Coligay: 40 anos da torcida que coloriu as arquibancadas brasileiras

“… Nunca havia aparecido um grupo como aquele, que berrava o tempo todo, incentivava a equipe em todas as partidas, viajava para o interior e tinha confiança absoluta de que o time seria o campeão. Já no início do decagonal, ninguém mais era contra a Coligay.” Jornal Zero Hora, 02/10/1977.

guilherme estulano
6 min readJul 5, 2017

O ano é 1977, enquanto nas ruas vigorava a ditadura militar do então presidente Ernesto Geisel, uma revolução começava a ser feita nas arquibancadas de Porto Alegre.

Com seus membros perfilados e vestindo longas túnicas tricolores, naquele 10 de abril chegava ao Estádio Olímpico a Coligay, a primeira torcida organizada formada exclusivamente por homossexuais do Brasil.

Membros da Coligay durante a apresentação do goleiro uruguaio Walter Corbo

Idealizada e concebida por Volmar Santos, um empresário, cantor e bon-vivant da cena porto-alegrense, a torcida teve sua sede na boate que Volmar administrava, a Coliseu, na avenida João Pessoa.

A Coligay era de fácil identificação na cancha, seus integrantes eram reconhecidos pelos cânticos, roupas extravagantes e pela euforia que sempre levavam consigo nos dias de jogo.

No começo, ainda que encontrasse certa resistência do restante torcida, a Coligay com a sua espirituosidade e apoio incondicional, rapidamente conquistou não somente a simpatia da maioria dos gremistas, como também de sua direção. Um dos episódios determinantes para isso, foi a chamada “campanha do cimento”, uma campanha de arrecadação de fundos e materiais de construção para a finalização do anel superior do Estádio Olímpico (finalizado em 1980), da qual a Coligay participou fervorosamente promovendo festas no interior do estado e repassando o dinheiro para o Grêmio.

Com o passar do tempo, o fenômeno da torcida foi ficando cada vez maior e chegou o momento no qual a torcida contava com transporte próprio, um micro-ônibus que levava os torcedores para os jogos fora de casa e uma sala no estádio olímpico, onde eles guardavam os instrumentos mais pesados da torcida.

Ainda segundo o El País, Volmar pagava aulas de caratê para os chamados “coliboys”, não incentivando a pancadaria, e sim, para se defender de eventuais ataques homofóbicos. “A única vez que tivemos problema foi quando um cara atirou pedras em nossa direção. Mas rapidinho botamos o sujeito pra correr do estádio”, contou Volmar à reportagem do jornal.

Apesar da ruptura, a Coligay carrega até hoje a sua fama de pé quente, durante os seis anos que durou (1977–1983), viu o time em primeira instância quebrar a hegemonia colorada dentro do Rio Grande do Sul, essa que já durava oito temporadas, para em seu último ano, festejar a conquista mundial da equipe tricolor em cima do clube alemão Hamburger SV. Ao todo, a torcida viu o clube conquistar todos os títulos possíveis e se firmar como uma potência do futebol.

Dias atuais

A história da Coligay vem sendo cada vez mais resgatada pelos torcedores e pelo clube, recebendo créditos por ter sido um movimento de vanguarda e inclusivo em tempos nos quais isso não era permitido. Um dos principais responsáveis por isso é o jornalista e escritor Léo Gerchmann, autor do Coligay - Tricolor e de todas as cores (2014), livro que busca reavivar na memória gremista essa página na história do clube.

Entrevista com Léo Gerchmann.

De onde veio o teu fascínio pela Coligay e como surgiu a inspiração para escrever o livro?

“O fascínio pela Coligay resulta de dois aspectos essenciais da minha vida: a paixão pelo Grêmio e a certeza de que o respeito às diferenças é talvez o valor que nos torna mais humanos. Pontualmente, a vontade de escrever o livro teve como origem o dia em que meu filho mais velho (tenho umcasal, o menino de 15 e a menina de 10) chegou em casa chorando porque um coleguinha de colégio disse que o Grêmio era um clube elitista e segregacionista. Ali vi que o guri estava muito bem orientado, porque fiquei feliz de vê-lo se importar com isso. E também vi que havia a necessidade de eu contar a verdadeira história do meu clube, que é exatamente oposta à que se contava por aí. O Grêmio é, na essência, generoso e plural. A história da negritude gremista é incrível, e eu viria a escrever livro também sobre isso. Mas a Coligay e a forma como ela foi acolhida pelo clube vão além. Mostram que o Grêmio está bem acima da média quando falamos dessa maravilhosa característica humana que é o respeito às diferenças.”

