Em 1991, uma matéria na revista Contigo fazia uma descrição detalhada dos primeiros capítulos da nova novela das oito da Globo, O Dono do Mundo. Na página inicial, uma foto de Malu Mader aos beijos com Antônio Fagundes com o texto “Ela acredita no amor. Ele só pensa no poder”. Três anos após a estreia do grande sucesso Vale Tudo, Gilberto Braga retornou ao horário nobre com a ousada proposta de falar sobre desigualdade social, machismo, violência urbana e relações de poder, mas acabou levando ao ar uma obra para a qual o público torceu o nariz, com uma especial aversão à mocinha da história. Muito tempo após sua primeira exibição, em junho de 2024, o Globoplay disponibilizou a obra e, como um grande admirador dos trabalhos do autor, decidi me aventurar nos 198 capítulos da trama, desprendido de qualquer pré-julgamento. Escrevo este texto motivado pela escassez de análises da obra na internet, que me fizeram falta na busca por outros pontos de vista, e, já adiantando um pouco de minha opinião, pela riqueza da trama. O que se segue é puramente a maneira como analisei a trama, e estou obviamente aberto ao debate e disposto a conhecer outros pontos de vista. Aproveito também para avisar que o texto terá spoilers, então, caso não queira saber de nenhum acontecimento, aconselho que interrompa a leitura por aqui.
As opiniões sobre O Dono do Mundo são divergentes e ela é considerada por alguns como uma obra machista. Assistindo, consegui perceber que o autor intencionava elaborar uma crítica ao machismo por meio da representação do cotidiano dos personagens e mostrando, na prática, como o machismo funciona. Era algo que ele ensaiava desde Dancin’ Days (1978) e conseguiu trazer. Realista, a representação de comportamentos condenáveis submetia certas situações ao julgamento do público. Buscando uma equivalência, acredito que seja algo próximo de como o preconceito racial foi retratado em Da Cor do Pecado (2004, João Emanuel Carneiro), com a vilã falando os maiores absurdos sobre a mocinha da maneira menos polida possível. Da mesma maneira, o texto de Gilberto Braga é violento e retrata fielmente como funciona um homem machista e onde ele está posicionado na sociedade, além de mostrar como mulheres estão vulneráveis, sempre de uma forma chocante e surpreendente. Ao longo da obra, as personagens femininas sofrem críticas, têm suas palavras desacreditadas e, inseridas em uma sociedade majoritariamente patriarcal, se invalidam constantemente, mesmo sem perceber. O acontecimento que desencadeia toda a discussão envolve um homem muito rico, na faixa dos quarenta anos, e uma moça pobre e mais jovem, na faixa dos vinte.
A aposta de Felipe
O dono do mundo citado no título é Felipe Barreto (Antônio Fagundes), um cirurgião plástico renomado. Trata-se de um homem que se casou por conveniência com Stella (Glória Pires), uma mulher mais nova e herdeira de uma fortuna. Desde o primeiro capítulo, Felipe é retratado como um marido infiel que objetifica as mulheres que passam por sua clínica, aproveitando-se de sua posição de poder para conquistá-las. Do outro lado da história está Márcia (Malu Mader), uma professora doce que trabalha cuidando de crianças em uma creche e está noiva de Walter (Tadeu Aguiar), funcionário da clínica de Felipe na área de computação.
O pontapé inicial da história se dá quando Felipe conhece Márcia e descobre que ela irá se casar ainda virgem. Como todo homem machista, Felipe enxerga a virgindade como uma espécie de “artigo de luxo” e aposta com o melhor amigo, Júlio (Daniel Dantas), que consegue tirar a virgindade de Márcia antes do próprio noivo. Para atingir seu objetivo, Felipe faz uma proposta irrecusável aos noivos no dia do casamento: oferece uma lua de mel no Canadá, com tudo pago, sob o pretexto de que também precisará ir até lá apresentar uma palestra. Aqui, o autor evidencia mais uma vez como Felipe usa o dinheiro e sua posição de poder para chegar onde quer, ao oferecer uma viagem internacional e dispensar o seu subordinado do serviço. Além disso, cria uma série de barreiras para que Stella não vá à viagem e para que Márcia e Walter não consigam ficar sozinhos.
