VISIBILIDADE ATEÍSTA EM VIAS PORTO-ALEGRENSES
Por Guilherme Natividade
Resumo: A partir de ação social promovida em 2011 pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA) na cidade de Porto Alegre/RS, a comunidade ateísta é retratada como um grupo outsider estigmatizado pela sociedade religiosa, o qual almeja maior visibilidade e representatividade para seus membros vítimas de constante discriminação e segregação. Perpassando pelos conceitos de ateofobia e de situações de preconceito e invisibilidade da população ateia no contexto social brasileiro, é feita uma análise da campanha veiculada nas principais ruas e avenidas da capital gaúcha, avaliando seus objetivos iniciais e resultados obtidos. Nesse sentido, é apresentada a dura realidade de ser ateu no Brasil, demonstrando aspectos positivos e negativos da iniciativa brasileira em comparação com sua inspiração britânica.
Durante o mês de julho de 2011, na cidade de Porto Alegre/RS, foi realizada a primeira campanha ateísta do Brasil, que teve como lema a frase “Diga não ao preconceito contra ateus”. A ideia partiu de uma ação social de iniciativa da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA), a qual propôs dar visibilidade à comunidade ateia e combater o preconceito e a discriminação contra cidadãos descrentes e sem religião. Na campanha publicitária, quatro outdoors com mensagens e propagandas ateístas foram expostos em diversas ruas e avenidas da cidade, em diferentes bairros, dando notoriedade ao público ateu e suas visões de mundo. Dentre os anúncios comunicados nos cartazes, constavam as seguintes frases: “Religião não define caráter”, “Se deus existe, tudo é permitido”, “A fé não dá respostas, só impede perguntas” e “Somos todos ateus… com os deuses dos outros”.
A ação ateísta da ATEA, a exemplo de várias outras iniciativas que ocorreram no mundo todo, teve como inspiração a campanha publicitária inglesa Atheist Bus Campaign¹, promovida sob o lema “Provavelmente deus não existe. Pare de se preocupar e aproveite sua vida”. Esta publicidade ateia foi veiculada no transporte coletivo da cidade de Londres, em janeiro de 2009, por iniciativa da jornalista e comediante britânica Ariane Sherine. Devido à notoriedade e ao significativo engajamento, a ação se espalhou rapidamente por todo o Reino Unido, contando com a organização da British Humanist Association (Associação Humanista Britânica) e o apoio financeiro do etnólogo, biólogo evolucionista e ativista ateísta Richard Dawkins, autor do livro The God Delusion (Deus, um Delírio).
A ideia inicial da associação ateísta brasileira foi promover uma campanha semelhante à Atheist Bus Campaign nos ônibus de algumas capitais do Brasil, porém o intuito foi prontamente rejeitado por conta de fatores jurídicos externos. Segundo artigo de Paula Montero e Eduardo Dullo (2014), “foram três as grandes cidades em que a campanha foi recusada a partir de justificativas legais: São Paulo, Salvador e Porto Alegre. Somente em Florianópolis apresentou-se o argumento de que o conteúdo era “ofensivo”” (p. 69). No caso de São Paulo e Salvador, a ação foi barrada pelas empresas de ônibus sob a alegação de que as publicidades violariam a legislação vigente sobre mensagens publicitárias em espaços públicos. Já em Porto Alegre, a Agência de Transporte Público alegou que a campanha infringia decreto municipal que proíbe a veiculação de anúncios de caráter religioso em âmbitos públicos — apesar do ateísmo não ser conceitualmente uma religião, quando pelo contrário.
Com seus objetivos frustrados pelas legislações municipais — ou pela interpretação particular e tendenciosa destas — , a “Bus Campaign brasileira” se transformou em “Outdoor Campaign”, tendo a capital gaúcha como o cenário escolhido e possibilitado para sua realização. Assim, o ateísmo ganhou visibilidade nas vias porto-alegrenses Carlos Gomes, Antônio Carlos Berta, Protásio Alves e Ipiranga.
