Solari no Japão – um diário aberto de viagem (Parte 1/3)

Guilherme Solari
17 min readNov 3, 2017

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Continua na parte 2 e parte 3.

Prólogo – sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Existe uma expressão antiga japonesa que é o musha-burui (武者震い), que significa literalmente “tremedeira de samurai”. É aquela sensação de medo, ansiedade e empolgação quando o guerreiro está prestes a entrar em combate. Ou, em tempos de paz, realizar uma tarefa monumental muito aguardada que você não sabe qual será o resultado.

E estou sentindo musha-burui tomando pingado e pão na chapa, num café da manhã de despedida. Próxima postagem que fizer, provavelmente vou estar escrevendo de ponta cabeça lá na Terrinha do Sol Nascente. Racionalmente eu sei que o Japão é um lugar real que existe — eu tive aula de geografia — mas emocionalmente ele sempre pareceu ser uma terra mitológica de onde só se ouvia lendas, não notícias. É a sensação de estar indo para a Terra Média, El Dorado ou Shangri-la. É de botar qualquer samurai pra tremer mesmo.

Em trânsito – sábado, 4 de novembro de 2017

Em Vancouver esperando o meu voo para Tóquio percebi duas coisas: 1: 36 horas de voo e conexões não é brinquedo e 2: Todas as livrarias de aeroporto no mundo inteiro são iguais.

Tá, algumas têm urso polar.

Orgulho da nossa pequena ilha – domingo, 5 de novembro de 2017

Foi entrar na fila do voo pra Tóquio, ouvir as pessoas falarem, que bateu o desespero. Meu Deus. Eu não sei falar japonês. Primeira frase que soltar não vão entender nada. Ou pior, vão achar que sou fluente e falar textões gigantes que eu não vou saber responder.

Senta do meu lado do avião um sujeito de aparência de nihonjin. Pelo canto do olho no passaporte confirmo que é japonês mesmo e arrisco:

“Konnichiwa.” (Boa tarde)

Primeiro vem a surpresa no rosto dele, mas depois vem o sorriso e uma resposta:

“Konnichiwa!”

“Watashiwa Gui-ri-e-ru-me desu. Burajirujin desu. Hajimemashite.” (Eu sou o Guilherme. Sou brasileiro. Muito prazer).

Hiro-san – descobri que esse era o nome dele – fez uma expressão assombrada como se tivesse visto a Samara em pessoa saindo da TV. Engatamos numa conversa de boa parte da longa viagem atravessando o Pacífico. Sobre Jaspion (conhece vagamente, mas como sabem disso no Brasil?), temaki brasileiro com cream cheese (êêê?!) e coxinha e churrasco. E descobri algo que só se confirmou depois que eu desembarquei: falar japonês no Japão é acima de tudo divertido.

A primeira reação quando você aborda o japonês é ele ficar aterrorizado, com a “vítima” tentando relembrar em segundos os vestígios de inglês que sobrou da escola. Daí qualquer frase “the book is on the table” que soltei em japonês a reação foi de espanto e animação.

Hiro-san não parava de se surpreender com minhas frases soltas “quanto custa isto?”, “por favor, onde fica o museu?”. Quando escrevi em hiragana o endereço de um lugar que ele recomendou em Tóquio, parecia que ele estava vendo um truque de mágica.

Falei pro Hiro-san que tinha um pouco de medo de falar com japoneses, de acabar usando um termo muito informal ou formal demais nessa língua tão hierárquica. Ou de dilacerar o idioma com o uso errado de partículas, como sei que fazia seguidamente conforme conversávamos, mesmo que ele educadamente garantisse que meu japonês estava ótimo.

“O mundo é tão grande e tem tantas línguas,” ele falou. “Ver um estrangeiro se esforçando para aprender o nosso idioma, que só é falado na nossa pequena ilha, dá muito orgulho do nosso país.”

Agora com licença que vou descer falar “que noite bonita!” para a primeira pessoa que encontrar na rua e ver ela quase morrer do coração.