Quanto ao apoio institucional, como foi a postura da direção gremista quando a Coligay foi formada?

“Em um primeiro momento, houve estranheza, mas em seguida o clube acolheu a Coligay oficialmente. Seus integrantes viajavam com as demais torcidas, ajudaram a conseguir o material de construção pro complemento do anel superior do Olímpico, que estava inacabado desde 1954. Mais que isso: a Coligay tinha espaço físico dentro do Olímpico pra guardar seus mantimentos mais pesados. O presidente na época era o atual patrono do clube, o Hélio Dourado. Ele se refere até hoje com muito carinho e gratidão à turma da Coligay, e a turma da Coligay vê nele uma pessoa especial, manifestando também carinho e gratidão.”

Como tu vê a contribuição da Coligay para a inclusão dentro do futebol, não somente à época como hoje em dia?

“A Coligay é, continuamente, exemplo a ser seguido. Percebo que a torcida do Grêmio vai cada vez se convencendo mais do tesouro que ela representa, da maravilhosa página que foi na história do nosso clube. E também percebo que cada vez mais os colorados ficam constrangidos de zoar conosco. A Coligay se impõe por si própria e ainda abre espaços inclusive para as mulheres. Nos anos 1970 e 1980, mulheres que fossem a um jogo de futebol eram chamadas de “putas” e “vadias” nas arquibancadas. Tenho certeza de que o advento da Coligay ajudou o mundo do futebol se tornar mais feminino e perder muitos dos seus ranços machistas.”

Atualmente tu vê alguma margem pra essa ação (formar uma torcida tão plural) ser reeditada?

“Apesar da violência generalizada que vemos nos estádios, acho que hoje é muito mais fácil uma torcida como a Coligay ocupar o seu espaço. Seria muito mais entendida e melhor recebida. Também teria muito mais gente aderindo a ela, héteros e homossexuais. A violência fascista que anda por aí? Bem, isso não tem a ver exclusivamente com homofobia. Aposto que a torcida do Grêmio protegeria sua maravilhosa Coligay. A imagem que faço na minha cabeça é até a de um cordão protetor. Seria fantástico. Detalhe: hoje, no Museu do Grêmio, tem o setor que aborda as torcidas e há uma bela homenagem à nossa gloriosa Coligay.”

Tu achas que a torcida gremista ainda trata esse assunto como tabu, ou o estigma vem sendo quebrado aos poucos? Gostaria de saber se isso teve algum reflexo na recepção ao teu livro.

“Desde o lançamento do livro, em maio de 2014, sinto que, sim, o tabu vai se derretendo progressivamente. O livro ajuda a si próprio e ajuda muito no combate à praga do preconceito.”

Contra o Deportes Iquique (no dia 11 de abril), a Tribuna 77, torcida organizada do Grêmio, levou uma faixa com referência ao aniversário da Coligay, o que tu pensas de ações como essas?

“Os movimentos do grupo Tribuna 77 são uma aragem no conservadorismo. Os temas que eles levam para o estádio, que incluem o combate à homofobia e ao racismo, são pertinente e importantíssimos.”

Reprodução: Ducker

Na partida entre Grêmio x Deportes Iquique, a torcida Tribuna 77 levou uma faixa homenageando a Coligay pelo seu aniversário, sobre isso, a torcida se posicionou:

A faixa em homenagem a Coligay, além de um grito contra a homofobia em tempos intolerantes como os de hoje em dia, promove também um resgate do nosso patrimônio histórico, cultural e sociopolítico de época. De luta e cultura na arquibancada, tolerância e respeito, pois a Coligay trazia consigo um movimento cultural por trás, com músicas, visual, bandas, ou seja, era um movimento mais plural do que podemos imaginar. Além de toda esta afronta ao regime de ditadura vigente na época, eram Gremistas abnegados ao clube, que muito contribuíram para a construção da parte superior do Olímpico, entre várias outras ações em prol do Grêmio, segundo as palavras do próprio Hélio Dourado. A Coligay, pra nós da 77, sempre foi uma grande influência, então estar quebrando estes mesmos paradigmas nos dias de hoje, é dar segmento a história plural e de vanguarda na torcida do Grêmio. De Bombardão, Salim Nigri, Lupicínio Rodrigues, Coligay, entre outros. Com engajamento sociopolítico de inclusão, tolerância e respeito, pilares da Tribuna 77.

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