- Ateofobia: discriminação contra ateus e ateias
De acordo com Luz (2022), ateofobia — ou ateufobia, como o autor prefere denominar, a fim de fornecer maior visibilidade e reconhecimento ao termo — , deriva da palavra “ateu”, que “remete a atheos do grego, ou seja, aquele indivíduo que não crê em deuses, segundo o dicionário Houaiss. Por sua vez, a fobia deriva do grego phóbos e remete a medo, aversão, intolerância, rejeição” (p. 28). Em resumo, trata-se de um modo de discriminação contra indivíduos que não possuem nenhuma fé religiosa e que, simultaneamente, afirmam não acreditar na existência de deus(es) ou que acreditam em sua inexistência.
Nas sociedades hegemonicamente religiosas no mundo todo, a comunidade ateísta é representada como uma minoria numérica e social, estando em posições de desvantagem nas relações de poder e sendo duramente discriminada, segregada, invisibilizada, oprimida e reprimida no contexto histórico-cultural. Em Estados confessionais e teocracias fundamentalistas — como é o caso de países muçulmanos do Oriente Médio, os quais adotam o sistema jurídico da Sharia, contendo leis oficiais baseadas na fé islã — , há, por exemplo, legislações que preveem crime de ateísmo e promovem punições, inclusive com a pena máxima de morte, a quem se assumir publicamente como ateu/ateia, renunciando à crença oficial do regime teocrático. Já na Idade Média, durante a Santa Inquisição do catolicismo, havia tribunais eclesiásticos que, sob ordem máxima da Igreja Católica, julgavam e puniam “crimes” considerados pelos inquisidores como “blasfêmia”, “bruxaria” e “heresia”. Esse sistema jurídico medieval da Igreja Católica Romana, aos moldes do terrorismo islâmico da atualidade, costumava punir com torturas e assassinatos — em muitos casos nas emblemáticas fogueiras santas — aqueles que eram descobertos como ateístas e até mesmo grupos devotos de outras religiões contrárias à doutrina oficial, os quais eram indevidamente acusados de cometer crime de ateísmo e perseguidos por isso — como fora o caso dos povos judaicos neste período histórico.
Percebe-se que, em um mundo dominado e doutrinado pela fé religiosa — em especial pelas doutrinas hegemônicas de raízes abraâmicas como o cristianismo e o islamismo — , se assumir como ateu/ateia perante a família, o Estado e a sociedade é, por si só, um ato de resistência e uma ação propriamente revolucionária. A dominação sócio-política e cultural das mitologias islamo-cristãs oprime e reprime o pensamento livre, crítico e plural, bem como a diversidade social, as liberdades individuais e coletivas das minorias sociais e as características particulares e distintas de diversos setores da sociedade civil. É possível afirmar, com isso, que tanto o islamismo quanto o cristianismo cultural instigam a aversão, o desprezo, o ódio, a ridicularização, a exclusão e a violência contra grupos social e numericamente minoritários e historicamente oprimidos, como é o caso da população ateísta. A ideia, ao constituir e consolidar esse sistema opressor a partir de um plano sócio-cultural de dominação e doutrinação, é perpetuar a hegemonia dos grupos dominantes (teístas/religiosos) sobre os dominados (ateus/ateias), concentrando os segundos em posições subalternas, segregados da vida pública e dos espaços de poder que a elite detentora do capital político e cultural usurpa por meio de estratégias obscuras que atacam, ferem e violam a laicidade estatal.
Os ateístas, no Brasil e em demais países do globo, podem ser considerados como parte de um grupo outsider, enquanto, por outro lado, os teístas e religiosos se caracterizam enquanto parte de um grupo estabelecido. Na percepção de Elias e Scotson (2000), há uma constante universal identificada na figuração entre estabelecidos-outsiders: “o grupo estabelecido atribuía aos seus membros características humanas superiores; excluía todos os membros do outro grupo de contato social não profissional com seus próprios; e o tabu em torno desses contatos era mantido através de meios de controle social como a fofoca elogiosa, no caso dos que o observavam, e a ameaça de fofocas depreciativas contra os suspeitos de transgressão” (p. 20). Sendo assim, a partir dessa relação antagônica ateísta-religiosa, percebe-se o porquê da comunidade ateia ser comumentemente invisibilizada, inferiorizada, excluída e silenciada nas relações públicas, enfrentando dificuldades e preconceitos na escola, no trabalho, na mídia, no parlamento e em outros diversos espaços da sociedade civil, principalmente por parte de núcleos conservadores, tradicionalistas e fundamentalistas.
