G. da Natividade Mac.
10 min readDec 17, 2023

SOBRE A CONVERSÃO DE HIRSI ALI

Por Guilherme Natividade

Em Para não dizer que não falei dos terrores, dentre uma crítica em oposição aberta e direta ao islamismo cultural e sua consolidação hegemônica no mundo oriental, apresentei o perfil da ativista política e feminista Ayaan Hirsi Ali, uma mulher negra somaliana que escapou do terrorismo muçulmano, renunciou ao islã e se tornou ateia militante pelos direitos humanos de mulheres árabes vítimas do sistema da Sharia em teocracias fundamentalistas no Oriente Médio. Com o falecimento do jornalista inglês Christopher Hitchens, em 2011, Hirsi Ali passou a ser considerada a “quarta cavaleira do neoateísmo”, juntamente com Richard Dawkins, Sam Harris e Daniel Dennett, e foi reconhecida mundialmente como um símbolo do ativismo ateísta do século XXI.

Pois bem, como disse, “foi”, até o mês de novembro de 2023.

Nessa data, a fundadora da AHA Foundation e autora dos livros Infiel (2006) e Herege (2015) se converteu oficialmente ao cristianismo e, de certo modo, traiu o movimento ateísta, em prol de uma suposta “guerra civilizacional” proposta pela agora “ex-ateia”. No texto Por que agora sou cristã¹ (tradução livre), publicado no website político britânico UnHerd — onde Ayaan é colunista —, a mais nova traidora da comunidade de livre-pensamento relata sua breve trajetória no ativismo ateu — desde quando rompeu com o islamismo — , até sua repentina e inesperada transição para a fé cristã, o que surpreendeu boa parte do movimento ateísta global.

Logo no início de seu “testemunho”, Hirsi Ali comenta que, em 2002, teve seu primeiro contato com a palestra Por que não sou cristão, proferida pelo filósofo Bertrand Russell em 1927. Um ano antes, em 2001, quando já estava a mais de uma década livre do obscurantismo muçulmano, a ativista havia condenado os atentados terroristas contra as Torres Gêmeas, em Nova Iorque, que fora cometido por radicais fundamentalistas do ISIS em nome da fé islâmica e dos ideais do Jihad. Desse modo, os textos de Russell ajudaram Ayaan a se libertar por completo do medo instituído a ela desde sua infância pelo islamismo, possibilitando sua evolução social no ateísmo libertador e transformador.

Uma lástima que, 21 anos após seu primeiro contato com o livre-pensamento, Hirsi Ali subverteu a frase título da palestra de Russell para, irracionalmente, renunciar oficialmente à sua própria liberdade.

É extremamente compreensível que, nos 20 anos em que Ayaan atuou com papel de destaque no feminismo ateísta negro, representando ativamente essa interseccionalidade, seu foco tenha sido primordialmente o combate ao islamismo cultural e a defesa dos direitos de mulheres árabes no Oriente Médio, apesar de estar vivendo há décadas no mundo ocidental dominado pelo sistema hegemônico cristão. Levando em consideração os grandes percalços vivenciados por ela devido aos horrores culturais islâmicos, entendo que o ateísmo, para Hirsi Ali, partiu mais de um estado de revolta e resistência contra a dominação islâmica nas teocracias orientais. Contudo, seu ativismo foi meramente limitado a uma luta muito mais anti-islâmica, propriamente dita, do que focada na militância ateísta e humanista-secular, de forma mais abrangente.

De acordo com relatos da ativista em seu texto, a Irmandade Muçulmana se instaurou em sua comunidade em Nairobi, no Quênia, em 1985, quando ainda era adolescente. Nesse tempo, Hirsi Ali teve de se submeter a “rituais de abluções, orações e jejuns tediosos e inúteis” (tradução livre), além de ter sofrido mutilação genital na infância e suportar a imposição de um casamento forçado pelo próprio pai. Ayaan passou, portanto, a ser uma serva dos “mandamentos de Allah e do profeta Maomé”, sendo constantemente oprimida pelas doutrinas ultraconservadoras e fundamentalistas do Alcorão e pelas imposições ditatoriais de lunáticos proselitistas.

