Entrevista com Ray Conniff, músico

Gustavo Klein
9 min readMar 24, 2017

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Ray Conniff, músico norte-americano, falecido em 2002 (entrevista feita em set/2001 para o jornal A Tribuna, logo após os atentados do dia 11 daquele ano) O maestro e arranjador fala de carreira, música e também dos atentados em Nova York, acontecidos uma semana antes da entrevista.

Gustavo Klein
Ele é maestro da última grande orquestra do mundo. E, certamente, a mais conhecida da atualidade. Ray Conniff é um dos maiores arranjadores da história da música. Na entrevista a seguir, ele conta detalhes de sua vida e da carreira, fala de música contemporânea, do público brasileiro e nega que vá se aposentar.

Quais são os planos para o futuro? Uma parte da imprensa tem divulgado que esta seria sua última turnê internacional. É verdade? Estão dizendo, inclusive jornais, revistas e nos anúncios dos meus shows, que vou parar. Só esqueceram de me consultar a respeito. Não pretendo parar. Estou com 85 anos e não sei quanto tempo mais Deus me dará, mas enquanto eu estiver por aqui, vou trabalhar com música. O que sei, de imediato, é que a atual turnê termina com o show aí de Santos. A partir de segunda-feira estarei de férias. Eu e minha esposa vamos sair de férias, viajar por pelo menos uma semana no nosso motorhome, pelos Estados Unidos. Vamos a um lugar que adoramos, na Pensylvannia, habitado exclusivamente pelos amish, um povo que veio da Suíça, a mesma terra da minha esposa, e que não têm nem telefone nem eletricidade nem nada de modernidades. É muito quieto e possibilita um grande contato com a natureza.

O sr. nasceu e mora nos Estados Unidos. O atentado a Nova York, claro, o afetou como ser humano. E sua agenda, foi prejudicada de alguma forma? Moro em Los Angeles, do outro lado dos Estados Unidos. Eu vim para o Brasil no domingo anterior ao atentado e soube do acontecido pela minha esposa, que está lá, com quem converso diariamente. Ela me avisou que vários shows e turnês de outros músicos haviam sido cancelados em virtude dos ataques terroristas. Eu já estava no Brasil, mas minha banda, não. Corri o risco de não poder fazer os shows porque todos os vôos estavam cancelados. Eles tiveram que pegar um ônibus de Los Angeles para Tihuana, no México, e de lá pegaram um vôo para a Cidade do México. Só então conseguiram embarcar para São Paulo.

O repertório das apresentações mudou muito em função dos atentados? Até conversei com minha esposa, Vera, sobre ser ou não inoportuno tocar New York, New York no show, pois meus arranjos são bem alegres e talvez o momento não fosse para felicidade. Ela me deu um argumento definitivo: é exatamente o que os terroristas querem, acabar com nossa vontade de ser alegres, tirar nosso espírito. Decidi, então, mudar apenas a abertura do show. Abro com Ave Maria, peço um minuto de silêncio e ofereço, em seguida, New York, New York, como homenagem às vítimas. Depois, o show continua normalmente.

Mudando para assuntos mais agradáveis, como o sr. despertou para a música? Nasci em 1916, em Attleboro, Massachussets, em uma família de músicos. Meu pai tocava trombone e minha mãe era pianista. Os dois costumavam cantar para mim quando eu era criança. Quando tinha nove anos, meu pai me deu um trombone. Não me interessei muito, pra ser sincero, até porque achei que aprenderia imediatamente e me decepcionei, fiquei envergonhado, porque queria impressioná-lo. Mesmo assim, quando cheguei ao colegial, me juntei com outros sete amigos e montamos uma orquestra de dança. Isto foi em 1933, se não me engano. A partir deste momento, a música passou a ser a coisa mais importante da minha vida.

E a carreira de arranjador, como se desenvolveu? Meu pai, apesar de tocar trombone, não era um músico profissional. Exercia outras atividades e tinha a música como hobbie, uma paixão. Ele assinava a revista Billboard. Um dia estava lendo essa revista e achei um anúncio de um método para escrever músicas, para transpôr arranjos de um instrumento para outro. E o melhor de tudo: custava apenas US$ 1. Foi o melhor investimento que fiz até hoje. Meu primeiro arranjo escrevi por este método. Foi da música Sweet Georgia Brown, ainda naquela época da escola.