Essas relações de poder e dominação nas interações interpessoais se deve aos estigmas indevidamente atribuídos à população ateia pelos adeptos e seguidores da fé. Enquanto grupo estigmatizado, segundo a noção de Goffman (1988), os ateus são socialmente vistos e definidos como indivíduos imorais, inconfiáveis, frustrados, depressivos, pessimistas, revoltados com um suposto deus e devotos de um suposto demônio — ou de uma “agenda satânica”. A tática dos grupos religiosos estabelecidos, nesse sentido, é depreciar a imagem e a reputação de seus opositores descrentes e irreligiosos, impondo conceitos pré-estabelecidos e atribuindo percepções incoerentes e infundadas ao todo da comunidade ateísta para com tais mitos invisíveis e imaginários. Portanto, relacionar pessoas sem religião e a ausência de fé em uma divindade — ou a crença em sua inexistência — ao mal, à imoralidade, à desonestidade ou até mesmo a práticas criminosas institui formas de tratamentos desiguais entre ambos os grupos, fomentando e a intolerância e o medo contra os outsiders.
O Estado, por outro lado, ao legitimar discursos de ódio sobre práticas e ações religiosas — estas munidas por uma exacerbada concessão de liberdade de crença e culto —, além de privilegiar uma mitologia específica sobre as demais, ferindo a laicidade constitucional, lida com grupos minoritários — como minorias religiosas, ateus/ateias e agnósticos singulares — com total irresponsabilidade e negligência, contribuindo para a manutenção dessa estrutura que discrimina, agride e mata o diferente, aquele considerado “anormal”, “subversivo” e “nocivo” perante a lei e a ordem estabelecidas. É por intermédio dessa violação ao Estado laico e da falta de uma secularização efetiva que a comunidade ateísta é perseguida, tem seus direitos violados e restringidos e suas liberdades individuais e coletivas desrespeitadas e interferidas. Enquanto não houver uma laicidade factual, em consonância e respeito à Constituição Federal, que separe total e radicalmente a Igreja do Estado, afastando as instituições religiosas da vida pública, que promova a secularização dos órgãos públicos e que consolide a neutralidade da esfera pública em relação às crenças religiosas, instituindo uma cultura laica entre a sociedade, seguiremos à mercê de um regime praticamente confessional, estando mais próximos de uma teocracia fundamentalista cristã do que de uma nação factualmente secular e livre.
Os principais exemplos da discriminação sofrida por ateus e ateias enquanto indivíduos estigmatizados está na representatividade política e na visibilidade midiática do ateísmo. Para além de casos de expulsão do lar pela família, de rejeições amorosas e de recusas a vagas de emprego acometidas por quem se assume publicamente como humanista secular e livre-pensador ateísta — assim como situações extremas de violência ou mesmo tentativas de homicídio — , a exclusão ateia do debate público e nos meios de comunicação é algo que vitimiza ainda mais essa população tão marginalizada. Se formos analisar quantos ateus assumidos ocupam cargos representativos na política institucional brasileira, teríamos um percentual muito inferior a 0,5% (porcentagem abaixo do índice de ateístas no país, que gira em torno de 2% a 3% da população). Por outro lado, caso fossemos avaliar ateus e ateias que, nos espaços políticos, expressam-se publicamente e defendem abertamente um ativismo ateísta e secularista, ou compararmos o número de atores dessa comunidade com representantes e líderes religiosos nos três Poderes da República, a porcentagem seria ainda menor, evidenciando que a representatividade ateísta na realidade social brasileira é praticamente inexistente.