Ainda segundo seu relato, a Irmandade Muçulmana transformou Hirsi Ali e seus colegas adolescentes em “crentes passivos e ativistas quase da noite para o dia” (tradução livre). Desse modo, enquanto militantes doutrinados pelo islã, a tirania muçulmana moldou o pensamento dos jovens, aprisionando suas mentes inocentes e lhes fazendo odiar todos os incrédulos, os adeptos de outras mitologias religiosas e, principalmente, a comunidade judaica — a qual fora amaldiçoada e acusada de traição pelos conspiracionistas árabes.

A libertação de Ayaan Hirsi Ali só veio a se fazer possível quando a agora “ex-ateia” se refugiou no Ocidente, obtendo asilo político nos Países Baixos em 1992. Sua fuga dos regimes teocráticos islâmicos permitiu o contato com obras como a de Russell e com célebres intelectuais como Dawkins e Hitchens, o que possibilitou a concretização de sua liberdade completa ao, na plenitude de sua consciência racional, rejeitar a moral e a ética religiosa e aceitar a inexistência divina. O ateísmo, portanto, livrou a mente de Hirsi Ali da doutrinação sócio-cultural que nela instituiu o medo, a culpa e a constante repressão moralista. A partir de então, a ativista dedicou sua vida ao estilo ocidental para defender uma ampla reforma do islã e a neutralização de seu avanço, que é de fato uma grande ameaça ao bem-estar social da humanidade; porém, acabou sendo gradualmente doutrinada pelo cristianismo cultural, que combate o islamismo a partir de um viés ideológico oposto e, ao mesmo tempo, semelhante.

Mas por que Ayaan revogou sua liberdade, convertendo-se ao cristianismo e absorvendo novamente as raízes de sua opressão enquanto mulher negra, ao regressar a um estágio de involução social?

De acordo com a própria, essa resposta é, basicamente, “global”. Hirsi Ali afirma que a civilização ocidental está sendo ameaçada por três diferentes forças que supostamente se relacionam mutuamente: “[1] o ressurgimento do autoritarismo e do expansionismo das grandes potências sob as formas do Partido Comunista Chinês e da Rússia de Vladimir Putin; [2] a ascensão do islamismo global, que ameaça mobilizar uma vasta população contra o Ocidente; e [3] a propagação viral da ideologia woke, que está a corroer a fibra moral da próxima geração” (tradução livre).

Em uma análise geral, podemos considerar que a primeira e a terceira “força” se resumem a teorias conspiratórias provenientes de movimentos de extrema-direita fundamentalistas ocidentais, enquanto a segunda adota um percentual de coerência com a realidade global, apesar de ainda se sustentar relativamente em teorias da conspiração de cunho protofascista.

Primeiramente, não é possível afirmar que o “autoritarismo” e o “expansionismo” de grandes potências como Rússia e China “ressurgiram”, visto que suas posições imperialistas permanecem em constante expansão há décadas, conjuntamente com o império cristão estadunidense e a União Européia. E por mais que seja historicamente perceptível o totalitarismo e as violações das liberdades democráticas cometidas pela Rússia governada por Putin e pelo socialismo de mercado chinês controlado pelo PCC, é surreal apontar qualquer aspecto factualmente comunista no governo russo centralizado nas mãos de oligarquias, ultranacionalistas e radicais adeptos à Quarta Teoria Política.

Em segundo lugar, sim, a ascensão do islamismo cultural que domina e corrompe o Oriente há décadas é de fato uma ameaça extremamente preocupante, porém esse expansionismo global não se difere muito do que o cristianismo institucionalizado pela Igreja Católica praticou e ainda vem promovendo na história da humanidade. Basicamente, cristianismo e islamismo são duas mitologias hegemônicas, genocidas e perversas que se assemelham e se relacionam, o que não justifica a troca de Hirsi Ali de seis por meia dúzia. Tudo o que a Irmandade Muçulmana e o Estado Islâmico praticam e promovem na contemporaneidade é herença das atrocidades que o catolicismo inquisidor cometeu na Idade Média, incluindo métodos de tortura assemelhados.