E seu estilo, considerado único, cujo nome virou até sinônimo do ritmo? É uma pergunta difícil de responder. Sempre achei que o ritmo é a coisa mais importante de uma música. Acho que as pessoas reconhecem de imediato quando uma música é minha justamente pelo ritmo forte, pelo modo como uso as vozes, o coro característico. E também porque tocamos sempre as músicas que são fortes hits em todo o mundo, como aquelas que chegam ao primeiro lugar da Billboard, no máximo as top ten. Acho que esses elementos, o ritmo e o coro funcionando como mais um instrumento, são minha principal característica e eles aconteceram normalmente.

E depois da escola, a carreira de músico veio naturalmente ou tentou uma carreira ‘formal’? Quando saí da escola, não pensava em seguir carreira musical. Meu objetivo era entrar em uma faculdade de Boston, o Massachussets Institute of Technology (MIT). Mas, no mesmo período, comecei a receber muitos convites de orquestras, tanto na minha cidade quanto em Boston. Vi que era uma boa oportunidade, parecia que Deus estava me dizendo que aquilo era o que eu devia fazer da minha vida. Muitos músicos me telefonavam e convidavam para tocar trombone com eles e também para fazer arranjos de suas orquestras. Fui para Nova York, onde todos os grandes músicos da época tocavam, nas big bands.

No início da carreira, o sr. tocou com músicos já conhecidos e respeitados à época, como Harry James e Artie Shaw. Foi uma influência importante? Toquei com muitos. Meu primeiro emprego foi como trombonista e arranjador de Bunny Berrigan. Depois toquei na orquestra de Bob Crosby, onde passei um ano. A seguir fui contratado por Artie Shaw, depois por Glenn Ray. Em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial, fui chamado para fazer arranjos para o serviço de rádio das Forças Armadas, onde permaneci até 1946. Quando saí do exército, fui orquestrar para Harry James. Toquei em todas as grandes bandas da época, e tenho orgulho disso.

Qual sua opinião sobre a música composta atualmente? Há muita coisa interessante acontecendo, bons compositores surgindo, fazendo sons agradáveis. Não gosto de tudo, entretanto. O rap, por exemplo. Não acredito que vá durar muito tempo sem evoluir para outra coisa. Música é feita por três elementos: harmonia, ritmo e melodia. Rap é basicamente ritmo e tem alguma harmonia, mas nenhuma melodia. É música incompleta.

E a música eletrônica? É possível compôr música eletrônica bonita. Mas não acho, por exemplo, que os Djs façam música. Apenas tocam e misturam músicas criadas por outros. Roubam, enfim. Uma pessoa do meu fã-clube na Alemanha me mandou um CD de samplers em que um DJ usava minha versão de Besame Mucho. Não puseram meu nome em lugar algum, não me deram crédito algum por ter criado aquele arranjo e, principalmente, não me pagaram nenhuma participação.

Como é a escolha de seu repertório? Toca só o que gosta? No início, sim. Comecei na Columbia Records no início da década de 50, convidado por Mitch Miller, o diretor da gravadora. Ele me conheceu como arranjador, quando trabalhava com Harry James, e me deu oportunidade de fazer arranjos para outros artistas, especialmente Johnny Ray, Guy Mitchell e as primeiras canções de Johnny Mathis, como It´s Not For Me To Say e Chances Are, canções das quais eu gostava muito.

Como surgiu o primeiro disco próprio? Todas estas músicas que eu arranjara para outros maestros se tornaram sucessos e Mitch percebeu que já era hora de produzir um CD com meu nome, orquestra e coro. Era um single. Perguntei que repertório devia tocar e ele me deu uma liberdade rara para alguém que estava começando: me disse para escolher o que gostava e produzir meus próprios arranjos para estas músicas. Foi o que fiz. Escolhi músicas que eram sucessos de público e de vendas à época: Stardust e Beguin the Beguine. Os executivos da Columbia me chamaram de volta ao estúdio para gravar outras dez músicas e assim surgiu S’ Wonderful, meu primeiro álbum, que no início não vendeu muito mas depois de dez meses decolou e ficou outros nove meses entre os discos mais vendidos nos Estados Unidos.