Tanto o cenário de representação quanto de identidade ateia na sociedade brasileira é reflexo de como o Estado e a população em geral lidam com essa comunidade, bem como da falta de promoção desse debate nos espaços públicos. No Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por exemplo, não há, dentre os perfis religiosos (por mais que o ateísmo não seja uma religião, mas se relacione diretamente com o tema), a opção ateu/ateia ou mesmo agnóstico(a), apenas o perfil “sem religião” (o que também pode englobar teístas não praticantes). Nesse sentido, caso o entrevistado não se declare ao recenseador como ateísta, este será adicionado ao perfil de não-religioso juntamente a quem diz acreditar em deus. Essa medida do Instituto, somada ao fato de muitos ateus manterem seu ateísmo escondido, recluso à vida privada por medo da intolerância religiosa da família e/ou da sociedade, faz com que não tenhamos um levantamento preciso do número absoluto e do percentual da população ateísta no Brasil, tornando essa minoria social cada vez menos numerosa e ainda mais invisibilizada.
Não obstante, através da opinião pública, observa-se também uma forte rejeição por parte da população a ateus/ateias no Brasil, uma das nações mais religiosas e crentes em deus no planeta. Segundo pesquisa de intenção de voto encomendada pela CNT/Sensus no ano de 2007², 87% dos brasileiros afirmaram jamais votar em um candidato ateu para a presidência da República, contra apenas 13% que disseram que votariam. Neste mesmo levantamento, especificamente, a rejeição à comunidade ateísta supera a de outras minorias sociais igualmente estigmatizadas, como negros, rejeitados por 16%, mulheres, rejeitadas por 43%, e homossexuais, rejeitados por 68%.
Em outra pesquisa, desta vez realizada em 2008 pela Fundação Perseu Abramo³, agora avaliando a percepção da sociedade brasileira sobre a população ateísta, 42% dos entrevistados admitiram sentir aversão aos descrentes, sendo que, destes, 17% declararam sentir ódio ou repulsa e 25% assumiram ter antipatia. Já em estudo realizado em 2012 pelo Instituto Datafolha⁴, 86% dos entrevistados afirmaram que acreditar em deus torna as pessoas melhores, enquanto apenas 13% (porcentagem semelhante à da pesquisa de 2007) disseram que a crença em uma divindade não necessariamente torna uma pessoa melhor, contrariando o pensamento da maioria estabelecida.
Essa infeliz realidade também é perceptível e refletida na mídia. Ao acompanharmos os meios de comunicação fora do ambiente virtual (rádio, jornais, revistas e televisão), quase nunca ateus e ateias são citados e sequer é mencionado algo sobre ateísmo. Aliás, geralmente, nas raras ocasiões em que a imprensa se refere à comunidade ateia e à ideologia ateísta, o faz com total desprezo, atribuindo os costumeiros estigmas negativos que são demagogicamente impostos aos chamados “hereges” pelo sistema religioso e relacionando o ateu sempre a algo perverso e imoral. Nota-se que as palavras “ateu” e “ateísmo”, bem como qualquer sinônimo de “não acreditar em deus” ou “rejeitar os preceitos divinos e religiosos”, ainda possuem uma carga demasiadamente negativa entre a sociedade religiosa, ganhando um tom pejorativo e devendo ser evitadas ou utilizadas somente de forma depreciativa, em ataques ostensivos contra adversários ou inimigos políticos. Exemplos disso ocorreram em 2010, no programa Brasil Urgente da Rede Bandeirantes, por parte do apresentador José Luiz Datena⁵; em 2013, em telejornal noturno do SBT, por parte da jornalista Rachel Sheherazade⁶; em 2016, no Programa Silvio Santos, também do SBT, por parte da apresentadora Patrícia Abravanel⁷; e em 2018, durante propaganda político-partidária eleitoral do Partido Social Liberal (PSL), por parte do candidato presidenciável Jair Messias Bolsonaro⁸.
