Arquivo/Jornal Tribuna do Paraná

Caio Júnior, obrigado pela minha última alegria plena na arquibancada

Guilherme Moreira ⚽️
8 min readNov 30, 2016

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Fazia tempo que eu não aparecia aqui. A tragédia com o avião da Chapecoense vitimou aquele que foi o responsável por minha última alegria plena no futebol. Na arquibancada, da qual sinto falta. Caio Júnior não está mais entre nós. E aqui conto a experiência desse dia triste como jornalista e do meu último dia feliz como torcedor.

Em uma madrugada que parecia ser mais uma comum, fazendo café 1 hora da matina e escolhendo um filme para assistir já que não durmo antes das 2h nem por decreto, me deitei no sofá e comecei a ver “Olhos da Justiça”. Entre uma pausa e outra, viciado que sou, olhava o Twitter apenas por olhar como sempre faço.

Na segunda ou terceira vez que fiz isso, me deparei com alguns tuítes por volta das 3h de que algo havia acontecido com o voo do time catarinense, que jogaria nesta quarta-feira diante do Atlético Nacional, da Colômbia, pelo primeiro jogo da final da Sul-Americana. Não acreditava. E aí começou a minha pior cobertura jornalística.

Por instinto da veia da profissão ou não, porque agora não vejo muito claro tudo que aconteceu ainda, mesmo sem a obrigação de ter que cobrir um time de Santa Catarina, me vi na responsabilidade de ir atrás de mais informações. Colegas brasileiros que lá estavam ainda dormiam e praticamente só quem ficou no Brasil parecia online. Lembrei da Rádio Caracol, de Medellín, e sintonizei na web para acompanhar.

Achei que teria mais dificuldades, mas conseguia entender bem o que falavam. Às vezes, a fala acelerada me confundia, perdia alguma coisa. Mesmo assim, começou a clarear e fui divulgando na rede social. Falta de combustível, falha elétrica, queda confirmada. Um pesadelo.

A dificuldade dos colombianos para chegar no local ajudar era enorme. Só carro 4x4 conseguia alcançar as montanhas. Jornalistas entravam ao vivo ofegantes tentando se aproximar. Era quase 5h quando ouvi o pior e tive a dimensão de que a possibilidade de muitos sobreviventes era ilusória.

Obrigado, Charles Miller. Obrigado, Caio Júnior, por meus últimos dias felizes com o futebol.

“Não tenho palavras para descrever o que estou vendo”. Assim entrou no ar o relato do repórter da rádio quando finalmente chegou ao local e viu a cena do acidente. Me deu um ruim, tuitei e o desastre foi questão de tempo. Era rezar e aguardar as autoridades divulgarem os sobreviventes e mortos. Só três jogadores sobreviveram. Seis sobreviventes ao todo. 71 morreram. De consolo fica os elogios diversos pela cobertura até aí, com anúncio das mortes. Depois, travei. Não consegui produzir mais nada.

Entre os mortos, um é especial para mim. Não era meu amigo, não tinha contato a não ser por ligações para entrevistá-lo ou algum encontro casual nessas coberturas de jogos da vida. Só que ele me marcou pela primeira vez lá em 1997. Eu tinha 10 anos, o Paraná era tetracampeão paranaense e parecia que não daria para buscar o penta. Num jogo chave, o time empatava com o Matsubara por 0 a 0 até os acréscimos. Lateral jogado na área, algum desvio e Caio Júnior completa para as redes. Mais tarde, já jornalista, descobri que o colega Manoel Fernandes, o Maneco, cobria o jogo, saiu correndo buscar a bola no desespero pelo sumiço tradicional dos gandulinhas e entregou para o arremesso. Saiu o gol. A história ficou ainda mais legal.

Caio Júnior levantando a taça do pentacampeonato, na Vila Olímpica. Marcou dois gols na final.

