Entrevista com Christian Jacq, egiptólogo e escritor francês, autor da série ‘Ramses’

Gustavo Klein
8 min readMar 23, 2017

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Responsável pelas séries de livros Ramsés e A Pedra da Luz (lançadas no Brasil pela editora Bertrand), o egiptólogo francês Christian Jacq tem 54 anos, é formado pela Sorbonne e mantém uma carreira paralela: a de escritor. Seus livros falam de um tema que sempre fascina os leitores: o Egito antigo. Na entrevista exclusiva, direto de Paris, Jacq fala de pirâmides, faraós, literatura e do desejo de conhecer o Brasil.

Como surgiu seu interesse pela literatura e pelo Egito antigo?
Descobri o Egito aos 13 anos, quando já escrevia, lendo um livro sobre o assunto. A partir de então, decidi que as duas paixões balizariam minha vida e minha carreira. Busquei a formação acadêmica em ambas as áreas: filosofia, latim, grego, história da arte, arqueologia, literatura e doutorado em egiptologia, que fiz na Sorbonne.

Então o autor surgiu antes do pesquisador?
Eu já era escritor antes de me tornar um egiptólogo. Mas, claro, quando o tema do romance é o Egito, o texto flui melhor, de forma mais natural. Já são 15 livros escritos em toda a carreira, alguns deles sem quaisquer referências ao Egito.

É possível conciliar as duas vocações, que exigem tanta dedicação, ou o senhor abriu mão de uma em função da outra?
Mantenho os dois trabalhos em paralelo. Descobri que, tanto no campo da pesquisa quanto nas ciências e nas artes, o trabalho não cansa. Fica, ao contrário, cada vez mais apaixonante.

Como é a pesquisa para seus livros? Quanto há de fundo histórico em suas obras?
Cada livro, seja romance ou não-ficção, requer um trabalho específico de pesquisa, voltado ao assunto: hieróglifos, representações de templos e tumbas, por exemplo. Há uma busca incessante pela fidelidade técnica. Com relação à fidelidade histórica, acho que vale muito mais a imaginação do novelista, ainda que intimamente inspirada em fatos reais da civilização egípcia.

Profissões como as de egiptólogo e arqueólogo são encaradas como cheias de aventura, estilo Indiana Jones. Hoje, com toda a tecnologia, continua sendo assim?

Mesmo hoje, a vida do egiptólogo caminha passo a passo com a aventura. Mesmo passando horas e horas debruçado sobre papiros. A erudição não substitui um contato vivo com o Egito, que é sempre uma aventura.

Há uma verdadeira febre egípcia no Brasil. Recente exposição na universidade Faap, em São Paulo, reproduziu as filas quilométricas do megasucesso Titanic. Isto pode ser creditado, em parte, ao sucesso popular de seus livros, que há meses ocupam as primeiras posições entre os mais vendidos no país. Há planos de uma visita ao Brasil?
Fico muito satisfeito que meus livros tenham despertado interesse em diversos países do mundo e atraído a atenção de pessoas de todas as culturas e posições sociais para a civilização egípcia. Fico muito orgulhoso, também, de ser famoso no Brasil, um país que ainda não conheço. Se os deuses permitirem, espero ainda descobrir seus segredos.

Seus livros demonstram um conhecimento místico que é tomado por muitas pessoas como só sendo possível a um iniciado. É?
O conhecimento místico, ou simbólico, encontrado em meus livros, vem dos textos, que são ricos e numerosos. Acho essencial, quando se escreve sobre o tema, praticar a linguagem hieroglífica. Um egiptólogo que não creia na religião, que não partilhe uma simpatia absoluta pela civilização que estuda não pode, na minha opinião, pronunciar mais do que palavras sem vida.

O que mais o fascina no Egito? A religião? O modo de vida?
O Egito era uma unidade bastante coerente. É difícil separar alguma coisa deste todo, seja a religião, os rituais, a arte ou o modo de vida. Lá, mais do que em qualquer outra civilização antiga, tudo isso se confunde. De toda forma, o que me impressiona muito na história egípcia é que foi lá que se desenvolveu a idéia da harmonia entre o céu e a Terra.

O Ramsés de seus livros colide um pouco com a sua imagem histórica. Alguns especialistas dizem, inclusive, que ele mandava apagar o nome de outros faraós dos templos e colocava o seu, tendo entrado para a história, por isso, como grande construtor. Como o senhor encara essa visão?
É verdade. Mas é um erro pensar que isso foi um roubo. Ramsés, como todos os outros faraós, colocou seu nome em monumentos construídos ou iniciados por seus antecessores. Não se trata, como se lê frequentemente, de uma usurpação ou de um ato de vaidade. É, na verdade, um prolongamento de obras concebidas como seres com vida.

Um fato curioso — e de certa forma irônico — é que todos os seus vilões são gordos. É proposital?
Não acho que sua constatação seja 100% correta. Há também os magros.
Nota do Repórter: É verdade. Mas os gordos são mais cruéis. Chenar e Dolente, irmãos de Ramsés que vivem tramando sua morte, são comparados constantemente a leitões. Na série A Pedra da Luz, Serketta e Mehy, ambos muito gordos, são a principal fonte de problemas aos protagonistas da história. Mehy gosta de matar passarinhos e Serketta sente um prazer quase sexual em enfiar facas no coração de suas vítimas.

