmente racista ou sua torcida como um grupo culturalmente racista, mas evidenciam a realidade estrutural que o país vivencia, demonstrando que casos de injúria racial infelizmente ocorrem isoladamente em diversas entidades do futebol brasileiro e mundial. Ocorre no Inter, no Grêmio e em qualquer instituição que possa ter torcedores, dirigentes e/ou funcionários que sejam racistas ou que pratiquem injúria racial em algum momento, mas que não representam o todo, o conjunto da torcida e do clube.
Portanto, esse movimento de estigmatizar uma instituição futebolística popular e sua legião de torcedores como racistas por conta de uma injusta eliminação de uma competição, em decorrência de um caso isolado em que o clube era isento de responsabilidade, não passa de uma maneira sórdida de sustentar uma “corneta” que instigue ainda mais a rivalidade Grenal, por intermédio de narrativas que prejudicam a imagem de uma entidade constituída por um passado marcado enormemente pela presença constante da negritude.
O NEGRO NA HISTÓRIA “RACISTA” DO GRÊMIO
Quando a diretoria gremista, por decisão unânime, resolveu, em março de 1952, tornar pública uma nota assinada pelo então presidente Saturnino Venzelotti, onde supostamente quebrava uma “tradição” tricolor de não aceitar atletas negros em seu quadro futebolístico — a partir da contratação do jogador Tesourinha, ex-Inter, que extinguiria essa “norma” — , tal movimento apenas aboliu o estigma segregacionista indevidamente atribuído ao clube pelos rivais vermelhos. Apesar de uma meia dúzia de conselheiros terem se oposto ao ato na época, alegando que a direção do clube havia agido “arbitrariamente” — passando por cima do Conselho Deliberativo — , a medida que fez com que Osmar Fortes Barcellos se tornasse o primeiro atleta negro a ter destaque com a camisa do Grêmio na era profissional relacionava-se com o rompimento de uma imagem distorcida que não possuía nenhum embasamento oficial, por escrito. Além de já ter sido comprovado que o primeiro jogador factualmente negro a vestir o manto gremista foi Adão Lima, em 1925, nunca houve “quaisquer registros de preconceito em geral e racismo em particular nos estatutos e documentos do clube” (GERCHMANN, 2016, p. 120); nenhum artigo, nenhuma cláusula. Tanto que, apesar de Tesourinha ter tido mais projeção e ser muito mais ídolo no Internacional, suas filhas são gremistas de coração.
Portanto, é importante frisar que, além de ter sido agremiada no Imortal, a comunidade negra tem um papel de extrema relevância na história do clube, contribuindo com sua trajetória de glórias e conquistas memoráveis. Sem contar Adão Lima, Antunes e outros tantos atletas não brancos que marcaram presença na historiografia tricolor antes de Tesourinha, o Grêmio é um clube popular marcado pela pele e pelo sangue negro em suas tradições, o qual valoriza seu passado e seus ídolos sem medo ou vergonha. E para além do quadro de jogadores, a negritude faz parte do gremismo tanto dentro quanto fora de campo.
Ícone entre as décadas de 1920 e 1950, o negro Bombardão se tornou um ilustre torcedor-símbolo do Imortal. Marcando sempre presença em partidas ocorridas no Fortim da Baixada, primeira casa tricolor, o folclórico gremista era conhecido pelo seu longo e grave grito de “Grêeemiooo!”, entoado nas ruas de Porto Alegre. Tal simbolismo fez com que até os dias atuais o célebre torcedor seja lembrado e reverenciado oficialmente pelo clube, inclusive com a exposição de sua imagem no Memorial Hermínio Bittencourt, localizado na Arena do Grêmio, em parte especialmente destinada à sua memória.
