Contra a narrativa do “golpe midiático” e da manipulação
1.
A história contada por boa parte de quem se contrapõe ao impeachment é constante: estamos sendo alvo de um “golpe midiático”, engendrado por um conluio imprensa-oposição. A ideia básica é simples: o estado atual de insatisfação e de crise política é em boa medida estimulado por um ataque implacável da “mídia hegemônica”, que teria sido capaz de gerar por si só os movimentos pró-impeachment, em busca de sabe-se lá quais interesses e objetivos nefastos.
Considero essa narrativa simplista e fraca por diversos motivos.
2.
Antes de tudo, toda análise que se propõe a explicar atitudes coletivas/movimentos de massa como simples fruto de “manipulação” me cheira a autoritarismo. É proveniente de uma visão de mundo fechada que nega a subjetividade: ninguém no mundo tem autonomia (só eu, o “interpretador”), tudo é fruto de alguma conspiração. Quando serve ao “nosso lado”, chamamos de crítica severa à mídia burguesa — mas o “lado de lá” pensa de maneira idêntica, e chama isso de “marxismo cultural”.
Fora isso, essa tentativa de pintar um conluio midiático contra o governo ignora convenientemente o fato de que essa mesma “grande mídia” já viveu uma “lua-de-mel” com Dilma. O Leonardo Tavares resumiu bem isso aqui, mas vejam algumas capas que a gente esqueceu com o tempo:
A derrocada de Dilma no congresso, também pintada como fruto de uma conspiração (neoliberal, fascista, evangélica, conservadora — os adjetivos são múltiplos), deu-se por uma trajetória um pouco mais complexa do que isso. A presidenta e seu escudeiro, Aloizio Mercadante, tentaram “desidratar” o PMDB, estimulando a criação de partidos de aluguel como o PROS e o PSD, na esperança de reduzirem a dependência em relação ao principal aliado. Fracassaram, e a eleição de Eduardo Cunha para a presidência da câmara dos deputados é uma consequência direta desse fracasso.
O maior problema na narrativa do golpe midiático, porém, é que ela simplesmente inverte a ordem dos fatores. Seguindo a cronologia do impeachment, percebemos que não foi a mídia (e nem a “oposição” — um saco de gatos que é jogado e uniformizado nessa coalizão narrativa) quem fomentou desde o início o discurso de impeachment. Ele surgiu à parte, defendido por outsiders, e a sua crescente popularidade fez com que fosse encampado pela imprensa e oposição.
O contexto para que a insatisfação surgisse todos conhecem: escândalo de corrupção assombroso, recessão inédita, governo imóvel e sem ação, falta de perspectiva de mudança, “traição” explícita do prometido em campanha. Frente a esse quadro, acreditar que é necessário que a mídia “manipule” alguém para se revoltar é um pouco ingênuo.
Insinuar que o impeachment é uma pauta “gestada” pela mídia e imposta aos manifestantes é simplesmente faltar com a verdade. O MBL — Movimento Brasil Livre -, se não o mais influente, o mais midiático dos grupos opostos à Dilma, protesta pelo impedimento no mínimo desde março de 2015, quando a pauta estava longe de ser encampada pela maior parte da mídia. Mesmo hoje, com mais da metade da população aprovando o impeachment, a Folha de São Paulo, frequentemente apontada como “golpista”, se coloca contra, defendendo novas eleições.
A oposição também demorou para entrar no bonde. Cunha, pintado como grande “conspirador” contra o governo, “sentou” no processo de impedimento por um longo tempo — depois de meses de espera e pressão, só em dezembro de 2015 o presidente da câmara autorizou a abertura do processo. Até então, o governo tentava apaziguá-lo, e a sua atuação proteladora indicava a simbiose entre as situações de Dilma e Cunha — ele não a derrubava, para evitar a própria queda.
O outro suposto insuflador do “golpe”, o PSDB, titubeou igualmente. Diversas lideranças se colocaram contra o impedimento, e as posições nunca foram constantes. Mesmo os ataques ao ex-presidente Lula não vieram com igual intensidade.
A narrativa do golpe “manipulado” pressupõe uma massa obtusa e facilmente controlável de manifestantes vazios. Mais uma vez, a realidade se impõe: os opositores visitantes foram rechaçados nas manifestações. Além disso, a despeito das pautas “liberais” de diversos financiadores do movimento (MBL, Fiesp), a grande maioria dos manifestantes defende serviços públicos gratuitos e é extremamente crítica a todo tipo de liderança política. Se a ideia era ter um exército defendendo cegamente os seus interesses, a “manipulação” foi um grande fracasso.
Repetindo: os manifestantes “de esquerda” (marcha do dia 18/03, “contra o golpe), que criticam os “de direita” (marcha do dia 13/03, “fora Dilma”) por serem manipulados, controlados pela mídia, guiados por senhores e pela desinformação são MAIS propícios a confiar em ícones (como “Tico Santa Cruz” e “Socialista Morena”). O ceticismo e ausência de ídolos é uma característica mais forte entre a turma do impeachment — um indício de que a frase “Quando João fala de Pedro, aprendo mais sobre João do que sobre Pedro” contém certa sabedoria. A palavra “projeção” talvez seja adequada.
3.
A tese de que o impeachment foi uma pauta “artificial” gerada pela mídia não se sustenta. Não só os dados e as notícias cronológicas a contradizem — é uma narrativa autoritária, anti-vida e niilista que foge ao entendimento básico do ser humano.
É evidente que o “clima” ideológico e midiático pode influenciar pessoas — negar isso seria loucura. Mas ele não é tudo. Caso o fosse, o PT simplesmente nunca teria sido eleito — a mídia hegemônica e infalível teria colocado toda a população contra o partido desde sempre, e Lula seria um ninguém. Mais do que isso: se fosse possível controlar tão perfeitamente assim a mentalidade das pessoas, eventos “inesperados” de rebeldia nunca teriam acontecido em países autoritários e fechados. O muro de Berlim nunca teria caído. Ninguém teria se imposto aos tanques na praça da Paz Celestial.
Ainda que a influência midiática exista, outros fatores se impõem. Fatores individuais, fatores sociais, culturais, econômicos. E foi essa tempestade perfeita de condições — crise terrível, descrença no sistema, corrupção arraigada — somada à agência (ou seja, a humanidade — a capacidade de decidir, de existir, que é removida das pessoas pela narrativa de manipulação) de milhares (milhões) de pessoas — individuais, mas unidas — que gerou o panorama atual.