SAINDO DO ARMÁRIO

G. da Natividade Mac.
7 min readMar 19, 2021

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Por Guilherme Natividade

No ano de 2007, o biólogo britânico Richard Dawkins — ativista ateu e autor do livro The God Delusion (Deus, um Delírio) —promoveu, a partir de sua fundação, a Richard Dawkins Foundation for Reason and Science (Fundação Richard Dawkins para a Razão e a Ciência), e com a coordenação da British Humanist Association (Associação Humanista Britânica), a chamada ‘Out Campaign’. Essa campanha foi realizada na Inglaterra em 2008 com o objetivo de fazer com que mais ateus “saíssem do armário”, ou seja, assumissem seu ateísmo publicamente, enfrentando os preconceitos e a discriminação social que a comunidade sofre constantemente. A expressão “sair do armário” foi fortemente utilizada no projeto, sendo inspirada no ditado popularmente usado pela comunidade LGBTQIA+, outra minoria socialmente oprimida.

Dawkins idealizou a campanha com o propósito de incentivar os ateus a expressarem sua descrença e seus ideais humanistas e secularistas. O biólogo também os encorajou a defender a separação total entre igreja e Estado e a dar visibilidade à causa ateísta através de ações e propagandas representativas. Com este incentivo, o projeto ateísta ganhou destaque no Reino Unido com o surgimento da ‘Atheist Bus Campaign’, campanha que promoveu propagandas de cunho ateísta e secularista nos ônibus, em protesto e resposta às mensagens religiosas presentes no transporte público. Essa iniciativa britânica inspirou ações semelhantes por parte de associações e ligas ateístas em diversos países. No Brasil, a ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos) expôs publicidades ateístas nos ônibus de três capitais do país no ano de 2011: Porto Alegre-RS, Salvador-BA e São Paulo-SP.

Essas campanhas e ações realizadas por grupos ateístas entre o final da década de 2000 e início da década de 2010 foram muito responsáveis por impulsionar o movimento ateísta, a luta em prol da laicidade do Estado, e por fazer com que mais ateus se assumissem perante a sociedade, resistindo à intolerância promovida pelos religiosos contra os descrentes. Foram iniciativas importantes que estimularam a visibilidade dos ateus em meio às sociedades ocidentais dominadas pelo cristianismo no mundo inteiro.

Visibilidade e representatividade são fatores essenciais para minorias sociais e/ou numéricas, e a comunidade LGBTQIA+, por exemplo, compreende muito bem a dificuldade que seus membros têm para se assumirem publicamente. Em sociedades heteronormativas, onde somente a heterossexualidade é vista e socialmente aceita como uma orientação sexual “normal” e “natural” (por conta de concepções conservadoras e retrógradas, sustentadas pelas religiões e pelo fundamentalismo religioso), um indivíduo assumir uma sexualidade ou identidade de gênero diferente da “habitual” é um desafio extremamente complicado. E justamente pelo fato de serem uma minoria social e numérica, indivíduos deste grupo acabam sofrendo discriminação e preconceito por parte de seus familiares e/ou da sociedade em geral, o que os fazem temer essa revelação pública, assim como a própria aceitação pessoal, reprimindo e escondendo suas características particulares do convívio social.

A mesma experiência ocorre com nós, os ateus. Por também sermos uma minoria social e numérica (muito mais até do que a comunidade LGBTQIA+), que vive em meio a sociedades dominadas pelas religiões, reprimir ou esconder nossas convicções e concepções céticas e descrentes são formas temerárias de precaver a discriminação fundamentalista. O medo de não ser aceito, de ser hostilizado e de ser excluído do convívio social e/ou familiar faz com que muitos ateus encubram seus pensamentos ateístas e seculares por trás de uma falsa aceitação/concordância dos dogmas e preceitos teístas e religiosos.

Esse preconceito contra ateus (a chamada ‘ateofobia’) se institucionaliza e se prolifera em diversos setores da sociedade, principalmente no âmbito religioso (em igrejas e templos) que dissemina cada vez mais esses ataques e as constantes tentativas de silenciamento. Isolar os ateus e conspirar contra eles e contra a negação à fé religiosa são as formas das religiões sustentarem o domínio imperial de seus dogmas e conceitos, sem questionamentos ou oposição, enquanto ferem a laicidade e mantém a sociedade e as instituições enclausuradas sob seu obscurantismo fundamentalista e reacionário.

Um exemplo da institucionalização da ateofobia é a opinião pública que a sociedade religiosa tem dos ateus e a imagem distorcida que constroem sobre nós. Para apontar a discriminação contra ateus, citando apenas o Brasil, um dos países mais religiosos do planeta, algumas pesquisas demonstram claramente essa visão preconceituosa e intolerante que a sociedade brasileira cristã tem em relação aos descrentes.

Encomendada pela CNT/Sensus em 2007, uma pesquisa de intenção de voto para a presidência da República colocou alguns grupos minoritários em um possível cenário eleitoral. Ao serem perguntados sobre a possibilidade de votarem nos seguintes candidatos, 84% dos entrevistados disseram que votariam em um candidato negro; 57% disseram que votariam em uma candidata mulher; 32% assumiram votar em um homossexual; mas apenas 13% responderam que votariam em um candidato ateu¹. Nesse cenário, 87% dos brasileiros jamais votariam em um ateu para a presidência da República.