Outro símbolo da paixão gremista foi o cantor e compositor negro Lupicínio Rodrigues, que, no ano de 1953, foi o responsável por compor o hino do cinquentenário do clube, eternizando as frases “até a pé nos iremos”, “com o Grêmio onde o Grêmio estiver” (apropriada de uma faixa exposta no Estádio da Baixada em 1946 pelo ilustre torcedor Salim Nigri, a qual dizia “com o Grêmio onde estiver o Grêmio” — ao lado da figura de um mosqueteiro, que mais tarde se tornaria o mascote oficial do clube, representando a união entre a torcida e o time) e “Imortal Tricolor”. O emblemático hino posteriormente foi oficializado como sendo o da própria instituição, permanecendo até os dias atuais.
Contudo, talvez o maior simbolismo de expressão da negritude gremista esteja no próprio patrimônio tricolor.
Em 1970, o então vice-presidente gremista, Sérgio Moreira, teve uma brilhante ideia: homenagear um atleta do quadro tricolor num dos maiores símbolos da instituição. Este atleta era o lateral-esquerdo negro Everaldo Marques da Silva, que, após ter sido campeão da Copa do Mundo de Futebol pela Seleção Brasileira no mesmo ano, enquanto titular da equipe, teve sua memória perpetuada na história do Grêmio por ter sido o primeiro jogador a ser campeão mundial pelo Brasil enquanto atuava por um clube gaúcho. Como homenagem, a agremiação porto-alegrense adotou uma estrela dourada na parte superior esquerda de sua bandeira oficial, em referência ao lateral campeão do mundo, e, um ano mais tarde, construiu o emblemático Pórtico dos Campeões, posicionado no Largo dos Campeões, no pátio do Estádio Olímpico.
Para além destes ícones, destaco também a representação do atacante José Tarciso de Souza, conhecido como “Flecha Negra”, que, de 1973 a 1986, se tornou o atleta que mais atuou com a camisa do Grêmio na história do clube até os dias atuais, com mais de 700 partidas disputadas; do centroavante Alcindo Martha de Freitas, o “Bugre Xucro” que, após ter sido rejeitado pelo Internacional por pedir ajuda de custos para comparecer aos treinamentos, tornou-se o maior artilheiro da história gremista com mais de 260 gols marcados e o segundo maior artilheiro tricolor na história dos clássicos Grenais (13) — atrás apenas do “El Maestro” Luiz Carvalho (17); dos laterais-esquerdos Roger Machado e Bruno Cortez, ambos campeões da Copa Libertadores da América pelo clube, enquanto titulares dos elencos vitoriosos (1995 e 2017, respectivamente); e do cantor e compositor Gilberto Gil, torcedor ilustre e sócio do Grêmio FBPA.
Aliás, para manter o costume de valorização dos grandes ídolos, no momento em que escrevo este ensaio (agosto de 2023) o Grêmio prepara o lançamento de um concurso, criado dentro do projeto “Clube de Todos”, para desenvolver um novo mascote¹² em homenagem ao ex-atacante Tarciso, falecido em 2018. A ideia é honrar a memória de um dos maiores jogadores da história tricolor — campeão Brasileiro (1981), da América e Mundial (1983) pelo clube — com a criação do personagem “Flecha Negra”, em referência ao eterno craque, o qual dividirá espaço com o tradicional mosqueteiro. Será, caso efetivada, uma homenagem a um atleta negro mais digna e respeitosa do que dar o nome de um ídolo à figura de um macaco cômico.
Enfim, é fundamental salientar que o Grêmio foi o primeiro clube porto-alegrense a ter um jogador negro em seu quadro de atletas (Adão); teve um negro como seu principal torcedor-símbolo por décadas (Bombardão); tem um hino oficial composto por um negro que torcia por suas cores (Lupicínio); e tem uma estrela dourada estampada em sua bandeira oficial, em homenagem a um homem negro (Everaldo). Além disso, o jogador que mais vestiu a camisa tricolor (Tarciso) era negro; o que mais fez gols na história do clube (Alcindo) tinha descendência indígena; e boa parte de seus grandes ídolos e ícones são pertencentes à comunidade e à identidade negra. Então como um clube com essa vasta história miscigenada poderia ser institucional e culturalmente racista?