A continuação disso foi o pentacampeonato. O Tricolor ganhou do Coritiba por 3 a 0 no jogo seguinte e carimbou a mão aberta de títulos estaduais com outro 3 a 0 diante do União Bandeirantes, na Vila Olímpica. Caio Júnior fez dois. Ricardinho fez outro. O camisa 9 jogava com uma elegância enorme, cabeça alta e uma finalização aguçada. Ele flutuava pela linhas, saía da área abrindo espaço e ainda sabia fazer gols. Era um falso 9 moderno do futebol atual lá no fim da década de 90. E não falo isso por ele ter morrido e só para deixar o texto melhor. Era a pura verdade.

Em 2002, outro fato que me marcou e fui lembrar só ao fim do dia. Lembrava de dois só. O time paranaense era o lanterna da Série A e Caio Jr. assumiu faltando 10 rodadas para o fim. O rebaixamento era questão de tempo, parecia. Parecia. Na última rodada, contra o Figueirense, fiz uma das minhas primeiras viagens com a organizada e parti, com 15 anos, cheio de esperança pela permanência depois de uma recuperação inacreditável. Final do primeiro tempo e perdendo de 2 a 0. Sentei na arquibancada do Orlando Scarpelli e ali chorei, orei por um milagre — como mostra a foto abaixo. O milagre veio. Maurílio marcou duas vezes no segundo tempo, o Vitória conseguiu fazer o serviço dele contra o Palmeiras no final da partida lá no Barradão, rebaixou o gigante paulista e nos livramos. “Ô, ô, ô, segunda é o caralho”. Que alegria, que alívio. Esse grito, ninguém sabia naquele momento, viria a ser a música de quatro anos depois. Adaptada.

Eu, no canto esquerdo da imagem, sentado chorando e rezando, no Orlando Scarpelli. (Arquivo Pessoal)

Veio 2006. Um ano magistral. O Paraná deu fim a um jejum de nove anos sem títulos e conquistou o caneco vencendo a Adap por 3 a 0 fora de casa e empatando por 1 a 1 no saudoso Pinheirão. Já tinha sido lindo volta a gritar “é campeão”, agora adolescente. Mas aí vem o cara de 97 de novo. O técnico no Paranaense era Barbieri. Caio Júnior chegou para a Série A. Que campanha. 60 pontos, 18 vitórias, seis empates e 14 derrotas, aproveitamento de 52,6%.

No primeiro turno, o Paraná era o vice-líder e disputou o título simbólico contra o líder São Paulo. Jogaço. 3x2 para a equipe paulista, em uma partida que o clube paranaense foi prejudicado pela arbitragem. Até ali, eu confesso que sonhava com a inédita taça. Não deixariam. Lembro da declaração do goleiro e hoje técnico, Rogério Ceni, falando após confirmar o título brasileiro, que aquele duelo foi o mais difícil da campanha. Foi mesmo.

Essa derrota fez o time oscilar, cair de rendimento e retomar as vitórias na reta final. Triunfos marcantes contra Goiás e Internacional na Vila embalaram de vez. O jogo decisivo para a vaga, na última rodada do segundo turno, foi contra o já campeão São Paulo, que veio com um time misto que seria titular em muitos clubes. Um sol para cada um na Vila Capanema, estádio azul, vermelho e branco, dia maravilhoso e um empate nervoso por 0 a 0. Tínhamos esse direito por ter vencido o São Caetano na rodada anterior por 2 a 0 no Anacleto Campanella. Eu também estava lá. A torcida era contra o Vasco, que não superou o Figueirense fora de casa. No ouvido, a rádio anunciava uma bola na trave dos vascaínos nos acréscimos. Era nossa mesmo. Só podia ser.

Marcos Walczak (preparador físico), Flávio, Emerson, Edmílson, Beto e Gustavo (em pé); Edinho, Ângelo, Pierre, Batista, Maicossuel e Leonardo (agachados). São Paulo 3x2 Paraná. (Gazeta Press).