Enquanto mantém Walter afastado, Felipe mente para Márcia de uma maneira quase patológica, dizendo que Stella tem problemas psicológicos que impedem a separação, que está encantado por ela… E Márcia, muito carente e decepcionada com a pouca atenção que Walter lhe dá após o casamento, se deixa levar pelas mentiras de Felipe e se apaixona por ele.
Márcia Nogueira
Na época, muitos que viram a novela não conseguiram entender como Márcia, sendo uma mulher suburbana (pressupondo com isso que ela tenha malandragem) e com formação superior, foi tão facilmente enganada por Felipe. E devo confessar que em um primeiro momento eu me perguntei o mesmo, mas depois, conversando com amigos, concluí que não se trata de uma falha de enredo e nem de uma incoerência.
Desde o começo, vale prestar atenção na construção do contexto: embora seja uma moça jovem, Márcia não se vê como uma mulher atraente e está há quatro anos com um homem de valores ultrapassados, que não acha certo se relacionar antes do casamento. Como contraponto, o autor apresenta a amiga, Taís (Letícia Sabatella), que acha a conexão sexual importante em um relacionamento, além de afirmar — em cena do primeiro capítulo — que pensa em sexo desde os sete ou oito anos. Taís é um reflexo das moças suburbanas que iniciam a vida sexual muito cedo, sendo vista como depravada pela amiga, que afirma nunca ter olhado para outro homem além de Walter.
Tudo indica que, mesmo tendo estudado, Márcia não conhece outro mundo além do seu e não teve a oportunidade de viver experiências importantes para o autoconhecimento. E, embora Walter não seja retratado como uma figura nociva, representa um futuro triste para Márcia, que, mesmo não concordando completamente com as convicções do noivo, se anula em troca de um futuro cômodo e seguro que não lhe garante felicidade. Diante de tudo isso, Márcia é surpreendida no Canadá por um falso Felipe, que não parece ter tantas amarras e concorda com a sua ideia do que é paixão, além de oferecer a atenção e afeto que Walter está impossibilitado de oferecer. Pela primeira vez, a mocinha se vê como uma mulher atraente e que é amada como merece. Será mesmo que, em seu lugar, o espectador não se renderia aos encantos de Felipe?
Traíra ou enganada?
A rejeição do público a Márcia parte do momento em que ela, fragilizada e confusa em relação aos seus sentimentos, bate à porta de Felipe, que já havia renunciado à aposta. Para o público de 1991, foi ultrajante ver uma personagem que é infiel ao seu marido e procura o vilão para se entregar. Mais que isso: se firmou a ideia de que Felipe, ao ser procurado por Márcia, agiu como qualquer homem agiria e se relacionou. Todo o peso do erro recai apenas sobre a mulher, que, minutos antes de procurar pelo vilão, ligou para o marido afirmando precisar dele naquele momento e foi ignorada.
Todas as mentiras de Felipe foram instantaneamente perdoadas pelo público, que não entendeu Márcia como uma mulher apaixonada e que sofreu uma violência psicológica por parte do vilão, mas sim como uma pessoa pérfida que não pensou duas vezes antes de se render a um homem mais rico e poderoso. Involuntariamente, Gilberto Braga consegue mostrar como funciona o machismo por meio de seu próprio público, que não consegue enxergar Márcia como a maior vítima da situação.
A coroa de coitado acaba indo para a cabeça de Walter, que sofre um acidente e acaba falecendo quando a esposa, tomada pelo remorso, lhe confessa o que aconteceu. Com a morte, o texto deixa uma dúvida muito inteligente: Walter sofreu mesmo um acidente ou se suicidou, já que, ao se aproximar de um barranco, não reduziu a velocidade do carro? A segunda hipótese (e a mais provável) me traz a impressão de que novamente o autor retrata as mulheres como figuras mais fortes que os homens, já que, mesmo diante de toda a situação, Márcia não entrega os pontos, enquanto Walter não suportou continuar vivendo na primeira decepção que teve.
