Biopotência: se palmares não vive mais, faremos palmares de novo

Pâmela Guimarães-Silva
3 min readMay 13, 2020

A Lei Áurea, que aboliu oficialmente a escravidão no Brasil, foi assinada em 13 de maio de 1888. Diferentemente do que muitos acreditam, a data não é comemorada pelo movimento negro. A razão é simples: as pessoas escravizadas não foram inseridas na sociedade mediante a assinatura de tal lei, pelo contrário, começava ali um novo ciclo de desumanização e de marginalização.

Iniciava-se uma nova forma de interação entre brancos e negros que, recentemente, Muniz Sodré (2018) definiu como duplo vínculo: uma relação que carrega afeição e rejeição, ao mesmo tempo. Isto é, a aceitação do fim da escravidão, mas a constituição de novas relações que mostram certa saudade de tal sistema. O resultado é a carteira assinada da empregada doméstica, mas o tratamento desumanizador; a difusão de imagens estereotipadas da cidadania negra na mídia entre outras ações. O duplo vínculo está exatamente na constituição de relações legais, mas que manifestam a desrespeitosa saudade da escravidão (SODRÉ, 2018, p.14).

Em sua maioria, comunicólogos vão defender, entretanto, que nenhuma interação ocorre apenas em uma direção. É preciso que exista interlocução, experiências, trocas de sentidos, atualizações de signos, resistência. Na relação entre negros e brancos, pós 13 de maio de 1888, não é diferente. Se até tal data os quilombos eram espaços para se abrigar e fugir de um sistema destruidor, após a abolição os quilombos se tornam não apenas espaços físicos, mas um verbo, aquilombar-se, que denota duas questões: 1) os negros sabiam e sabem do saudosismo branco pela escravidão; 2) os negros sabem que para resistir e avançar, precisam dos seus.

Aquilombar-se, passa a ser, assim, sociabilidade, construção de um mundo em que os sentidos e significados são compartilhados; autocuidado, rememoração e humanização da história do negro, produção de laços de resistência. A esse tipo de engajamento social, alguns autores contemporâneos chamam de biopotência. Na biopotência a vida não é algo puramente biológico, mas “inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no contexto de produção material e imaterial contemporânea […]. Vida significa inteligência, afeto, cooperação, desejo” (PELBART, 2002, n.p).

Peter Pál Pelbart (2002) vai dizer que um exemplo de biopotência é a crescente tendência, por parte dos sujeitos marginalizados, em “usar a própria vida, na sua precariedade de subsistência, como um vetor de autovalorização” (PELBART, 2002, n.p). Isto é, ao invés de serem apenas objetos de uma vampirização, esses grupos transformam a própria vida em algo expansivo. Eles passam a construir “territórios subjetivos a partir das próprias linhas de escape a que são impelidos, ou dos territórios de miséria a que foram relegados” (PELBART, 2002, n.p).

É biopotência, é aquilombar-se, é reconstruir Palmares: mulheres negras ensinando finanças para pessoas de baixa renda ou a construir suas próprias casas e fazer suas próprias reformas; intelectuais negros lançando coleções, fazendo traduções de obras que combatem o epistemicídio e contando histórias com personagens negros representados em todas as suas complexidades e camadas; grupos de estudantes marginalizados criando formas para que seus pares também acessem o ensino superior.

Assim, 13 de maio não é dia de agradecer, posto que o ato não concretizou o fato. É dia de afirmar que se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo! Não há saudade que fará o povo preto se contentar em não integrar a sociedade com todo o seu potencial.

Referências

PELBART, Peter Pàl. Biopolítica e biopotência no coração do império. 2002. Disponível em: <https://www.multitudes.net/> Acesso em 20 de fev de 2020.

SODRÉ, Muniz. Uma lógica perversa de lugar. Rio de Janeiro: Eco-Pós, 2018. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/view/22524/12624. Acesso em 01 abr. 2019.

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Pâmela Guimarães-Silva

Mestra e doutoranda em Comunicação Social (UFMG)| Bacharel em Publicidade |Co-coord do grupo de estudos Orientação Afirmativa|Assessora na Sub DH (SEDESE/MG)