Sobre perder
Ouvi muito nas últimas semanas o clichê: “você perdeu ela, mas pelo menos pôde viver com ela durante esse tempo, seja grato” e outras frases do tipo. Nada de errado com isso. Sei que é uma tentativa de consolar o inconsolável, de dizer algo em um espaço vazio, em que nada do que é dito importa. Ainda assim, cada vez que ouvi ou li pessoas me dizendo isso, senti raiva. É muito fácil querer colocar a gratidão sobre a dor quando a dor não é sua. Eu preciso sentir minha dor, preciso sentir essa falta antes de sentir que ganhei algo. E tenho sentido muito.
Falei a alguns amigos, e ao meu terapeuta, que a cada dia choro um pouco menos, ainda que tudo continue oscilante e estranho. Cada dia esqueço um pouco mais, ou recalco, talvez, a inexistência de algo que existia. Mas é nos momentos em que estou em casa e faço movimentos cotidianos, como abrir o armário do quarto, ou ir para a sala de manhã, que me vem um frio na espinha. O arrepio instantâneo já não é mais a dor da falta, mas a acepção, o lembrete que é como um tapa no rosto, de que ela não existe mais. Canela morreu. É nos 7 passos que separam o portão do prédio e o primeiro ralo do estacionamento, de onde começo a avistar a janela de meu apartamento, que minha memória me lembra, rápida como uma lança, que Canela não existe mais. É nesses momentos banais, corriqueiros, que a solidão me assola e o mundo parece cruel demais para ser real.
Sempre gostei do tema do luto. Já li livros e livros de autores e autoras que admiro muito e que refletem sobre a morte de pessoas próximas, memórias e a falta, o vazio que a morte deixa. Em um dos meus preferidos, As pequenas chances, Natalia Timerman reflete sobre a morte de seu pai, em uma das melhores formas de autoficção que já encontrei. Em um dado momento do livro ela escreve: “A morte é abstrata mas dói em detalhes concretos, e essas duas instâncias, a concreta e a abstrata, nunca se encontram, daí a estranheza”. O meu desconforto constante com a falta da Canela se dá exatamente nesse vão, entre o abstrato e o concreto. A ideia de que aquele ser que me acompanhou por tanto tempo simplesmente não vê mais nada, nem seu corpo existe mais, me parece distante. É como se ela ainda estivesse escondida em algum lugar, esperando que eu a encontre. Mas essa imaginação idílica, na qual minha gatinha está me aguardando, me vem apenas como a constatação de que tem uma peça faltando no espaço em que eu habito. Ler sobre o luto é muito mais prazeroso do que senti-lo.
A ausência causada pela morte se torna uma presença insuportável. É como uma goteira leve no teto da sala. De início eu coloco um balde que armazene as gotas de água e me distraia da possibilidade iminente da inundação. Fico até contente com a existência dessa ausência, pois tenho medo e culpa da mera ideia de esquecê-la. Decido apoiar a continuidade da goteira na sala. Mas com o passar dos dias, o aumento do fluxo de água, a troca incessante de baldes para que a minha casa não alague, fico cansado. É um trabalho duplo esse, o de não se permitir esquecer, deixar no passado, e querer seguir para o futuro, para o “novo normal”, como uma amiga querida me disse quando me consolava.
É nesse cansaço que decido me deixar inundar. Nadar nas águas do luto. Aprendo que deixar a casa alagar é a única forma de, quem sabe um dia, ela secar. Enquanto ela não seca, redescubro a vida na água, em novas formas de viver.
Minha única conclusão até este momento do luto é a de que viver é muito mais sobre perder do que sobre ganhar. Imagino meu ser como um espaço em expansão contínua. Continua se abrindo, sempre, e cada novo espaço é preenchido por relações, afetos, amores, artes, produções e admirações. Ou seja, ganho, sempre ganho algo novo, sou o tempo todo atravessado e preenchido. Mas tudo o que morre, some ou acaba, deixa seu vazio. Cada espaço em meu peito é preenchido apenas uma única vez. Não existe substituição, pois tudo é único. Me parece que quanto mais sou preenchido, mais e mais vazios se abrem. Canela deixou um vazio gigantesco, do mesmo tamanho do espaço que ocupou. Talvez more aqui a dor e a delícia de ser humano.