Aos que, de forma leviana, acusam o Grêmio e os gremistas de serem racistas com base em invenções mentirosas da trajetória da instituição, em descontextualizações históricas e em episódios isolados que podem ocorrer em qualquer clube do Brasil e do mundo, não sendo capazes de justificar a caracterização de uma entidade como preconceituosa e segregadora, resta o apelo a um passado mítico na tentativa de estigmatizar e difamar a imagem e o passado de uma instituição e sua nação de apaixonados. Mas prefiro a palavra daqueles que, na posição de ídolos máximos que vivenciaram internamente a realidade da agremiação, desmistificam esse movimento infame de conectar o Grêmio e sua torcida ao repugnante crime de racismo.
Segundo o Bugre Xucro Alcindo, maior goleador da história tricolor:
“Sempre achei estranho quando diziam que o Grêmio era segregacionista. Fui acolhido de forma maravilhosa no clube. Nunca senti qualquer preconceito. Essas acusações falsas são o oposto da história linda que vivi no clube. […] Ouvi xingamentos, mas partindo dos adversários, incluindo os torcedores do Inter, claro. Para tentar me desestabilizar, chamavam-me de negro, macaco, veado, corno”. (GERCHMANN, 2016)
Já de acordo com Tarciso Flecha Negra, o atleta que por mais tempo jogou pelo clube:
“Nunca sofri preconceito no Grêmio. Fui muito bem acolhido e vivi grandes alegrias. Sou muito grato ao torcedor gremista e ao povo do Rio Grande do Sul”. (GERCHMANN, 2016)
Portanto, para quem ainda acredita que a discriminação e o preconceito racial fazem parte de um suposto “conceito de vida” que temos e cultivamos por aqui, ou mesmo que somos parte de um “time de racista”, a história social desta grandiosa agremiação futebolística porto-alegrense confirma que no sul há um clube genuinamente tricolor e de todas as cores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta revisão histórica e ressignificação simbólica, me propus a desmistificar um mito instituído, no passado, pelo Sport Club Internacional e seus representantes, e promovido até os dias atuais pelos colorados e torcedores de outros clubes rivais do futebol brasileiro, além da imprensa regional e nacional: o de que o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense é um clube institucional e culturalmente racista, bem como elitista e fundado exclusivamente por alemães. Com base em análises documentais, fontes jornalísticas e referenciais bibliográficos, dediquei-me a elucidar os fatos e propagar a verdade, refutando a lenda de que o Imortal não aceitava negros em seu quadro de atletas, mostrando não haver conotação racial no uso dos termos “macaco” e “macacada”, evidenciando que o Tricolor não foi fundado apenas por alemães da elite gaúcha, contextualizando o “Caso Aranha” enquanto um mero episódio isolado e apresentando o papel e a posição do negro na história gremista.
De todo modo, este ensaio não se propõe a negar o racismo estrutural e institucional que infelizmente perdura por séculos no Brasil, muito menos relativizar casos de injúria racial que, por óbvio, ocorreram no Tricolor gaúcho, envolvendo esta instituição futebolística assim como qualquer outra. Vale destacar que a entidade Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense foi fundada no ano de 1903, isto é, apenas 15 anos após a abolição da escravatura no país (em 1888). Portanto, não é de se esperar que uma instituição esportiva surgida no sul do Brasil por comerciantes imigrantes contemporâneos do período da escravidão fosse muito progressista à sua época. Como o futebol tem uma origem elitista no Brasil, vindo a se popularizar somente após passadas algumas décadas, é compreensível que os negros, por conta de questões principalmente financeiras, tivessem tido enormes dificuldades de se inserirem em equipes esportivas em qualquer região do país. Ao mesmo tempo, levando em consideração a estrutura racista da qual é formada a sociedade brasileira, também se compreende a ocorrência cada vez maior de casos de discriminação racial em diversas arenas esportivas e em diferentes instituições futebolísticas nacionais.
