As famílias dos homens

Guilherme Dearo
8 min readOct 14, 2017

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IMAGEM 1 — Autor desconhecido/Coleção Particular

*texto escrito originalmente como trabalho final para o curso Seeing Through Photographs, do MoMA.

Introdução

Segundo Beaumont Newhall, qualquer fotografia pode ser considerada documental se ali conter uma informação. Nesse sentido, uma foto amadora e familiar, que não representa nenhum evento histórico ou figura pública, e não possui caráter jornalístico, ainda assim pode ser uma fotografia documental e produzir valor artístico e histórico apesar de trazer cenas da vida privada e narrativas particulares.

David Campany, em “Between the Snapshot and Staged Photography”, analisa que a fotografia pode ser uma narrativa em si, mas que um conjunto organizado de fotografias também pode criar uma narrativa. Assim, não é difícil de enxergar uma história ao passar os olhos por um velho álbum de família, cuidadosamente montado.

As fotos desse artigo foram selecionadas entre algumas centenas de fotografias que tenho em meu arquivo pessoal. Todas as fotografias são das décadas de 1920 a 1950, a maioria tiradas no Brasil (outras, em lugares imprecisos que sugerem países europeus, como França).

Encontradas em feiras de rua, mercados de pulga e anúncios na internet, são fotos amadoras de pessoas que não conheço. Não sei nomes e histórias daqueles que aparecem nas imagens. Também não é possível saber datas e locais com precisão. Os autores das fotografias também não são conhecidos.

A minha intenção é mostrar como estas fotografias amadoras podem nos trazer informações e narrativas e também conter precioso valor documental e artístico. Como podem, também, nos revelar beleza e compaixão.

IMAGENS 2, 3 e 4 — Autores desconhecidos/Coleção Particular

As fotos para o povo

A imagem de pessoas posando conscientemente para a câmera existe desde a invenção da fotografia. Antes, com o alto tempo de exposição necessário e a pouca sensibilidade das placas fotográficas, o sujeito da foto precisava ficar parado durante muito tempo, caso contrário a imagem sairia borrada e fora de foco. Além disso, as câmeras eram caras e pesadas, os materiais eram complexos e difíceis de carregar e poucas pessoas conheciam as técnicas necessárias para revelar uma fotografia adequadamente.

No fim do século 19, a tecnologia fotográfica avançou e tudo mudou. Com filmes mais práticos e sensíveis e com o lançamento da Kodak 1 (“Você aperta o botão, nós fazemos o resto”), a fotografia chegou para as massas. Qualquer um, em teoria, poderia tirar uma foto.

Tudo ficou mais fácil e barato. As cenas prosaicas, as cenas familiares, o dia a dia: a pose deixava os estúdios profissionais e ia para a rua e para as casas. A velocidade da câmera também permitia que agora se pudesse capturar momentos mais fugazes e dinâmicos, menos posados. Com a chegada da Leica, das câmeras portáteis 35mm e sua popularização inicial entre profissionais, o momento poderia ser capturado sem pose. Henri Cartier-Bresson inventava o “momento decisivo”.

As fotografias aqui mostradas se encaixam nesse momento de massificação do fazer fotográfico na virada do século. Com câmeras práticas e baratas, sucessoras diretas da Kodak 1, estas pessoas das primeiras décadas do século 20 no Brasil e em outros países podiam posar em suas casas e nas ruas. Havia diversão. Havia simplicidade. Havia o desejo inocente de recordar e registrar.

Não são imagens profissionais tiradas em estúdio ou validadas por museus, galerias ou pela imprensa. Sim, registram momentos particulares e, quando inseridas em um contexto — por exemplo, um álbum de família — revelam uma edição, uma escolha e, portanto, uma narrativa.

IMAGENS 5, 6 e 7 — Autores desconhecidos/Coleção Particular

Fotografias como documentos

Em algumas imagens presentes (2, 3, 4, 5, 6, 7, 9 e 14), a pose é clara e o fotógrafo revela que uma narrativa foi previamente pensada. O local, a posição do corpo, o contexto: há intencionalidades. Em outras, as poses mais tradicionais e neutras (1, 8, 11 e 15) revelam aquelas imagens familiares que quase pertencem a uma espécie de clichê ou categoria formal fixa: a família toda sentada, sorrindo, lado a lado, reunida para o registro anual. Já em outras, como em 10, 12 e 13, o momento não é posado e elas capturam um instante mais franco, natural e fugaz.

Há, claro, uma imensa distância entre estas imagens documentais e o que foi chamado comumente de fotografia documental pela academia: aquelas que, com caráter social e buscando claramente promover mudanças e mensagens, revelavam aspectos sociais e políticos — como exemplo, os trabalhos de Dorothea Lange fotografando os efeitos da Grande Depressão nos EUA; ou o trabalho de Walker Evans ao lado do texto jornalístico de James Agee em “Let Us Now Praise Famous Men”; ou Gordon Parks fotografando a vida no Harlem para a Life.