Churrasquinho no Beco das Memórias — segunda, 6 de novembro de 2017

Existe uma rua estreita em Shinjuku chamada Omoide Yokocho (思い出横丁), literalmente “beco da memória”. Descobri depois que ela também tem o não-tão-poético apelido de “beco do mijo”, mas, fazer o quê, foi lá que eu acabei indo almoçar.

Hoje foi um dia que eu tirei para andar sem rumo. Esquentar os músculos das pernas depois de 36 horas de inatividade no voo, esfriar a cabeça porque Tóquio ainda é algo meio assustador pra mim. Quando mais você pesquisa, mais você descobre. Quanto mais você conhece, percebe o quanto mais existe para conhecer. Então comecei andando sem rumo. Andei por parques, lojas de eletrônicos, estiquei a cabeça dentro de um pachinko, tomei café gelado (aprovado, por sinal), joguei Mario Kart em realidade virtual, (tentei) rebater algumas bolas em um range de baseball. Até que bateu a fome.

Foi quando acabei no tal do beco do mijo. Omoide Yokocho é basicamente uma rua estreita demais pra três pessoas andarem lado a lado, com restaurantes no estilo do Japão pré-guerra, como se estivesse esquecida no tempo. Um beco de estabelecimentos de balcões na rua às vezes com só quatro ou cinco lugares. Uma rachadura de intimidade poucos metros de uma das estações mais movimentadas de Tóquio e do mundo.

O nariz me pegou primeiro. Yakitori — vulgo churrasquinho — de alguma carne não-identificada. O inglês da senhora do balcão não era bom o bastante para explicar o que era, nem o meu japonês bom o bastante para entender. Mas o cheiro não mente. Puxei o banquinho que restava ao lado dos dois únicos clientes do lugar.

“Here is delicious!” disse um deles, com ares de habituê, um típico “salarimen” de terno e gravata. Gente que trabalha feito louco e bebe feito louco, pelo visto também no almoço, dada a canecona de cerveja em suas mãos. Ele perguntou de onde eu era e quando ele ouviu que era do “Burajiru” ele pediu para apertar a minha mão. O povo adora o Brasil. Chegou minha seleção de yakitoris. Um de frango e outro carne, mas de resto acho que um era cogumelos, outro talvez um peixe apimentado e outro quem sabe um…. palmito japonês? Não faço ideia. Mas tudo muito gostoso.

A conversa fluía e emperrava no meu almoço com os meus “colegas de firma”. Depois de ter enxugado duas cervejas — eles quatro cada — o nosso bate-papo consistia em eu perguntar o que era determinado espetinho e eles respondiam um nome incompreensível. Eu dizia “so desuka?” (é mesmo?) fingindo ter entendido, e eles fingiam que acreditavam que eu tinha entendido. E todos ficavam felizes. Era a comunicação possível.

Em meia hora eu fui embora, me despedi e o almoço deles continuou. Eu continuei descendo aquele beco de memórias. A cerveja foi no ponto para fazer a mente divagar. Eu me peguei olhando os outros balcões, outros sararimen conversando, outras histórias, outros espetinhos não-identificados com cara de serem ótimos. Pra mim fez sentido aquele ser um beco de memórias, eu senti lá mesmo essa nostalgia. Antes mesmo de ir embora eu já estava com saudades.

SOLARI BIG IN JAPAN APARTMENT TOUR 2017 TOKYO EDITION — RELOADED!!

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Onde o dinheiro vai para morrer – terça, 7 de novembro de 2017

Eu era jovem e inocente naquela época. Na tarde passada. Eu achei que poderia só “dar uma olhadinha” em uma depaato (デパート), loja de departamento japonesa.

É difícil explicar uma depaato para alguém que não conhece. Eu mesmo estive dentro de uma e não entendo. É como se as antigas lojonas de departamento do Brasil dos anos 1980 como Mesbla e Mappin nunca tivessem sumido, e tivessem passado esse tempo todo puxando ferro e anabolizante. Imagina então o tamanho que elas estão agora.