Enquanto igrejas católicas e evangélicas recebem inúmeros incentivos e isenções por parte do Estado brasileiro, além de concessões públicas dos meios de comunicação para veiculação de propagandas religiosas nacionalmente, valendo-se de brechas jurídicas e artimanhas fiscais, o ateísmo e a comunidade ateísta estão sempre fadados ao esquecimento e apagamento dos holofotes, sem direito a sequer ⅓ do tempo destinado às exibições propagandistas de viés religioso. De acordo com Luz e Rossetti (2020), “a televisão aberta, como o veículo de massa de maior poder de penetração e impacto junto à população brasileira, evita abordagens sobre o ateísmo” (p. 5), o que intensifica a invisibilidade dos ateus e das ateias nos centros midiáticos e, consequentemente, no debate público. Aparentemente, para o bem de sua própria imagem perante a opinião pública em um país extremamente religioso, as emissoras e demais veículos de comunicação preferem não se associar ao ateísmo e aos ateus, ignorando-os e relegando este grupo outsider à marginalidade social que lhes é destinada pelo ódio estrutural teísta que corrompe os instrumentos seculares.
Tal invisibilidade ateísta também ocorre, inclusive, no campo social progressista, por parte de outros grupos sociais minoritários que, apesar de sofrerem atos discriminatórios semelhantes à intolerância destinada a ateus e ateias — principalmente de setores ultraconservadores, reacionários e fundamentalistas religiosos — , costumam não incluir as pautas da causa ateísta e o combate à intolerância contra os descrentes, bem como a defesa do Estado laico, no debate coletivo de organizações que lutam em prol dos direitos humanos e da igualdade e justiça social. Conforme aponta Edmar Luz, “não se tem notícia de nenhum ato de solidariedade das demais minorias para com os ateus. Militantes LGBTs, negros, feministas e de religiões minoritárias afro silenciam-se completamente em todos os episódios de discriminação dos ateístas, inclusive os ocorridos nos meios de comunicação” (2022, p. 13). E apesar da população ateia costumeiramente, enquanto parte do campo progressista da sociedade civil, se solidarizar com as lutas sociais e reivindicações de minorias aliadas, estas tendem a não retribuir com reciprocidade e a mesma compreensão. Assim como os veículos de comunicação, aparentemente os próprios movimentos sociais, seus membros e suas mobilizações de massa preferem não se vincular com a pauta do ateísmo por desejarem evitar confrontos com suas próprias crenças particulares a partir de um ideal antagônico à fé constituída e dominante e/ou por temerem que ocorra uma assimilação indesejada destes movimentos e suas agendas, ocasionando em serem tachados de “opositores à fé religiosa e à moralidade cristã”, reforçando involuntariamente estigmas que os próprios setores recebem de núcleos conservadores e, consequentemente, sendo ainda mais descredibilizados perante a sociedade religiosa que tais entidades e coletivos tanto tentam conscientizar, incluir em suas bases e modificar. Em outras palavras, na percepção desses setores progressistas, levantar bandeiras ateístas e críticas às religiões não é “estratégico” para seus objetivos de grupo.
Desse modo, percebe-se que a ateofobia está estruturalmente institucionalizada na sociedade teísta por intermédio do sistema sócio-cultural religioso que, hegemonicamente, durante séculos vem percebendo o ateísmo como um espectro que, de acordo com Ricardo Oliveira da Silva (2022), ameaça a ordem social vigente, as estruturas tradicionais da civilização ocidental e os interesses de grupos que detém o poder e o controle político, estabelecendo-se através de um grande plano de dominação por intermédio de uma tática massiva de doutrinação que consolida, perpetua e reproduz este ciclo de opressão religiosa à racionalidade e ao livre-pensamento.