Também, há imensa distância no quesito qualidade artística se compararmos estas imagens amadoras com aquelas selecionadas para a histórica exposição “Family of Man”, idealizada por Edward Steichen em 1955 (embora estas imagens amadoras revelem traços de qualidade artística: bons enquadramentos, boa composição e iluminação, sensibilidade e franqueza).

Aquela exposição a ser inaugurada no MoMA era composta por mais de duas centenas de fotógrafos profissionais de amplo conhecimento artístico e técnico. Contudo, é impossível não constatar que há um paralelo óbvio entre aquelas imagens fine art e estas aqui expostas a partir de minha coleção particular.

A exposição, à época, foi descrita como uma exibição que contava com imagens que traziam esperança e que mostravam que “não estamos sozinhos”. Ou descrita como uma “exposição [que] devota amor pelo homem, fé no homem”. Ainda revelava, para os curadores, que “em qualquer canto do mundo, as necessidades são as mesmas”.

Não é isso o que mostram estas imagens amadoras? As famílias, as relações sociais, os afetos, os amores? Não mostram o rosto dos homens e das mulheres? Seus aspectos, seus trajes, seus contextos, sua fé? Suas aspirações e esperanças, seus sonhos e pensamentos? Seus lares e seus legados?

Tivessem sido feitas por fotógrafos profissionais como Richard Avedon, Ansel Adams ou Gjon Mili (presentes no MoMA em 1955), poderiam elas estar em “Family of Man”.

IMAGENS 8, 9 e 10 — Autores desconhecidos/Coleção Particular
IMAGENS 11 e 12— Autor desconhecido/Coleção Particular

Valores

Essas imagens nos mostram lampejos do passado, nos mostram as coisas esquecidas. Ainda que sejam do âmbito privado, elas nos ajudam a entender cultura, história, identidade.

Mesmo que não seja possível extrair detalhes delas (data, local, fotógrafo, nome das pessoas que posam), é possível atestar com toda a certeza: isto-foi (como colocou Roland Barthes em “La Chambre Claire”): aquilo existiu. A luz registrou o real. Há uma ligação com o mundo físico e com o passado incontestável.

Apesar de amadoras, há um valor documental, artístico e histórico pelo simples fato de serem imagens criadas dentro da história da fotografia como um todo, que vai do daguerreotipo ao iPhone X, dos amadores com suas Kodak 1 aos profissionais de Leica na mão e grandes objetivas trabalhando para Magnum, Reuters, Vogue ou National Geographic.

Richard Benson, em “The Printed Picture”, resumiu bem a questão do valor das fotografias familiares:

“Imagens como estas eram feitas quase que totalmente com câmeras de rolo de filme, descendentes diretas da Kodak 1. As lentes tendiam a ser ruins, mas desde que as impressões eram quase sempre impressões da folha de contato — raramente eram ampliadas — a qualidade das imagens era passável. Porque as câmeras tinham um sistema fraco de ajuste de foco (quando tinham), geralmente o tema principal da foto ficava fora de foco, mas tal falha passava despercebida a menos que a imagem fosse ampliada. Apesar de suas desvantagens, os velhos álbuns de família resistem como um tesouro da Fotografia. Eles nos lembram que o meio tira muito do seu poder da riqueza do mundo que recorda”.

“Pictures like these were almost always made with roll-film cameras, direct descendants of the Kodak Number 1. The lenses tended to be pretty poor but since the prints were almost always contact prints — they were rarely enlarged — the image quality was passable. Because the cameras had poor systems for setting focus (if they had any at all), the main subject was usually out of focus, but this fault too was seldom noticeable unless the pictures were enlarged. Despite their drawbacks, old family albums remain treasure troves of photography. They bring home the fact that the medium draws much of its power from the richness of the world it records”.

O próprio MoMA, em 1951, promoveu uma exposição onde mostrava as “primeiras fotografias”, aquelas que tinham sido esquecidas, mas que compunham o começo da produção fotográfica no século 19 e ajudavam, portanto, a entender o momento contemporâneo da arte.

Feitas por pessoas sem ambições artísticas (ainda era um tempo antes da fotografia ganhar o status de arte), analisadas aos olhos mais modernos revelavam valores não só artísticos como históricos: elas faziam parte daquele meio recém criado, que assombrava e maravilhava a humanidade, e ajudavam a contar a sua própria história e função social — assim, também, a história do mundo. Aqueles sujeitos eram Fotógrafos, eles sabendo disso ou não.

O anúncio dessa exposição, “Forgotten Photographers”, explicava: “An exhibition of outstanding prints by unknown or unremembered American photographers (…)” (“Uma exposição de incríveis fotografias feitas por fotógrafos americanos desconhecidos ou esquecidos”).

Penso nestas fotos amadoras e anônimas, abandonadas ou perdidas, como imagens que devem ser valorizadas, como “Forgotten Photographers”: ainda que a qualidade técnica muitas vezes se revele baixa, elas são belas. Revelam mais sobre os homens, as famílias, a História e nós mesmos. //

IMAGEM 13 — Autor desconhecido/Coleção Particular
IMAGENS 14 e 15 — Autores desconhecidos/Coleção Particular

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