A Yodobashi Camera preenche sete andares de um quarteirão inteiro em Akihabara. Eu entrei lá na ilusão de dar uma passada de vista e quem sabe depois ver o resto do bairro. No final fui tragado por um buraco negro de consumo e insanidade de opções que não entendi direito até agora.

Como a descrição que ouvi de um gringo de sotaque australiano – muitos deles por lá, especialmente no andar de games – definindo para o amigo: “é um cemitério onde o dinheiro vai para morrer”.

Assim que você entra os seus sentidos são dominados por luz e som, onde tudo o que o seu olho vê grita “COMPRE!”. Os neons piscam, os atendentes sorriem e dizem “irashaimasse!” e toca em loop eterno uma música que posso jurar que combina o ritmo de “Louvemos ao Senhor”, cânticos natalinos e uma narradora de voz kawaii repetindo seguidamente em cinco idiomas como a Yodobashi Camera é a melhor loja do mundo, caso você tenha esquecido. Garanto que se você ouvir ao contrário ela diz subliminarmente algo como “o dinheiro é seu Deus”.

Tentei enfrentar a overdose de informação indo nos livros é mais confortável para mim. Edições lindíssimas de pocket book que eu queria comprar como artefato mesmo. Uma sessão de mangá com rapazes gays que deixariam expostas a família brasileira se dispostas tão abertamente no Brasil. Depois, eu vi tudo. Milhares de bonequinhos de kaijus e robôs gigantes. Televisores, máquinas de lavar, câmeras, consoles, fileiras e fileiras de capas de dezenas de marcas de telefones, um andar apenas de restaurantes e muita coisa que eu não saberia nem descrever, quanto mais falar o que é.

Foram pouco menos de cinco horas batendo pé nesse buraco negro do consumo. É realmente um lugar que te dá aquela febre do ouro, aquela vontade de ter o que você não precisa mas… cacete, é um Mario de pelúcia com a roupa de guaxinim, não dá pra viver sem! É a cara do Japão, essa loucura materialista a poucos quarteirões de templos xintoístas e budistas onde você pode praticar o desapego. O país oferece tudo pra você, mas você faz dele o que você quer.

Resisti bravamente e por sorte pouco do meu dinheiro morreu naquela tarde. Deixei a depaato enquanto já anoitecia, cantarolando a musiquinha da Yodobashi Camera como recém-saído de um experimento de lavagem cerebral e segurando o meu novo porta-moedas do Pikachu.

Não dá pra viver sem.

Tem um macaco aí dentro – quarta, 8 de novembro de 2017

A Honda acha que me engana, mas nao me engana não. Vi uma demonstração do – suposto – robô ASIMO dela com meus coleguinhas (tomodachi) de classe no Museu de Ciências Emergentes e Inovação, vulgo Miraikan, em Tóquio.

O ASIMO correu, chutou uma bola de futebol – Arrancando “êêêê!” a molecada – cantou uma música tradicional japonesa fazendo a letra em linguagem de sinais. É de fato impressionante, e um pouco assustador, ver ao vivo na sua frente um robô como o ASIMO se movimentar. Não tem fios, você não vê controlador. A ilusão de você estar vendo algo vivo e com vontade própria é muito grande.

Por isso eu prefiro pensar que a Honda botou um macaco muito bem treinado ali dentro do ASIMO e aquilo não é um robô de verdade. E que os robôs não serão os futuros senhores da humanidade.

Onde, para minha preocupação, não cabe um macaco é dentro da Sophia, outra robô na exposição. Aquela simpática automata com inteligência artificial que ganhou manchetes recentemente dizendo que queria destruir os seres humanos. Mas pessoalmente ela é uma fofa, essa coisa de aniquilar a humanidade é mais o jeitão dela. Ela fica ali no Miraikan sem pernas se debatendo por conta própria seguindo seu algoritmo mais parecendo o Robocop com defeito.