Para além da defesa consistente de um Estado verdadeiramente laico, isto é, completamente neutro em relação às mitologias religiosas — regulamentando o que os artigos 5º e 19 da Constituição Federal de 1988 estabelecem por princípios-bases — , da promoção de ideais humanistas, secularistas, racionalistas, materialistas e contra-apologéticos e do combate incisivo ao fundamentalismo religioso que corrompe a humanidade, atacando a diversidade social, os direitos humanos das minorias e a própria laicidade do poder público — um dos principais pilares da democracia — , uma militância ateísta se faz necessária para fortalecer as causas da comunidade, unir os ateus em torno de um ideal comum, promover a visibilidade e a representatividade ateia e enfrentar a ateofobia que permeia o mundo culturalmente teísta, dentro de um sistema religioso nefasto. Seja por um ativismo político — como o de Edmar Luz, o único agente assumidamente ateu e defensor ferrenho das bandeiras ateístas e secularistas na política institucional brasileira — , por um ativismo jurídico — “a principal forma de ação política da ATEA” (Montero; Dullo, 2014, p. 70) — ou por outras formas de ativismos sociais, militar ateísmo é essencial para que a sociedade brasileira perceba que é natural e de direito legal não acreditar em deus(es), para que os ateus sejam notados, respeitados e reconhecidos enquanto cidadãos munidos de direitos e garantias constitucionais, para que a comunidade ateísta ocupe representação em espaços de poder e debates públicos, e para que esta população não seja vitimada pela intolerância religiosa, pelo preconceito, por estigmas incompatíveis com a realidade e pelas diversas formas de opressão oriundas do islamismo e do cristianismo cultural que ferem liberdades laicistas e apartam os outsiders à posições subalternas, sob condições indignas e desumanas estruturalmente impostas por grupos hegemônicos e estabelecidos.
Quando a Out Campaign — campanha de sensibilização e conscientização da opinião pública promovida pela Richard Dawkins Foundation for Reason and Science (Fundação Richard Dawkins para a Razão e a Ciência) — inspirou a Atheist Bus Campaign, esta tinha a proposta de, para além de dar visibilidade ao ateísmo e aos ateus e combater estigmas contra essa população, fazer com que a comunidade ateia “saísse do armário”, absorvendo a expressão popularmente utilizada pelo movimento LGBTQIA+. Por “sair do armário”, compreende-se o ato do indivíduo poder se assumir livremente como ateu/ateia perante a família, o Estado e a sociedade, enfrentando o medo da discriminação e da intolerância que este provavelmente irá sofrer socialmente dos núcleos religiosos e conservadores da tradição cultural. Dessa forma, a campanha britânica promoveu esta ideia, fazendo com que cada vez mais ateístas se libertassem, se assumissem publicamente e passassem a viver suas vidas sem mais precisar privar suas opiniões, posições, ideais e concepções de um mundo sem deus, pautando-se por valores morais integralmente humanistas-seculares.
Em contrapartida, quando a ação da ATEA foi visibilizada em outdoors nas vias públicas de Porto Alegre em 2011, após a frustrada tentativa de veicular as mensagens de cunho ateísta nos ônibus de diversas capitais brasileiras, a ideia foi adaptada a uma nova perspectiva. Se para os britânicos os recados se destinavam muito mais à libertação dos próprios ateus de seus “armários” e da população em geral de uma suposta importância infame atribuída à ideia de um criador metafísico, para os brasileiros os cartazes se direcionaram a um intuito de conscientizar a sociedade religiosa quanto aos perigos da religião para a humanidade e, principalmente, de dar maior atenção ao ateísmo enquanto algo a ser normalizado, inserido no conhecimento do senso comum e pautado nas relações sociais do povo mentalmente aprisionado pela religião.
Ao demonstrar que “religião não define caráter”, ilustrando o ator Charles Chaplin enquanto alguém que não acreditava em deus (ateu) e, em contraponto, o ditador Adolf Hitler enquanto alguém que acreditava em deus (católico apostólico romano), a ação da ATEA refutou a narrativa teísta/religiosa de que a religião é, por essência, um definidor e regulador da “moral e dos bons costumes”, como alegam os conservadores, ao mesmo tempo em que desconstruiu os estigmas infundados que os grupos religiosos estabelecidos pregam contra a comunidade ateísta enquanto grupo outsider.
