Solte a história

Ao supervalorizar cenas e enredos, nos distraímos do que realmente importa em um relacionamento

Gustavo Gitti
3 min readSep 24, 2015

Você se dispõe a ouvir uma pessoa e logo descobre que ela descreve cada cena como se fosse essencial para explicar a situação e justificar suas aflições. “Ele disse isso, eu respondi assim, ele estava olhando para a esquerda, uma semana antes outra pessoa agiu assim, o email dele dizia que…” Depois de três horas, tudo o que você recebe é uma narrativa gigante, produzida pela mesma mente romântica e noveleira que nas primeiras noites buscava por momentos inesquecíveis a cada mensagem, perfume, música, expressão facial.

Se você focar apenas nos fatos, distraído pelos episódios externos apontados incessantemente, acabará oferecendo conselhos do tipo “Fale isso, tente agir assim…”, o que apenas manterá o outro girando, como um motoqueiro no globo da morte. Por outro lado, se durante as três horas você mantiver sua atenção no corpo, nos olhos perturbados, no fluxo emocional e nas posições mentais do outro, verá que as histórias não importam tanto quanto a perspectiva pela qual elas são vividas. Sugerir isso parece um absurdo em nossa cultura, pois estamos acostumados a pensar que felicidade é construir uma longa e bonita história.

Já ouvi de tudo, de “Não te amo mais” e “Não sinto mais tesão” até a história inteira da relação recontada de modo negativo, como um grande erro. Sempre que acreditei, reagi e sofri, às vezes com a pior das perguntas: “Tem certeza disso?” Ora, as pessoas transitam entre diversos estados mentais que colorem a experiência. Se você ouvir um "Eu te odeio", pode relaxar: isso é uma fala emocional, não há um ódio absoluto, sólido, eterno, incrustado no peito do outro. Sem tal clareza, frequentemente atuamos como detetives (“O que ele quis dizer com isso?”), solidificando uma emoção transitória cada vez que a confundimos como sendo a própria pessoa.

Grande parte do nosso sofrimento surge porque não soltamos as histórias: as que parecem ter acontecido lá fora e as que reencenamos em nosso falatório incessante. Mantemos um foco exagerado em detalhes, ampliados até se parecerem com uma realidade permanente. Ao recontá-los de novo e de novo durante uma crise, não deixamos espaço de respiro e novidade, como se não conseguíssemos tirar os olhos das grades de uma prisão.

Portanto, um bom jeito de ouvir o outro é encarar a história como se fosse uma mentira, um sonho, um filme, uma peça de teatro que deixou a pessoa perturbada. Na maioria das vezes, não funciona dizer isso assim, tão na cara, mas usamos essa abordagem para ajudar o outro a encarar seus próprios obstáculos internos, suas bolhas, cegueiras e posicionamentos, que podem ser transformados e independem dos acontecimentos externos.

Olhando menos para trás, treinamos uma arte apreciada pelo escritor Jorge Luis Borges: o olvido (esquecimento). Que o cantor Roberto Carlos me perdoe, mas os detalhes são só isso mesmo: pequenos.

Publicado originalmente na coluna “Quarta pessoa” da revista Vida Simples (ed. 154, fevereiro 2015). Para aprofundar, sugiro o livro A beleza da vida, de Pema Chodron (aqui um trecho sobre esse processo de soltar a história).

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Gustavo Gitti

Trabalho em espaços de transformação: o lugar, TaKeTiNa, Vida Simples e CEBB. http://gustavogitti.com