“Ô, ô, ô, Libertadores” e “Ô, ô, ô, melhor do Estado”. Aquele grito de 2002 foi alterado para essas versões. Como berrei com orgulho. Que alegria o Caio Júnior e atletas me deram. Mal sabia que seria meu último ano feliz ali, na arquibancada e com meus amigos e pai. Bêbado igual um gambá e abraçando quem aparecia na frente. Que ano foi 2006. Hoje vejo que lá foi o ápice da minha felicidade como torcedor. Acho que nunca vou mais sentir isso como senti durante todo esse ano. Seja pela profissão, seja pelo clube que está longe das glórias. Espero estar errado. Preciso sentir essa felicidade de novo.

O resto, todo mundo já sabe. A participação na Liberta foi digna, caindo nas oitavas de final para o Libertad-PAR e dava para ter passado, apesar da diretoria ter cagado com a montagem do elenco. Depois conseguiu perder o bicampeonato estadual para o Paranavaí em casa e, após liderar a Série A no início, caiu para a Série B em 2007. E está lá até hoje.

Em 2008, a convite do meu amigo e hoje sócio, Daniel Piva, apresentado por outro amigo, Caio Derosso, em um churrasco de aniversário dele, comecei a escrever textos justamente cobrindo o Tricolor na Série B, em um site de torcedor do Clévis Massola e Robson Martins, apesar de estar com a faculdade trancada por falta de verba. Ainda ia em um jogo ou outro como torcedor, mas ali a veia jornalística já começava a me dominar. Não parei mais e troquei a bancada de concreto pela bancada com um laptop, bloco de nota, rádio no ouvido, gravador e muita vontade de contar história. Não piso num estádio para torcer há mais de sete anos.

Na Vila, em 2013, “longe” da bancada de concreto. (Arquivo Pessoal).

Amigos próximos sabem, outros desconfiam e, felizmente, a maioria especula os times errados. Acho que é um sinal do trabalho bem feito. Hoje todos terão a certeza do que fui. E sou ainda, porque a gente deixa de lado pela profissão, mas o coração não. Posso me arrepender de estar escrevendo tudo isso aqui. Não sei. Hoje, sinceramente, não me importo. É o que me deu vontade de fazer, desabafar, num dia tão sofrido. A arquibancada forma caráter e o jornalista que sou. A consequência virá depois com os malas virtuais.

Caio Júnior me fez ter a última alegria na arquibancada, em 2006. E me fez ter a maior tristeza dentro do futebol, dez anos depois. Nenhuma derrota e poderia citar inúmeras me doeu tanto como esse acidente trágico. Talvez o 7x1. As outras entristeciam, me deixavam puto, bipolar com ex-namoradas, amigos e família, mas hoje só sinto um vazio. O futebol mexe comigo de um jeito que até me assusta. E quero que continue me assustando. Obrigado, Charles Miller. Obrigado, Caio Júnior, por meus últimos dias felizes com o futebol.

.Obs: Felizmente, em um desses congressos da vida, no centro de Curitiba, estava ali meio sonolento, olhei pro lado e umas quatro fileiras acima notei o Caio Júnior, sozinho, fazendo anotações e acompanhando. Acho que era algum debate sobre direito esportivo, que fui com amigos da Unibrasil. Após o fim, me encontrei com ele no salão e agradeci por 1997 e 2006. Esqueci de 2002. Tentei ligar algumas vezes para ele e ver se estava vivo. Não sei se lembraria de falar isso em meio à loucura. Espero que agora, lá do céu, ele saiba.

Abaixo, o último momento de felicidade: Paraná 0x0 São Paulo. “Ô, ô, ô, LIBERTADORES!”:

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Guilherme Moreira ⚽️

Jornalista | Sócio da PGTM Comunicação | Repórter GloboEsporte.com | Passagens por Lance!, Terra, Tribuna do PR e Gazeta do Povo| Respeita minha história