Depois do Canadá
O texto sempre enfatiza como Márcia e Felipe são opostos, já que os dois se afundam em mentiras quando voltam ao Brasil. Ele, que se afastou ainda no Canadá, continua mentindo com a naturalidade de sempre para Stella. Já Márcia oculta da família os fatos, prevendo que será condenada caso confesse, mas o faz com muita dor, corroída pelo remorso. Ainda assim, ela não percebe que foi vítima de uma série de mentiras, nem quando é evitada ao máximo por Felipe, em quem acredita — ou quer acreditar, como qualquer pessoa apaixonada que se nega a perceber características negativas em quem ama. O maior problema surge quando Márcia descobre que está grávida e, ao conseguir encontrar Felipe, tem a grande decepção: ele confessa sobre a aposta e dá um cheque para que ela realize um aborto, da maneira mais impiedosa possível.
Agora que está consciente, Márcia tenta procurar Stella para contar o que aconteceu, mas acaba encontrando Constância (Nathália Timberg), a mãe de Felipe, que promete promover o encontro entre as duas. O azar de Márcia é que Constância é tão elitista e machista quanto o filho, sendo uma das responsáveis por colocá-lo na posição de dono do mundo que ocupa hoje, então ela ajuda o filho a manipular Stella antes que Márcia possa procurá-la. Com tudo armado, o encontro acontece, mas Stella é hostil porque a caveira de Márcia já está feita.
Com isso, Felipe retorna à sua confortável vida de sempre enquanto Márcia passa por situações terríveis: o pai de Walter morre atingido por uma bala perdida e ela acaba sofrendo um aborto espontâneo ao ser atacada pelo sogro, que descobriu tudo. Revoltada, Márcia vai atrás de Felipe em seu trabalho, corta o rosto dele com um bisturi e jura que irá se vingar e fazê-lo lamber o chão que ela pisa. Este é o momento em que a novela tem uma virada, porque o autor começa a trabalhar arduamente para o público conseguir se afeiçoar a Márcia de alguma forma e, ao mesmo tempo, retrata uma obsessão que ela desenvolve por Felipe.
A mocinha vingativa
Com a prisão que acontece após o episódio do bisturi, Márcia acaba precisando contar para a família sobre o que aconteceu no Canadá. A tia, Nanci (Ana Rosa), já sabia e prestava o seu apoio à sobrinha, mas o tio Darci (Antônio Grassi) age da maneira mais intolerante possível e a expulsa de casa. Mesmo com convicções diferentes das de Taís e tendo seguido a “cartilha” do tio por muito tempo, Márcia cometeu um deslize e teve o mesmo fim que a amiga, que, ao ser descoberta como uma profissional do sexo, também foi expulsa de casa pelo pai. Novamente, a novela deixa claro que as circunstâncias não importam: na primeira falha, a mulher será condenada e não terá direito ao perdão imediato que os homens têm.
A crítica ainda se estende ao campo da desigualdade social, já que em todos os momentos os personagens ricos parecem ter um tipo de passe livre para pintar e bordar na vida dos pobres sem sofrer nenhum tipo de consequência. Ser expulsa de casa é o pontapé para que Márcia inicie sua vingança contra Felipe, mas ela se sente impotente por saber que, sem dinheiro, não tem nenhuma chance de agir contra o seu algoz. Para conseguir meios, ela se aproxima de Olga Portela (Fernanda Montenegro), uma cafetina de luxo que é rival de Constância e posteriormente revelada como a mãe biológica de Felipe.
Convém falar sobre a maneira como o autor retrata a cafetinagem: para todos os efeitos, Olga não se aproveita das mulheres e causa sofrimento, mas sim une o útil ao agradável, apresentando moças a homens interessados e pouco charmosos. Inicialmente, pensei que haveria uma grande união entre Márcia e Olga, mas o autor foge do caminho mais óbvio e faz com que as duas não se deem tão bem, porque Olga não quer que o filho seja prejudicado. A propósito, em meio a tantas mulheres frágeis e dominadas pelos homens, Olga se destaca por ser uma mulher na terceira idade, solteira e que conseguiu, sozinha, penetrar na elite e fortificar laços ali.