O sr. sempre deu muito valor à musicalidade de uma canção. Quais são suas preferidas? Seu compositor preferido é Tchaikovski, não? Gosto de grandes melodias. E é verdade, Tchaikovski é um dos meus favoritos. Gosto muito, também, de Henry Mancini. Acho que minha música preferida é a maravilhosa Love Letters. Mas considero compositores eruditos melhores que os populares. Esta é minha preferência e, se eu pudesse tocar exclusivamente o que gosto, é o que eu tocaria.

Não é estranho um músico que é conhecido por seus arranjos bastante alegres ser fã da bela, porém de certa forma triste, música de Tchaikovski? Quer saber? Isso é uma espécie de tradição na música. As mais belas melodias têm algo de melancólicas, de tristes. Eu gosto, também, de músicas alegres, mas você me perguntou no início da entrevista o que eu gostava mais. Está aí a resposta, é disso que eu gosto. Acho que esse é um dos aspectos mais interessantes da música, a distorção das emoções. Belas melodias, alegres ou tristes, me fazem lembrar da natureza, que é sempre bela, e de Deus, que é a origem de tudo isso.

Que momentos considera os melhores da carreira? Você provavelmente está falando de momentos musicais, não?

Também, ou qualquer outro que o sr. considere marcante… Volto, então, para antes da carreira oficial. Nunca vou esquecer os momentos, quando era criança, em que meus pais cantavam e tocavam para mim. Isso é o mais marcante, tem, além de tudo, uma carga emocional muito forte, minha ligação com meus pais era extraordinária. Outro grande momento foi quando, anos mais tarde, toquei pela primeira vez naquela orquestra da escola. Meu primeiro emprego na orquestra de Bunny Berrigan, foi maravilhoso. E, claro, quando saiu o primeiro disco de Ray Conniff Orchestra and Chorus.

Alguma frustração? Não vou falar de coisas negativas. Não dou a mínima para os críticos que não gostam da minha música. Leio muito e sei muito bem o que dizem, as piadas que fazem, os sarros que tiram de mim. Não faço música de elevador e me dedico muito à minha carreira. Sei do talento que Deus me deu, que não é meu, foi emprestado por ele. Não me importo, portanto, com o que dizem dele. Acho que meus fãs pelo mundo podem responder às críticas melhor do que eu.

O sr. tem uma relação muito próxima com o Brasil e talvez faça mais sucesso aqui do que nos Estados Unidos. É seu público mais fiel? Já era músico havia algum tempo quando os executivos das gravadoras me disseram: “Ray, seus discos são um verdadeiro fenômeno nos países latinos, especialmente no México, na Europa e no Brasil”. Sugeriram que eu gravasse um álbum exclusivamente com temas latinos. Foi um dos meus primeiros trabalhos, o disco Say It With Music. Era o álbum que tinha Besame Mucho, Night and Day, Brasil, Aquarela do Brasil e Tico Tico no Fubá. Isso marcou o início de um contato muito próximo, em que me mandam o que faz sucesso no Brasil e eu gravo com meus arranjos. O Brasil é um dos lugares em que mais vendo discos no mundo. Vendo perto de 2 milhões de álbuns por ano. Um milhão nos Estados Unidos e um milhão no resto do mundo. Deste milhão, metade é no Brasil. Nos meus shows — e isso sempre me surpreende — a música mais aplaudida é Emoções, de Roberto Carlos. Por isso, quando vou à Alemanha, ou à Inglaterra, ou à Itália, digo a eles que são grandes fãs, mas nunca que são os maiores. Porque preciso ser honesto: meus fãs mais apaixonados estão no Brasil. Mas não toco músicas brasileiras apenas porque são brasileiras ou para fazer média. Toco porque as acho espetaculares, mesmo.

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Gustavo Klein

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