Por fim, a propagação de uma “ideologia woke” que supostamente está corroendo a “fibra moral da próxima geração” é parte essencial do discurso neoconservador que de fato corrói a atual civilização ocidental. O termo “cultura woke”, popular entre radicais de extrema-direita e negacionistas científicos, remete a uma crítica neoconservadora ao progressismo social e às pautas identitárias de grupos minoritários social e historicamente oprimidos. Ao ser utilizado no relato pessoal de Hirsi Ali, a posição pró-conservadorismo a aproxima muito mais dos ideais fundamentalistas religiosos e patriarcais que ela tanto diz combater do que de sua trajetória até então ímpar no ativismo ateu e feminista liberal.

Portanto, a tal “guerra civilizacional” que Ayaan Hirsi Ali se propõe a combater se resume à polarização de um planeta dividido por uma guerra santa entre o Ocidente cristão contra o Oriente muçulmano, e vice-versa. Tendo se libertado do islamismo cultural — algo que é admirável — , a ativista rompe não apenas com a fé islâmica e seus dogmas abomináveis, mas também com o estilo de vida árabe e seus costumes de origem. Hirsi Ali, nesse sentido, absorve o modo civilizacional ocidental para si, introjetando-se em meio a esta civilização que lhe deu abrigo, conforto e segurança, quando o medo instituído pelo islã lhe aprisionava a partir de um pânico moral ultrajante.

Por essa perspectiva, compreende-se a razão pela qual Ayaan, durante suas duas décadas de militância ateísta, dedicou-se muito mais a promover críticas ao islã — defendendo sua reforma radical e imediata — e à defesa de amplos direitos às mulheres árabes do Oriente Médio, em relação a um combate central ao sistema religioso, de modo geral, e a uma propagação universal do ateísmo enquanto uma visão de mundo contra-hegemônica. Por mais que a proteção da laicidade tenha sido uma pauta frequente em seu ativismo de viés liberal, suas ações se direcionavam quase que com exclusividade contra as teocracias islâmicas e seus conceitos arcaicos, adotando uma filosofia muito mais ancorada no liberalismo clássico ocidental do que no existencialismo ateu.

Percebe-se, assim, que Hirsi Ali “involuiu” socialmente ao abandonar seu estado de emancipação no livre-pensamento para regressar ao aprisionamento mental da religião, substituindo uma grande ameaça hegemônica por outra de matriz abraâmica semelhante. A luta ateísta deve combater tanto o cristianismo quanto o islamismo cultural, não se aliar a um dos lados da tirania para encarar o outro por intermédio de uma nova concepção de mundo alienante. Considero, portanto, que Ayaan não apenas se converteu, como automaticamente perdeu sua independência e sua capacidade de se pautar pela lógica materialista para se dedicar a uma militância oportuna e um tanto cômoda, a partir de uma perspectiva que é, absolutamente, a face oposta da mesma moeda ideológica.

Agora, o ateísmo é descartado, pois não serve para a “guerra civilizacional” que Hirsi Ali pretende travar contra o mundo árabe, em prol da hegemonia da cultura ocidental. A ativista absorveu tanto o estilo de vida do Ocidente que lhe fora privado desde a adolescência que, ao ser efetivamente doutrinada pelo cristianismo cultural, acabou por absorver igualmente a religião que serve como base moral para essa civilização retrógrada e sua atual geração reacionária. Assim, a nova luta de Ayaan não reside mais no compromisso com o livre-pensamento, na promoção da secularização e nos princípios iluministas e racionalistas, mas na tentativa de substituir uma doutrina dominante por outra e no “desejo de defender o legado da tradição judaico-cristã” (tradução livre).

Considerando as frustrantes experiências de vida de Hirsi Ali, compreendo suas estratégias de luta nesses anos no ativismo ateísta. Contudo, não a percebo, hoje, como alguém que um dia foi ateia de fato, no sentido político e filosófico da identidade social. Ela é e sempre foi uma revoltada anti-islã, tendo descoberto no neoateísmo uma forma de combater o que, no passado, tanto lhe causou dor e sofrimento. Atualmente, Ayaan pode ser definida como uma ativista pró-cultura ocidental, nada mais. Cristã, sim, pois o cristianismo é intrinsecamente parte dessa cultura, mas nada muito além disso. O cristianismo cultural é basicamente a nova ferramenta ideológica que Hirsi Ali se apropria e se aproveita para enfrentar o islamismo, que é parte central da cultura oriental que ela tanto despreza.