O grande aliado de Márcia
Um dos amigos de Olga é Herculano Maciel (Stenio Garcia), pai de Stella, que detesta o genro. Para a sorte de Márcia, ele fica absolutamente encantado por ela, que não tarda a contar tudo o que aconteceu. Herculano fica ainda mais revoltado ao saber o que Felipe fez e se une a Márcia para destruí-lo. Daí em diante, o autor começou a desenvolver uma das relações mais bonitas da novela, na minha opinião, porque Herculano realmente se encanta por Márcia e faz tudo por ela.
É bom ressaltar que, embora Herculano sirva como um aliado para Márcia, ele não é santificado pelo roteiro e aparece dentro de seu núcleo familiar como um homem machista e inflexível, que acha inaceitável a filha deixar de cuidar da casa para se dedicar à vida profissional. O autor acerta ao fazer esta diferenciação e identificar que há momentos em que o personagem erra e acerta, sem pender para uma romantização de seu machismo. Me parece também que, apesar de não demonstrar nenhum pesar por isso, Herculano sabe que não é um bom pai e vislumbra nas fragilidades de Márcia uma oportunidade de se redimir. Esta é a parte mais bonita de tudo: um ajuda o outro nos objetivos que desejam atingir naquele momento, mesmo Márcia fazendo isso de maneira inconsciente.
Ver uma Márcia fortificada e que não mede esforços para destruir a vida de Felipe é revigorante. Completamente oposta à moça confusa e pura do início, Márcia mente, cria situações, se aproxima de outra moça enganada por Felipe para tentar armar um flagra… E, após passar por alguns percalços, consegue. Gradualmente, Felipe vai perdendo o que tem, passando pelo casamento e terminando em um erro clínico exposto em rede nacional.
A destruição do canalha
A conclusão da vingança de Márcia acontece relativamente cedo, por volta do capítulo 70, com um dos plots mais criativos que já vi em novelas: graças a Márcia, Felipe é procurado pelos comparsas de Ladislau (Tuca Andrada), bandido que cresceu no subúrbio junto a ela e Taís, para realizar uma operação para modificar o rosto do traficante numa clínica de aborto clandestino e em condições deploráveis. Felipe acaba sendo convencido pelo valor: 200 mil dólares. Enquanto ele opera Ladislau, Márcia liga para a polícia e denuncia o que está acontecendo, fazendo com que Felipe seja preso em flagrante e perca a sua licença médica, mesmo argumentando que foi coagido e estava sob a mira de uma arma. Toda a sequência da operação é brilhantemente dirigida por Dennis Carvalho, que aproveita muito bem o tom de suspense oferecido pelo texto.
A partir daqui, acompanhamos as tentativas de Felipe se reerguer, escrevendo um livro técnico recusado pelas editoras, interessadas somente na polêmica na qual ele se envolveu, agora que ele já não tem nenhuma credibilidade. Mas, sempre orgulhoso e narcisista, ele se nega a escrever um livro em que confessa publicamente que errou e acaba precisando se submeter a um emprego muito inferior às suas capacidades. Posso dizer que avalio muito bem a vingança de Márcia e acredito que a trama conseguiu mantê-la atrativa na maior parte do tempo, fugindo dos dois maiores riscos que abatem uma mocinha vingativa: fazer com que ela cometa falhas e não consiga se vingar (algo que me deu nos nervos em Todas as Flores) ou escrever uma vingança lenta e pouco satisfatória. Aqui, o ritmo foi agradável e eu tive prazer em ver Márcia depenando Felipe pouco a pouco.
E agora, que ela já se vingou?
O fim da relação com Herculano possibilita o início de um relacionamento entre Márcia e Otávio (Paulo Gorgulho), um médico que entrou na trama por volta do capítulo 50. Pode ser que o romance dos dois seja o “ideal”, porque a aparição de um homem mais moderno e aberto contrapõe Walter e Felipe, além de tornar Márcia mais livre. É maravilhoso vê-la enfrentando o tio e afirmando que transa mesmo com Otávio e não precisa ter vergonha de falar sobre isso, por exemplo. Em uma novela convencional, este seria um bom final, com o vilão derrotado e a mocinha feliz ao lado de um amor saudável, mas o autor faz novos arranjos para se aprofundar ainda mais nos conflitos internos da personagem.