Já ao afirmar que “se deus existe, tudo é permitido”, contrapondo a célebre frase atribuída ao filósofo Fiódor Dostoiévski sob a ilustração dos ataques terroristas islâmicos contra as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, e que “a fé não dá respostas, só impede perguntas”, ao lado da imagem de uma pessoa aprisionada em uma cela, em alusão à prisão da fé que coíbe a razão, o pensamento científico e o senso crítico, a propaganda da Associação subverteu os conceitos que as igrejas estabelecem como verdades absolutas — sem evidências empíricas que sustentem e embasem tais alegações — e promoveu uma reflexão que faz com que mais pessoas percebam os males da religião e compreendam a sua inutilidade na vida cotidiana, tendendo a se emancipar da doutrinação sistêmica a qual foram submetidas desde a tenra infância.
Por fim, ao propor a ideia de que “somos todos ateus… com os deuses dos outros”, utilizando a imagem de três divindades de religiões distintas uma ao lado da outra, a propaganda mostrou que, enquanto os ateus rejeitam todas as concepções de deuses e vertentes religiosas existentes no planeta, os monoteístas (cristãos, em especial) aceitam apenas uma entre milhares de hipóteses, negando as demais alegações igualmente extraordinárias. Nesse sentido, partindo do pressuposto de que toda a espécie humana nasce originalmente ateia — por estado de natureza, isto é, sem possuir crença natural em deus(es), mas sendo tudo fruto de uma construção social coletiva —, a diferença entre teístas e ateístas em um contexto universal seria pormenorizada, o que torna injustificável tratamentos sociais tão distintos e desiguais como os estabelecidos hierarquicamente nas relações de dominação e opressão entre religiosos e ateus. Assim como sabiamente afirmou o ateísta Richard Dawkins, “somos todos ateus no que concerne à maioria dos deuses que a humanidade já acreditou. Alguns de nós só vão um deus além”.
Enfim, fato é que, apesar de ter sido pouco comentada e notorizada, em especial pelos veículos de comunicação televisivos — como de costume para tudo o que envolve o ateísmo — , a fraca visibilidade que a campanha obteve em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul e em todo o Brasil foi suficiente para gerar polêmica e marcá-la como uma ação com mais aspectos negativos do que positivos. Primeiramente pelo óbvio: as mensagens despertaram a ira e a revolta dos religiosos fundamentalistas que compõem a sociedade brasileira, seja por dar visibilidade ao ateísmo e a argumentos e propagandas irreligiosas, seja por expor a hipocrisia cristã e o passado sombrio do cristianismo, como a relação da Igreja Católica com a ascensão do regime nazista na Alemanha e o fato histórico de que Hitler era um tirano assumidamente cristão. Como se sabe, grupos privilegiados sentem-se incomodados quando seus interesses e privilégios são ameaçados, bem como quando o sistema é confrontado e duras verdades sobre sua estrutura vêm à tona, mexendo na base da pirâmide social que sustenta as classes dominantes.
A iniciativa da ATEA acabou, infelizmente, reforçando estereótipos contra a comunidade ateísta — como o de que ateus são intolerantes e desrespeitosos com a fé e a espiritualidade alheia, tal como os extremistas e fanáticos religiosos, estando ambos posicionados em polos opostos que se aproximam e se assemelham. O desprezo e a aversão ao ateísmo foi intensificado radicalmente, assim como estigmas de que ateus são “revoltados com deus” e “frustrados com a vida” se solidificaram após a campanha. De acordo com Montero e Dullo (2014), os resultados da ação atestaram que “o ateísmo, quando se posiciona publicamente contra a religião, é percebido como uma “crença individual””, além de que seus militantes acabam sendo “percebidos socialmente como uma “minoria fundamentalista”” (p. 59).