Robôs existem por todo, mas o Japão lidera o desenvolvimento de robôs que pareçam humanos. Essa própria Sophia recentemente ganhou cidadania na Arábia Saudita, e recentemente uma inteligência artificial que simula uma criança ganhou cidadania japonesa honorária. Uma aplicação óbvia é o auxilio e companhia a idosos de sua população que envelhece mais a cada ano, mas eu suspeito que essa relação mais próxima dos japoneses com os robôs tem a ver com a influência do xintoísmo.

No xintoísmo rios, florestas e montanhas tem espíritos, uma ideia muito parecida com as ninfas de rios da mitologia grega. Para nós pode ser estranho ver as cerimônias que fazem no Japão se despedindo de um trem que “trabalhou” por muitas décadas. Mas os japoneses têm mais facilidade de antropomorfizar objetos e lugares, de ver eles quase como pessoas. E acho que esse é o primeiro passo para dar mais valor e respeito a essas coisas inanimadas. Você pensa duas vezes antes de poluir um rio que está “vivo” de certa forma.

Ainda torço que tenha um macaco dentro desse ASIMO, no entanto.

O Túmulo dos 47 Ronin – quinta, 9 de novembro de 2017

Entrar nas partes menos turísticas de Tóquio é como ir para os bastidores da cidade. É ali que a vida segue de verdade, onde moram os funcionários dos restaurantes e lojas que você frequentou. É como se boa parte da Tóquio que aparece para nós ocidentais fosse um parque de diversões, uma apresentação. Esses bairros residenciais são os bastidores.

Em um bairro desses que fica o templo Sengaku-ji, onde estão os túmulos dos 47 ronin. É uma história real de um grupo de samurais do século 18 que, após seu lorde cair em desgraça e ser ordenado a se matar por atacar um mensageiro do Shogun que os insultou, arquitetaram uma conspiração para vingar seu senhor. Apesar de serem ordenados também a cometer o seppuku após levarem a cabeça do tal mensageiro para o túmulo de seu senhor em homenagem, sua demonstração de fidelidade fez com que fossem considerados heróis nacionais até hoje. É uma história incrível, mas esqueça o filme com o Keanu Reeves. No vídeo abaixo descrevo mais à fundo a história dos ronin.

Me perdi no caminho pro templo, mas como sempre acontece quando você se perde de mente aberta, você não se perde de fato, apenas encontra algo que não estava procurando. Me meti numas ruazinhas capilares para pedestres que passava ao lado de uma escola. Apenas o barulho do vento nas folhas e das crianças brincando me fazendo companhia.

Nos túmulos encontrei de senhorzinhos de idade a jovens de terno colocando a pasta no chão e se ajoelhando em homenagem, acendendo incensos a cada um dos ronin. A atitude desses samurai ressoou tanto no imaginário japonês por ser a representação máxima da lealdade do bushido, o código de honra samurai. E, samurai ou não, acho que é algo que acho que influencia o senso de dever de todos os japoneses. Do samurai ao guardinha de luvas brancas que aponta para os transeuntes o fio de uma obra na calçada.

Imitando o pessoal em volta, deixei o templo conforme dezenas de alunos saíam da escola ao lado e fui descendo entre eles rumo a minha estação. Eles conversavam animados entre eles e eu agucei os ouvidos tentando entender parte da conversa.

Peguei algumas palavras soltas como “sugoi” (legal), alguns verbos e termos, mas suspeito que deviam falar um monte de gírias e quase tudo se perdia nos meus ouvidos. A vontade foi de estudar meu japonês mais alguns anos e tentar fazer a mesma coisa, para ver o quanto mais dos bastidores a cidade vai me revelar.

A garrafa do Sorari – sexta, 10 de novembro de 2017

Expliquei para os japoneses o conceito de “saidera” (when you say is last drink, but not really!) e me ofereci para pagar uma última rodada. Era o mínimo que podia fazer. Os coitados estavam desolados com a derrota de 3 a 1 para o Brasil depois que assistimos ao jogo em Shibuya.