Contudo, não existe clube institucional e culturalmente racista ou mesmo antirracista no Brasil. Talvez tenhamos uma conscientização maior em instituições como o Vasco da Gama/RJ, fundado por negros e operários, e o Corinthians/SP, de origem popular, mas nada muito além disso. O que há de fato são criminosos racistas que torcem para determinados clubes e que, ao cometerem atos discriminatórios em espaços destinados à prática esportiva, prejudicam a imagem das entidades ao envolvê-las em casos dessa natureza. Grêmio e Internacional são, atualmente, dois clubes populares e tradicionais do estado do Rio Grande do Sul, mas nenhum deles é institucionalmente racista, bem como gremistas e colorados igualmente não são culturalmente racistas por natureza. O racismo está na individualidade de quem o pratica, devendo ser punido no mesmo âmbito de quem o comete, não generalizado ao coletivo e “grenalizado” à uma totalidade de torcedores, como se estes fizessem parte de uma comunidade ideológica unânime ou de um grupo étnico-racial específico.
Os aficionados do Inter e dos demais clubes brasileiros que utilizam o crime de racismo para atacar e/ou “cornetar” o Grêmio e sua torcida estão, na verdade, banalizando um tema muito sério e se apropriando dele para proveito pessoal. Quem faz isso presta um desserviço à luta antirracista, limitando a discriminação racial a uma visão micro ao invés de percebê-la enquanto um problema macro instituído e estruturado no Brasil e, consequentemente, em todo o futebol brasileiro. O racismo, portanto, não se “grenaliza”; se combate e se repudia, em qualquer lugar, independente de quem o faça, pela razão que o faça e onde o faça. É um tema complexo que, ultrapassando as quatro linhas de um campo de futebol, não se limita a uma rivalidade regionalista ou mesmo a uma análise superficial de cunho estritamente clubista.
Dito isso, e para finalizar, parafraseio o jornalista gremista Léo Gerchmann que diz que “o Grêmio é um legítimo clube vocacionado para o que viria a ser o esporte mais popular do mundo” (2016, p. 63). É o clube de Antunes, de Bombardão, de Adão Lima, de Lupicínio Rodrigues, de Juarez (o “Leão do Olímpico”), de Ortunho, de Paulo Lumumba, de Paulo César Caju, de Paulo Isidoro, de Alcindo, de Tarciso, de Roger Machado, de Bruno Cortez, de Denner, de Anderson, de Dida, de Zé Roberto, de Anderson Pico, de Bruno Alves, de Everaldo e outros tantos negros de nossa magnífica história. É o clube de mulheres como Elis Regina e Elza Soares; de Gilberto Gil e da pé quente Coligay, a primeira torcida LGBTQIA+ do Brasil.
Enfim, é o clube de uma nação fiel e apaixonada; de azuis, pretos e brancos. É definitiva e verdadeiramente o clube de todos e todas!
*Ensaio acadêmico produzido para a disciplina de História Social do Futebol, do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), durante o primeiro semestre letivo de 2023.
REFERÊNCIAS
¹ NEVES, Márcio. Conheça algumas curiosidades sobre o Tricolor nestes mais de 100 anos. Portal Oficial do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense — Curiosidades. Disponível em: https://web.archive.org/web/20110721031657/http://www.gremio.net/page/view.aspx?i=id_767&language=0. Acesso em: 31 jul. 2023.
² MARQUES, Diogo. Náutico lança uniforme preto inédito, reconhece passado racista e propõe reflexão no clube. Globo Esporte, 2020. Disponível em: https://ge.globo.com/pe/futebol/times/nautico/noticia/nautico-lanca-uniforme-preto-inedito-reconhece-passado-racista-e-propoe-reflexao-no-clube.ghtml. Acesso em: 31 jul. 2023.
³ Cortes — Mais que 8 minutos [OFICIAL]. GAÚCHOS OU PAULISTAS SÃO R4CI$T4S? — EDUARDO BUENO | Cortes Mais que 8 Minutos. YouTube, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HiG0r9x9CRQ. Acesso em: 31 jul. 2023.