Segundo Daniel Sottomaior⁹, presidente da ATEA, à época, “há uma noção de que ateus são maus. Acontece um crime bárbaro, logo falam que o sujeito não crê em Deus. A campanha quer mudar essa imagem”. Particularmente, não acho que o objetivo tenha sido alcançado, quando muito pelo contrário. Pouco divulgada na mídia e bastante reclusa a um município — mesmo que territorialmente grande e com amplo acolhimento populacional — ao sul do país, a ação ateísta mais gerou polêmica e confronto com setores conservadores e religiosos do que obteve êxito em seus intuitos de difundir o ateísmo positivamente entre a sociedade, a nível nacional. Em comparação com a Bus Campaign britânica, a “Outdoor Campaign” brasileira não conseguiu se proliferar, inspirar efetivamente outras iniciativas futuras e, principalmente, concretizar sua proposta inicial, obtendo resultados um tanto controversos perante a opinião pública.
Contudo, se parte da ideia consistia em visibilizar o ateísmo para fora da bolha da militância ateia concentrada quase que exclusivamente nas redes sociais, é possível considerar que a visibilidade ateísta em vias porto-alegrenses serviu de exemplo e ensinamento sobre táticas que o ativismo ateu ainda pode vir a promover em novas ações que cumpram com os reais objetivos, difundindo uma mensagem mais objetiva e eficaz que a célebre e admirável campanha de iniciativa da ATEA.
*Artigo produzido para a disciplina de Etnicidade, Minorias e Políticas Públicas, do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), durante o segundo semestre letivo de 2022, e reeditado para fins de publicação.
REFERÊNCIAS
¹Atheist Bus Campaign. Humanists UK — campaigns. Disponível em: https://humanists.uk/campaigns/successful-campaigns/atheist-bus-campaign/. Acesso em: 12 mar. 2023.
²AZEVEDO, Reinaldo. VEJA 5 — Só 13% dos brasileiros votariam num ateu para presidente. Veja, 2007. Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/veja-5-so-13-dos-brasileiros-votariam-num-ateu-para-presidente/. Acesso em: 12 mar 2023.
³BERNARDO, André. Preconceito, agressividade e desconfiança: como é ser ateu no Brasil. BBC Brasil, 2016. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-37640191#:~:text=%22Religi%C3%A3o%20n%C3%A3o%20define%20car%C3%A1ter%22,repulsa%20e%2025%25%2C%20antipatia. Acesso em: 12 mar. 2023.
⁴Brasileiros ligam criminalidade à maldade e acreditam que fé em Deus torna as pessoas melhores. Datafolha/Folha de São Paulo, 2012. Disponível em: https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2012/12/1211082-brasileiros-ligama-criminalidade-a-maldade-e-acreditam-que-fe-em-deus-torna-as-pessoas-melhores.shtml. Acesso em: 12 mar. 2023.
⁵JIMENEZ, Keila. Datena insulta ateus e Band é condenada. Observatório da Imprensa, 2013. Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/educacao-e-cidadania/caderno-da-cidadania/_ed732_datena_insulta_ateus_e_band_e_condenada/. Acesso em: 13 mar. 2023.
⁶LADEIRA, Francisco Fernandes. Ateofobia no ‘Jornal do SBT’. Observatório da Imprensa, 2013. Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/tv-em-questao/_ed756_ateofobia_no_jornal_do_sbt/. Acesso em: 13 mar. 2013.
⁷Ateus pretendem processar SBT por declarações no “Programa Silvio Santos”. NaTelinha, 2016. Disponível em: https://natelinha.uol.com.br/noticias/2016/05/11/ateus-pretendem-processar-sbt-pordeclaracoes-no-programa-silvio-santos-98957.php. Acesso em: 13 mar. 2023.
⁸Propaganda de Bolsonaro classifica Haddad e Manuela como ateus. Viva Bem — Uol, 2018. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/videos/?id=propaganda-de-bolsonoaro-classifica-haddad-e-manuela-como-ateus-04024D1C3162D8A96326. Acesso em: 13 mar. 2023.
⁹MAZUI, Guilherme. Com outdoors na Capital, campanha de ateus quer conter preconceito contra pessoas sem religião. GZH, 2011. Disponível em: http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/noticia/2011/07/com-outdoors-na-capital-campanha-de-ateus-quer-conter-preconceito-contra-pessoas-sem-religiao-3401638.html. Acesso em: 15 mar. 2023.
BIBLIOGRAFIA
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