Os egípcios eram encarados por outros povos da antiguidade (e também de hoje) como mórbidos, culturadores da morte. Quanto há de verdade nisso?
Os antigos (gregos e romanos) consideravam os egípcios como a fonte da sabedoria e das ciências. Quando se visita o Egito e se entra em uma morada da eternidade (e não em uma tumba), não se vê a morte, mas a vida transfigurada. Não há nem morbidez nem fascinação pela morte. Pelo contrário, o que se percebe é uma vontade de vencê-la, um desejo de retornar e vislumbrar a vida luminosa que existe além dela.

Como era a vida das mulheres na sociedade egípcia?

Desde a primeira dinastia, a mulher foi considerada uma igual ao homem. O que é raro, historicamente falando. Podia ser chefe de Estado, superior de um templo, diretora de médicos ou mulher de negócios. Não era o que acontecia na Grécia ou em Roma. E até hoje não é assim em muitos países. Conforme observou o arqueólogo Chapollion, este é, sem dúvida, o mais importante ensinamento da civilização egípcia.

O que mais a sociedade de hoje pode aprender com este passado?
É uma grande questão, que necessita de muitas respostas. É possível aprender muito em relação ao domínio da espiritualidade. No conhecimento dos processos de criação, na arte, na solidariedade entre os seres. Até na economia. Acredito que o modelo egípcio tem bastante, ainda, a nos ensinar.

Eram os egípcios a cultura mais evoluída de sua época?
Sem sombra de dúvida. Juntando o conjunto de fatores da civilização, da arte, da medicina, passando pelo sistema legal, os egípcios estão muito acima de qualquer outro povo da antiguidade.

Outro aspecto de seus livros que difere da versão historicamente aceita pela maioria é a informação de que as pirâmides foram construídas por escravos, inclusive os judeus, que teriam sido libertados por Moisés, segundo a tradição bíblica. Havia escravos no Egito?
Estas idéias vêm de filmes e do imaginário popular. Não há um único historiador sério que defenda isso. Só para ficar claro: não havia escravos no Egito. Nunca, em tempo algum, houve. Todos os que trabalharam na construção dos templos e pirâmides recebiam salários, mesmo que houvesse várias classes de trabalhadores e o salário fosse compatível com essas classes. E todos tinham total liberdade de ir e vir. No caso dos judeus, o momento político não era favorável a um êxodo tão grande, havia perigo muito próximo de uma guerra contra os hititas.

Há múmias e pirâmides em várias civilizações americanas pré-colombianas. É possível pensar em algum contato entre egípcios e astecas, ou maias?
A analogia das formas não implica, forçosamente, na semelhança de intenções. Não é impossível que houvesse contato, já que alguns historiadores defendem a idéia de que haviam rotas comerciais entre o Egito e as Américas. Este, porém, é um assunto que não estudei de maneira profunda e a propósito do qual permaneço bastante aberto.

O que mais admira no Egito antigo?
A constante busca da harmonia entre os diferentes elementos da vida. A amplidão do poder criativo e a riqueza do pensamento.

O que, de mais importante, falta ser descoberto nas areias do Egito?
Ainda resta muito a descobrir. Mesmo os lugares célebres, como Gizé ou Saqqara, ainda contém muito a ser escavado. Entre as grandes descobertas que ainda estão para ser feitas, podemos esperar, por exemplo, pelo achamento da morada eterna de Imhotep, o criador da primeira pirâmide em pedra. Era um arquiteto, construtor, médico e astrônomo, um homem considerado pelos egípcios como um de seus maiores sábios.

Imhotep, aliás, ganhou vida em filmes recentes. Esta forma de ver as múmias como monstros vem de onde e de quando? Não é a única lenda absurda. Já acharam que o pó das múmias era afrodisíaco, acredite. Há também a maldição de Tutancâmon, outro absurdo. As múmias querem é paz.

Suas duas séries de livros mais conhecidas, Ramsés e A Pedra da Luz, são ambientadas na 19ª dinastia. É esta a época da história que mais lhe interessa?
Este é o período mais ricamente documentado e, por isso, é mais fácil escrever sobre ele. Eu tenho profunda admiração pela 18ª dinastia, a de Tutancâmon, e pela idade das grandes pirâmides.

A 18ª dinastia foi a mais revolucionária, não? Foi nela, por exemplo, que apareceram as idéias que inspirariam, 100 anos mais tarde, as idéias monoteístas de Moisés. Quais os planos para futuros romances, há temas específicos que deseja abordar?
Em novembro deste ano será lançado na França meu próximo romance, em três volumes: A Rainha Liberta. Se trata de um período pouco conhecido, durante o qual o Egito foi ocupado pelos bárbaros. Foi um ato de extraordinária coragem, mesmo para uma rainha, começar uma luta contra os invasores e devolver a liberdade ao povo egípcio.

Há planos de transformar seus livros em filmes?
Há muitos projetos em discussão para o cinema, mas nenhum ainda se concretizou. Gostaria que fosse, enfim, realizado um verdadeiro grande filme sobre o Egito, que restitua seus valores e sua grandeza, sem cair nos erros e na caricatura que temos visto na mídia até agora.

O senhor consegue imaginar que astros poderiam viver os personagens principais?
Confesso que ainda não encontrei um ator que mereça desempenhar o papel de Ramsés.

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Gustavo Klein

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