⁴ Inter usa macaco para homenagear jogador e diretor do Grêmio critica: “nada pode ser mais racista”. Jornal Correio, 2014. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/brasil/inter-usa-macaco-para-homenagear-jogador-e-diretor-do-gremio-critica-nada-pode-ser-mais-racista-0914. Acesso em: 5 ago. 2023.
⁵ Goleiro Aranha é alvo de ofensas racistas na Arena do Grêmio. Terra, 2014. Disponível em: https://www.terra.com.br/esportes/santos/goleiro-aranha-e-alvo-de-ofensas-racistas-na-arena-do-gremio,a35122e4c2f18410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html. Acesso em: 7 ago. 2023.
⁶ Casos de injúria racial no futebol aumentaram 235% entre 2014 e 2019. Observatório da Discriminação Racial no Futebol, 2020. Disponível em: https://observatorioracialfutebol.com.br/casos-de-injuria-racial-no-futebol-aumentaram-235-entre-2014-e-2019/. Acesso em: 7 ago. 2023.
⁷ DIENSTMANN, Cláudio. Cláudio Dienstmann: futebol brasileiro já nasceu racista. Diário Gaúcho, 2015. Disponível em: http://amp.diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/noticia/2015/04/claudio-dienstmann-futebol-brasileiro-ja-nasceu-racista-4735680.html. Acesso em: 13 ago. 2023.
⁸ ANDRADE, José Alberto. Cardápio do Zé: Príncipe Jajá reafirma: “fui vítima de racismo na minha carreira”. Gaúcha ZH, 2017. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/esportes/noticia/2017/07/cardapio-do-ze-principe-jaja-reafirma-fui-vitima-de-racismo-na-minha-carreira-cj5wr0bhk2138xbj0bu2o5t2m.html. Acesso em: 13 ago. 2023.
⁹ WERNEK, Jeremias. Inter pode ser denunciado por ato de racismo contra Fabrício no Beira-Rio. UOL, 2015. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/campeonatos/gaucho/ultimas-noticias/2015/04/03/inter-pode-ser-denunciado-por-ato-de-racismo-contra-fabricio-no-beira-rio.htm. Acesso em: 13 ago. 2023.
¹º FILHO, Juscelino. Elton fará B.O. para investigar suposto caso de racismo em jogo contra o Inter. Globo Esporte, 2017. Disponível em: https://ge.globo.com/ce/futebol/noticia/elton-fara-boletim-de-ocorrencia-contra-victor-cuesta-apos-suposto-caso-de-racismo.ghtml. Acesso em: 13 ago. 2023.
¹¹ WERNEK, Jeremias. Jogador do Juventude acusa torcedor do Inter de racismo no Beira-Rio. UOL, 2022. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2022/08/29/jogador-do-juventude-acusa-torcedor-do-inter-de-racismo-no-beira-rio.htm. Acesso em: 13 ago. 2023.
¹² Novo mascote do Grêmio irá homenagear Tarciso Flecha Negra. Correio do Povo, 2023. Disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/esportes/gr%C3%AAmio/novo-mascote-do-gr%C3%AAmio-ir%C3%A1-homenagear-tarciso-flecha-negra-1.1072112. Acesso em: 15 ago. 2023.
GRÊM10X0: 100 anos de Grenal. Direção: Beto Souza. Brasil. G7 Cinema, 2010. Vídeo.
Grêmiopédia, a enciclopédia do Grêmio: https://www.gremiopedia.com/wiki/P%C3%A1gina_principal, 2023.
BIBLIOGRAFIA
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GERCHMANN, Léo. Somos Azuis, Pretos e Brancos. 2ª Ed. Porto Alegre-RS: Editora AGE, 2016.
SOARES, Ricardo Santos. O negro no futebol de Porto Alegre: um olhar sobre duas fontes gremistas. In: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos; FRAGA, Gérson Wasen; STÉDILE, Miguel Enrique; QUINSANI, Rafael Hansen. (Orgs.). À sombra das chuteiras meridionais: uma História Social do futebol (e outras coisas…). Porto Alegre-RS: Editora Fi, 2021. p. 127–144.