Ia escrever que estava assistindo ao jogo atrás das “linhas inimigas”, mas a verdade é que quando falei que era do “Burajiru” o pessoal me tratou como celebridade. Conheci meus novos colegas ali mesmo. Eu era o único ocidental em um pub subterrâneo de inspiração britânica. O lugar estava cheio e se aproximou de mim Kota-san, que perguntou se poderia se juntar à mesa onde eu estava. Em breve chegaram seus amigos Kyosuke-san e Go-san.

Os japoneses se divertem vendo jogo. É o Nihon pegar na bola próximo à área que gritam “UÔÔ!”. A bola bate na trave e sofrem. Zagueiro do Japão faz besteira e eles xingam. O tempo todo falando o quanto o time do Brasil é melhor, que estão com inveja. “Empresta o Neymar e o Tite pra gente,” Go-san me pede. “Só pra gente usar ano que vem na Rússia, depois a gente devolve”.

Os três trabalham em publicidade em Tóquio, e o meu japonês iniciante e o inglês avançado deles conseguiam se esticar até aquele ponto mágico no qual a conversa flui muito bem. Com só um pouco de ajuda de mímicas e esse lubrificante de conversa que é o álcool. Depois da saidera (サイデラ) final perguntaram se eu queria ir para a próxima.

Bora pra próxima.

Pegamos um táxi e caímos no Golden Gai. É um quarteirão com ruas internas contendo uma série de bares minúsculos um ao lado do outro e – descobri – um em cima do outro também. Um lugar que compensa pouco espaço com muita personalidade.

A entrada para onde íamos era menos uma porta do que uma fissura no edifício, que dava para uma escadinha para o bar que eles costumam ir. Bar que na verdade era um balcão no qual só cabe meia dúzia de pessoas, sem janelas, com as paredes com desenhos e ideogramas escritos pelos frequentadores e uma névoa constante de cigarro no ar.

O lugar poderia parecer um buraco decadente, mas eu defendo que o que faz o bar é a sua companhia, portanto acabava tendo um ar de aconchego, de casa. Go-san me explicou que o dono, que não parecia falar muito inglês, mas entendia o bastante para não deixar esvaziar o meu copo, era de um grupo de dança famoso e uma celebridade de TV no Japão. Se era exagero, não sei, mas arregalei os olhos e soltei um “eeee, so desuka?!” (é mesmo?!) porque estou aprendendo cada vez mais que no japonês a entonação é metade da comunicação.

Go-San tinha uma garrafa com o nome dele no estabelecimento, e ela logo virou uma saidera. Eles entenderam mesmo o conceito. Ele depois me pediu para escrever como lembrança o meu nome nela, e eu assinei do jeito que tinha me apresentado para eles, Sorari, de pronúncia mais fácil para os nihonjin.

Chegou uma colega de escola de Go-san, salarymen de terno recém-saídos da firma e outros habitués. Falamos de comida, Brasil, Rio de Janeiro, mais futebol, do meu trabalho de “janarisuto” (jornalista), do deles em publicidade, yakuza, cinema, anime e diversos outros assuntos que o álcool agora já enterrou no esquecimento. Kyosuke-san de vez em quando traduzia a conversa, mas no grosso eles batiam papo entre eles. E eu ficava contente em só presenciar aquele momento de intimidade. E beber, claro.

Era umas 5h da manhã quando deixamos o bar do Golden Gai e eles ainda insistiram em pagar a minha conta. Eu tentei recusar, mas não teve jeito. Go-san ficava insistindo, empurrando o dinheiro de volta em minhas mãos, até que ele falou:

“Quando eu for para o Burajiro, você que vai pagar a minha conta.”

Eu abaixei a cabeça e me curvei fazendo o “ojigi”, o cumprimento de agradecimento.

Combinado, Go-san. Combinado.

A Ponte do Rio Kawaii – sábado, 11 de novembro de 2017

Claro que cada um viaja do jeito que quer, mas nunca entendi pessoal que fala com orgulho “viajamos pela Europa dez dias e ‘fizemos’ sete países”. Pra mim tudo o que fizeram foi ver meia dúzia de pontos turísticos, hotel, aeroporto e estação de trem.