Começamos a notar, então, que Márcia perdeu o único objetivo de vida, que era arruinar Felipe, e não consegue se desvencilhar dele. A verdade é que, de certa forma, Márcia também perdeu o que tinha e não levou em consideração que, quando a vida de Felipe estivesse detonada, o seu futuro não reservava nada de promissor. Se aproveitando da nova fase da novela, o autor aplica um golpe genial em seu público ao armar uma redenção de Felipe, que agora surge pobre, se adaptando a novos costumes e arrependido de seus atos. Foi difícil não me lembrar de Aguinaldo Silva redimindo Marconi Ferraço em Duas Caras (2007), depois que este deu um golpe em uma jovem ingênua, e construindo um romance entre os dois. A diferença é que naquela ocasião a redenção era verdadeira, enquanto aqui Felipe não se redime de fato, mas finge que se redimiu.
O que me faz considerar a falsa regeneração de Felipe como uma genialidade de Gilberto Braga é que isso foi uma vingança do autor contra o seu público. Desde o começo, o espectador da novela se colocou na posição de alguém astuto, que jamais seria enganado por Felipe caso estivesse no lugar de Márcia, além de pressupor que a mocinha deveria ter tido a mesma astúcia. A construção do novo Felipe é cautelosa e leva tempo. Primeiro, uma fala mais afável. Depois, começa a discordar das ideias de Constância — com quem, outrora, esteve de conchavo — e repreende Arlindo (Otávio Müller) quando este objetifica mulheres na rua. Quando volta a se envolver com Stella e ela engravida, se propõe a assumir a paternidade da criança e, para completar, se reaproxima de Márcia. Sempre atitudes que não remetem em nada à figura violenta e asquerosa retratada no início, e a maneira como Antônio Fagundes alterou a postura de Felipe me faz lembrar de Patrícia Pillar interpretando Flora na primeira fase de A Favorita (2008).
Quando Felipe reassume a sua verdadeira personalidade, já nos últimos capítulos, Gilberto Braga ri na cara de seu público e mostra que, no lugar de Márcia, o espectador também teria cedido às investidas do cirurgião no Canadá. E enquanto Felipe se finge de bonzinho, ainda é possível perceber alguns indícios sutis de que ele não se modificou como afirma. Um deles é a aparição do “homem do isqueiro preto”, um vilão oculto que começa a fazer armações em diversos núcleos da trama, cometendo apenas delitos que poderiam favorecer Felipe de alguma forma. Curiosamente, ele não tinha nenhuma relação com estes crimes no fim das contas, então foi favorecido pelo acaso.
Enquanto isso, o autor começa a mostrar que, para todos os efeitos, Márcia nunca esqueceu Felipe. Desde sempre, o texto deixa uma coisa bem clara: no Canadá, ela se apaixonou pela primeira vez e o plano de vingança surgiu como uma maneira de se manter próxima àquele homem e ter sua atenção. A paixão de Márcia por Felipe é trabalhada desde a primeira fase, quando ela parece triste em vez de revoltada ao se vingar, além de ter decidido não fazer uma denúncia quando foi atingida com um tiro pelo vilão. Ao se reaproximar de Márcia, Felipe começa a parecer apaixonado por ela e se declara, mas ela não quer ceder novamente a ele, talvez respondendo de alguma forma às sequelas da violência que sofreu.
Em suas ações, Felipe usa uma técnica de abuso psicológico conhecida como gaslighting, fazendo com que Márcia duvide das próprias percepções. Ela sabe que ele cometeu um erro ao operar Ladislau, mas ele tanto repete que agiu sob coação que ela acaba acreditando e, convencida de que cometeu uma injustiça ao ligar para a polícia, começa a concentrar esforços para tentar ajudá-lo a recuperar sua licença médica.
Curiosamente, Gilberto segue a convenção popular de que, se a mãe de um homem faz uma afirmação sobre ele, é verdade. Desde o primeiro momento em que Felipe diz estar arrependido, Constância afirma que não é verdade, pois o filho está preparando um novo golpe. Para pregar a peça no público, o vilão não faz confidências à mãe e chega a discutir com ela quando estão sozinhos, além de que os objetivos dela passam a conflitar com os dele: Felipe quer voltar à medicina, enquanto ela prefere que ele retome o casamento com Stella e sabota as suas tentativas de voltar a ser médico.