Em outra pesquisa, realizada em 2008 pela Fundação Perseu Abramo, agora avaliando a rejeição e a aprovação da comunidade ateia pela sociedade brasileira, 42% dos entrevistados admitiram sentir aversão aos descrentes, sendo que, desses, 17% declararam sentir ódio ou repulsa e 25% assumiram ter antipatia².

Já em pesquisa realizada em 2012 pelo Instituto Datafolha, 86% dos entrevistados afirmaram que acreditar em deus torna as pessoas melhores, enquanto apenas 13% (porcentagem semelhante à da pesquisa de 2007) disseram que a crença em uma divindade não necessariamente torna uma pessoa melhor³.

Esses e outros tantos índices de rejeição aos ateus e ao ateísmo como ideologia são publicamente expressados em diversos discursos e em diversas ações que promovem intolerância contra os descrentes. Esses números apontados nas pesquisas citadas foram explicitados, por exemplo, em julho de 2010, quando o apresentador do programa ‘Brasil Urgente’, da Rede Bandeirantes, José Luiz Datena, discriminou os ateus ao vivo em cadeia nacional, responsabilizando a descrença em deus pela “degeneração da sociedade” e associando o ateísmo à criminalidade (posteriormente Datena e a Band foram processados pela ATEA e condenados pelas ofensas promovidas). Esses números também foram tendenciosa e oportunamente utilizados pela campanha de Jair Bolsonaro à presidência da República, em 2018, para acusar, de maneira leviana e mentirosa, os candidatos Haddad e Manuela de serem ateus em uma propaganda eleitoral exibida às vésperas do segundo turno, com o propósito de reduzir a popularidade e minimizar os votos de seus adversários. Assim como, da mesma forma, esses números, que retratam o pensamento da maioria da sociedade brasileira, ajudaram a eleger Bolsonaro, um sujeito que ataca constantemente a laicidade do Estado, que, em 2017, disse que, no Brasil, “não existe essa historinha de Estado laico, o Estado é cristão”, e que tinha como slogan de campanha a frase “Deus acima de todos”, como presidente de um Estado secular.

Mas para a sorte e alívio dos ateus brasileiros, a ATEA, assim como algumas outras associações ateístas existentes no país, está presente e atuante para monitorar e combater casos de discriminação e intolerância contra os ateus, assim como para denunciar atos que violem a laicidade das instituições e do setor público. O que a comunidade ateia sofre e tem de suportar em uma sociedade predominantemente cristã em pleno século XXI e em um Estado constitucionalmente laico é inadmissível e não pode ser tolerado.

Eu mesmo, apesar de ter sido bem aceito e compreendido por meus familiares (com exceção de certas discordâncias por determinadas partes), já sofri muito preconceito social após ter “saído do armário” e me assumido ateu. Todo ateu percebe aquele olhar de susto, de negação ou de reprovação quando se revela como tal, e no meu caso nunca foi diferente. Já fui isolado, oprimido e excluído do convívio social, em trabalhos, cursos e na escola, só pelo fato de ser ateu. Tive relacionamentos íntimos e sociais interrompidos e/ou impossibilitados de acontecer por causa da intolerância e do ódio cristão. Por vezes, já tive de ocultar e reprimir meu ateísmo, meus pensamentos e minhas posições para evitar ser discriminado ou rejeitado. Essa sociedade corrompida, dominada e doutrinada pelo cristianismo costuma tratar os ateus como se fossem pessoas horríveis, criminosas, imorais e não confiáveis. Isso eu não aprovo e não me conformo.

Mas não podemos abaixar a cabeça, nem aceitar calados as diversas formas de opressão. Os ateus devem: se assumir publicamente; dar visibilidade ao ateísmo através da propaganda; buscar representatividade e ocupar espaços dentro da sociedade religiosa; resistir e enfrentar a discriminação e a intolerância dos religiosos; combater o domínio religioso e descontruí-lo; defender a laicidade do Estado e o pensamento científico; e militar os ideais ateístas, secularistas e humanistas. O bom e verdadeiro ateu é aquele que “sai do armário”, que representa a causa ateísta e que assume o ateísmo como parte de sua vida.

REFERÊNCIAS

¹ AZEVEDO, Reinaldo. VEJA 5 — Só 13% dos brasileiros votariam num ateu para presidente. Veja, 2007. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/veja-5-so-13-dos-brasileiros-votariam-num-ateu-para-presidente/>. Acesso em: 18 de mar. de 2021.

² BERNARDO, André. Preconceito, agressividade e desconfiança: como é ser ateu no Brasil. BBC Brasil, 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-37640191#:~:text=%22Religi%C3%A3o%20n%C3%A3o%20define%20car%C3%A1ter%22,repulsa%20e%2025%25%2C%20antipatia.>. Acesso em: 18 de mar. de 2021.

³ Brasileiros ligam criminalidade à maldade e acreditam que fé em Deus torna as pessoas melhores. Datafolha/Folha de São Paulo, 2012. Disponível em:<https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2012/12/1211082-brasileiros-ligam-a-criminalidade-a-maldade-e-acreditam-que-fe-em-deus-torna-as-pessoas-melhores.shtml>. Acesso em: 18 de mar. de 2021.

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G. da Natividade Mac.

★ Estudante de Ciências Sociais na UFRGS, escritor, torcedor do Grêmio FBPA, social-democrata e ateu militante. • Porto Alegre/RS