Ei, eu também gosto de ver as armadilhas de turista, tirar a mesma foto que todo mundo tirou naquela praça famosa, comprar feliz a lembrancinha cafona na lojinha do museu e tudo mais. Mas, por mais que pareça contraditório, o que eu mais gosto de viajar é quando começo a ter uma rotina. Quando você está a tempo suficiente para ter um cotidiano é quando você começa a “viver” a cidade, ao invés de apenas viajar por ela.

Parte da minha rotina em Tóquio tem sido dar uma corrida de manhã pela cidade. É uma desculpa perfeita para sair sem rumo algum. Eu escolho a rua que acho mais interessante e corro por ela até o próximo cruzamento, onde vejo qual a rua mais interessante e sigo por ela, assim por diante. Acabei passando por avenidas, áreas comerciais, ruas residenciais, parques. Foi assim que eu acabei descobrindo um lugar que eu apelidei de Ponte do Rio “Kawaii” (fofo).

O Japão é sabidamente o lugar do mundo com maior concentração de velhinho fofo por quilômetro quadrado e se você talvez não vê eles muito durante o dia, no amanhecer eles reinam absolutos. Tomam as calçadas varrendo as folhas deixadas pelo outono, voltam de supermercados com sacolas, fazem sua marcha atlética com moleton de esportista de fim de semana como se tivessem ganhado um cupom de kit completo da loja da Adidas.

E se reúnem para fazer a ginastiquinha deles também. Minha rota favorita de corrida tem sido acompanhar o rio Kanda enquanto amanhece. E lá ao lado de uma ponte que cruza o rio se reúnem em massa dezenas de ojichan e obachan (os vovôs e vovós) elevando os braços, fazendo agachamentos, se alongando para começar o dia ao som de um radinho com musica tradicional japonesa.

Sempre que corro eu mudo a minha rota, mas faço questão de incluir uma passagem pela Ponte do Rio Kawaii. Às vezes não é preciso muito mais do que uma cena dessas para deixar o seu dia melhor.

Viajar sozinho, mas muito bem acompanhado – domingo, 12 de novembro de 2017

Eu adoro as pessoas, bater papo e conhecer gente. Mas até aí eu também adoro cerveja e se bebo demais fico de ressaca.

As pessoas confundem muito sozinho com solitário, mas acho importante todo mundo aprender a ficar sozinho numa boa, porque afinal você é a única pessoa que você pode ter certeza que vai te acompanhar até o final da vida. Ficar sozinho é o único jeito de ficar acompanhado consigo mesmo. De você ouvir as suas ideias e de saber quem você é. Não quem você é [com fulano] ou quem você é [no trabalho]. Quem você é e ponto.

E viajar sozinho intensifica isso mais ainda. Você está vulnerável, perdido em um lugar que nao conhece e precisando se orientar não só geograficamente e no idioma, como também nas suas emoções.

Outro aspecto que não tinha antecipado é como sozinho você acaba mais aberto a conhecer mais gente. O povo fica mais predisposto a vir trocar ideia quando você esta sozinho no balcão de um bar. Melhor coisa para trabalhar as suas people skills.

Dito isso, está chegando a um terço desta viagem e a saudade do Brasil e dos amigos já bate junto da vontade de que a viagem não termine. Esse diário aberto tem sido esse meu contato com casa, e estou muito feliz com a resposta que as pessoas estão tendo com ele. Eu sinto como se vocês estão de certa forma fazendo essa viagem junto comigo. Ficar sozinho é bom, mas no final felicidade só é real se é compartilhada.

Semana que vem esse diário entra em uma nova etapa, teremos os últimos dias em Tóquio e uma nova cidade. Muito obrigado a todo mundo que tem acompanhado essa viagem. Vamos ver o que o Japão ainda tem para nos mostrar.

E vou ficando aqui lendo um Murakami sossegado no bar. Kanpai!

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Guilherme Solari

Jornalista e escritor de São Paulo. Escreve sobre cultura e tecnologia para veículos como UOL e Estadão. Faz resenhas literárias no canal Guilherme Solari Tube.