A última reviravolta
Os esforços de Márcia funcionam e Felipe acaba sendo inocentado, ganhando de volta a sua licença médica. No mesmo dia, ela volta a se entregar e os dois passam a noite juntos. Quando ela acorda, ouve ele dizendo a Júlio que “merecia cinquenta caixas de champanhe” e que está ansioso para botá-la para fora a pontapés, por ter ousado mexer com Felipe Barreto. Preciso dizer que, neste momento, me lembrei de Maíra sendo injustiçada por Zoé e Vanessa no último capítulo de Todas as Flores, com a diferença de que ela não agiu contra quem a prejudicou, enquanto Márcia decide agir. Não para se manter próxima a Felipe, mas sim para desmascará-lo de uma vez por todas.
Sem o apoio de Herculano, que morreu na noite da concretização da nova aposta, Márcia precisa convencer Olga de que Felipe estava fingindo. É difícil, porque agora Olga fez as pazes com o filho e está completamente rendida — o que é compreensível, já que a verdade é que ela nunca tinha se conformado em deixar esta ponta de seu passado solta. Márcia consegue a ajuda de Rubens (Dennis Carvalho), advogado que está interessado nela, e os dois conseguem desmascarar Felipe no fim da história. Após Otávio e Yara (Daniella Perez) dizerem que embargaram a herança de Herculano, Olga ouve pela extensão telefônica o filho dizendo que “não poderá contar com o dinheiro da cafetina”.
É triste ter que lidar com essa decepção e nos fica a impressão de que, ao ficar longe de Felipe, Olga se livrou. A história termina premiando Felipe com um novo casamento arranjado, com mais uma moça jovem e manipulável. Júlio, tão machista quanto o amigo, também se dá bem e fica com Terezinha (Tássia Camargo). Já as vilãs Constância e Karen (Maria Padilha) ficam na miséria. É, acho que isso mostra bastante sobre o que O Dono do Mundo queria nos dizer.
O machismo além de Felipe Barreto
Paralelamente à história central, o autor fala sobre machismo usando outros personagens. Acho particularmente desconfortável (e talvez fosse a intenção) ver como os homens desta novela se sentem livres para estapear as mulheres e como elas não questionam este tipo de comportamento. Nesse sentido, a trama de Stella, que trata da liberdade feminina, figura para mim como uma das mais revoltantes.
Inicialmente casada com Felipe, Stella é uma mulher que abdicou de uma carreira profissional para se dedicar ao casamento — aquela que, para as convenções sociais da época, é a mulher ideal. Enquanto isso, o autor apresenta Rodolfo (Kadu Moliterno), que à primeira vista é um homem sensível e incompreendido, com dificuldades em se relacionar com o filho, Paulinho (Jonathan Nogueira). Os dois se conhecem e acabam se apaixonando, e eu me senti conduzido pelo texto a considerar que ele era o homem certo para Stella, mas as coisas acabam mudando de figura quando ela decide ser mãe e Rodolfo acaba revelando sua toxicidade.
Apesar de tê-la apoiado na ideia de retomar a carreira de jornalista, Rodolfo esconde da esposa que fez uma vasectomia, mesmo sabendo que ela anseia por uma gestação. É um ato insensível e egoísta da parte dele, que não considera que a esposa poderia ter até mesmo uma gravidez psicológica, e que só piora quando Stella engravida após uma recaída com Felipe. Ela o procura para contar que está grávida, ainda sem saber de sua esterilidade, e recebe uma bofetada no meio de uma premiação em que venceu. Para ele, pouco importa que tenha mentido e brincado com as ilusões da esposa, porque ela também o fez e somente ele tem esse direito. Cheguei à conclusão de que Rodolfo é tão tóxico quanto Felipe, mas sabe disfarçar melhor. E infelizmente tem um final feliz com Stella, que merecia muito mais.