Entretanto, é importante frisar que a história do Ocidente não é, por si só, a história integral da humanidade. O cristianismo pôde contribuir sócio-culturalmente com a construção da civilização ocidental, mas a liberdade de consciência e de expressão não são seus frutos exclusivos. Ao contrário do que afirma Hirsi Ali em seu relato, a cultura judaico-cristã jamais fez avançar a ciência e a razão, diminuir a crueldade ou suprimir as superstições, sendo tudo isso fruto do iluminismo e suas derivadas correntes de pensamento. Basta estudar a história humana e observar a realidade social que é possível perceber que o cristianismo nunca ultrapassou a sua fase dogmática, nem se coloca como algo separado da política, ao violar frequentemente o princípio da laicidade. Essa visão só comprova o quanto a ativista foi profundamente doutrinada e corrompida pelo cristianismo cultural durante sua experiência de vida ocidental. E, nesse ponto, Ayaan Hirsi Ali não traiu apenas a comunidade e a causa ateia global — que permanece sólida e coerente com sua trajetória — , mas sua própria condição de liberdade plena conquistada através do alinhamento ideológico ao ateísmo.

A luta anti-islâmica é, de fato, necessária e deve ser fortalecida e impulsionada universalmente; porém esta não se dará por meio de outro instrumento de alienação e dominação assemelhado ao problema a ser combatido. O ateísmo pode e deve unificar esse combate ao sistema religioso nefasto, enfrentando tanto o islamismo, no Oriente, quanto o cristianismo, no Ocidente. E a coerência desse movimento pró-liberdade só se dará através de ferramentas puramente seculares e em consonância com o pensamento iluminista, que de fato fomenta a consolidação de uma nação em pleno desenvolvimento social e humanitário.

O humanismo-secular é a principal arma para se combater o dogmatismo e o fundamentalismo religioso. Defender a civilização e, em especial, a humanidade como um todo é lutar por um Estado democrático e verdadeiramente laico, promover uma cultura secularista entre a sociedade e enfrentar o domínio teísta que usurpa o capital político e econômico no mundo ocidental e oriental. O planeta precisa caminhar para o progresso científico e abandonar o atraso proveniente da religião.

E talvez este seja o significado da vida de um(a) livre-pensador(a) ateísta. O propósito de nossa existência não é determinado por natureza, mas fruto de nossas próprias escolhas, no exercício da liberdade de consciência que outorga responsabilidade exclusiva por nossas próprias ações. Para nós, a realidade não parte de um destino divino, mas de decisões racionais condicionadas pela existência humana, que precede a essência.

Creio que isso responde objetivamente a simples pergunta formulada por Hirsi Ali ao, em última análise, justificar sua conversão repleta de carência, fomentada pelo constante estado de angústia por sua liberdade e fundamentada à nova forma de doutrinação a que foi sistematicamente submetida.

Enquanto isso, tenho convicção que o feminismo ateu-negro seguirá muito bem representado e visibilizado por mulheres negras como Mandisa Thomas, Sikivu Hutchinson e outras tantas ativistas realmente comprometidas com a verdade, a justiça e a liberdade.

REFERÊNCIA

ALI, Ayaan Hirsi. Why I am now a Christian. UnHerd, 2023. Disponível em: https://unherd.com/2023/11/why-i-am-now-a-christian/?fbclid=IwAR1GGBVcW1yhMXLShBS-OlueUhEUJnvTXQ-TZ-QIIGgDT-AQcBjWLu1z0q0. Acesso em: 15 dez. 2023.

G. da Natividade Mac.

★ Estudante de Ciências Sociais na UFRGS, escritor, torcedor do Grêmio FBPA, social-democrata e ateu militante. • Porto Alegre/RS