Outro homem que não pensa duas vezes antes de agredir uma mulher é Beija-Flor (Ângelo Antônio), primo de Márcia e par romântico de Taís. Envolvido com delinquentes no começo da história, Beija-Flor se regenera e passa a ter completa aversão a qualquer ato que considere antiético. Por outro lado, Taís é ambiciosa — atenção: não gananciosa — e se prostitui para garantir algum sustento à família. Sempre que descobre que Taís cometeu algum ato que a torne uma mulher de moral corrompida, Beija-Flor age de maneira agressiva, chegando a agredi-la no meio da rua em uma das cenas. Apesar de toda a química do casal (que é um dos pontos positivos da novela, por sinal) e de Beija-Flor ser caracterizado como um personagem bondoso e carismático, ele também resvala em atitudes machistas, ainda que não perceba. É um padrão que persegue quase todos os homens da novela, deixando ao julgamento do público.
Na segunda metade, Taís se envolve com William (Antônio Calloni), apresentado como um homem bom e de valores tradicionais, mas que visivelmente não suporta quando a vontade de uma mulher contraria a sua. Prova disso é que, quando Taís engravida, já nos últimos capítulos, ele propõe um aborto e inferioriza qualquer desejo de maternidade que ela possa ter. É bom que a novela tenha figuras como ela e Terezinha, que fazem os homens de gato e sapato. Aliás, muito me chocou que William tenha sido revelado como o homem do isqueiro preto no capítulo final, cometendo diversas atrocidades por puro ciúme. Acredito que uma parcela significativa do público tenha apoiado o par entre ele e Taís, então é bom anular qualquer possibilidade de endgame e deixá-la livre para Beija-Flor.
Considerações finais
Para mim, a novela tem um saldo final positivo, com críticas inteligentes e pertinentes até mesmo vistas com o olhar de 2024. É claro que pode soar ultrapassada por ser uma abordagem de 1991, mas se torna uma experiência prazerosa a de olhar para trás e perceber como o mundo se modifica quase imperceptivelmente. Pouco delicado, o texto de Gilberto me remete a Amor de Mãe (Manuela Dias, 2019) e Um Lugar ao Sol (Lícia Manzo, 2021) em alguns aspectos. As duas obras sofreram com a rejeição do público quando foram ao ar, o que eu atribuo à maneira como as questões sociais e políticas foram representadas, de uma forma cruel, realista e violenta. Da mesma forma que o público das mais recentes, talvez o público de 1991 não estivesse disposto a ser retirado de sua posição de receptor e ser inserido como participante ativo de um debate. Três anos antes, Gilberto havia feito algumas representações similares, mas se valeu de personagens e histórias populares, que cativam logo de cara. Talvez O Dono do Mundo demore um pouco a pegar o público nesse sentido, e o autor pode ter percebido essa carência quando inseriu o enrosco cômico (que tinha pouca graça) entre Terezinha, Darci e Gilda (Betty Gofman), que foi do nada a lugar nenhum.
Como sempre, Dennis Carvalho dirige com maestria o texto de Braga. Dificilmente se vê hoje, na teledramaturgia, um match tão preciso, com um diretor que entende tão bem um roteiro, desde as cenas de cotidiano até as catarses e momentos de suspense. O único ponto negativo que posso apontar é o efeito de névoa utilizado nos primeiros capítulos, que deixava a imagem esfumaçada. A trilha sonora, com Gal Costa, Marina Lima, Luiz Melodia, João Gilberto, Tom Jobim, Marisa Monte, Roberto Carlos, João Bosco e Caetano Veloso, é outro ponto positivo. “Codinome Beija-Flor” para Taís e Beija-Flor é um arranjo perfeito, além de “Solidão” para Márcia. O elenco tem destaques positivos como Malu Mader, Antônio Fagundes, Letícia Sabatella, Fernanda Montenegro, Nathália Timberg, Maria Padilha, Ângelo Antônio, Ana Rosa, Cláudio Corrêa e Castro, Daniella Perez, Jacqueline Laurence e Antônio Calloni.
Me despeço de O Dono do Mundo classificando-a como uma das novelas mais inteligentes que já vi e finalizo este texto com a impressão de que poderia ter falado muito mais. Gilberto Braga é genial e sempre muito bem-vindo.