A antropologia vai ao campo — o futebol como fenômeno multicultural
Trabalho para a disciplina de Antropologia
Introdução
Nelson Rodrigues foi um importante escritor e dramaturgo brasileiro. Escreveu romances, peças de teatro, contos, entre outros tipos de obras literárias. Foi também cronista esportivo, responsável por criar a expressão “pátria de chuteiras”. Uma de suas mais célebres frases é: “em futebol, o pior cego é o que só vê a bola”. A crítica dos que só olham e falam do futebol através dos fatos ocorridos entre as quatro linhas durante noventa minutos se dá pois o futebol pode sim ser ferramenta de alienação, como já o foi no Brasil, em busca de reforçar o mito da democracia racial, de sentimentos nacionalistas e da crença numa estrutura hierárquica extremamente disciplinada. Mas, de certa maneira, isso não revela o quanto o futebol se estende para fora do campo de jogo? Os que fizeram uso do esporte dessa forma o fizeram porque sabem de seu potencial para isso. Ou seja: mesmo quando é alienador, é político. Não se pode, portanto, simplesmente ignorar a importância cultural, especialmente no Brasil, do futebol. Alguns acadêmicos caracterizam o futebol como fato social total (Gastaldo, 2005) por ser “território de expressão de importantes aspectos” de nossa cultura. Assim, ele pode ser analisado como fenômeno multicultural, pois nele se expressam elementos a partir dos quais é possível discutir a cultura midiática, bem como a cultura metropolitana e a digital, entre outras.
Ao falarmos de cultura midiática, cultura do espetáculo e futebol, falamos não apenas da cobertura midiática de grandes eventos futebolísticos como a Copa do Mundo, mas também da maneira como a mídia e a indústria cultural tratam a figura do atleta, criando a partir dela ícones ou heróis em peças publicitárias e/ou jornalísticas. O papel desempenhado por essas figuras na nossa sociedade é abordado por Guy Debord, em A sociedade do espetáculo. O papel da figura da vedete para a própria indústria cultural também é discutido por Edgar Morin em Cultura de Massas no Século XX.
Se o futebol já se configura como elemento cultural importante do Brasil, os estádios de futebol consequentemente têm a sua própria relevância. Como bem aponta Cruz (2005), o lugar onde o jogo acontece acompanhou as mudanças pelas quais passou o próprio esporte, das plateias que assistiam às partidas à beira do gramado ao fim do século XIX, às arenas ultramodernas da atualidade. Quando um time constrói um estádio próprio, ou adota um já existente, sua torcida passa a se apropriar dele, associando fortemente suas manifestações com aquele espaço. Do ponto de vista da cultura metropolitana, portanto, o estádio de futebol é um lugar antropológico (Augé, 1994) por excelência, pois passa a fazer parte da identidade e da história daquele grupo, com rituais regulares (partidas semanais) que fazem com que a torcida construa constantemente a sua história e a daquele espaço. Por outro lado, as modernas arenas, apesar de ainda manterem alguns desses aspectos (grupos de torcedores que ainda ocupam os mesmos setores, por exemplo), passam a atender a uma nova lógica de um processo de modernização e re-elitização (Castellari, 2010) do futebol, que dá a estas arenas características de não-lugares.
De 2011 para cá, várias manifestações ocorreram em diversos países. Países do norte da África passaram pelo que ficou conhecido como Primavera Árabe, quando líderes que já estavam no poder há décadas foram retirados dos postos que ocupavam (o que não quer dizer, de maneira nenhuma, que a democracia e a estabilidade política voltaram a figurar nesses lugares). Em outros países, o movimento Occupy simbolizou o descontentamento de muitos grupos (especialmente os jovens) com os rumos tomados pelo capitalismo moderno. Castells discute esses movimentos em Redes de Indignação e Esperança, no qual cita, também, a importância que torcidas organizadas tiveram na revolução egípcia. Importância essa que também pôde se verificar nos protestos no parque Gezi, na Turquia. No entanto, esse fenômeno de união entre torcedores e manifestantes não se percebe no Brasil.
O objetivo deste trabalho, portanto, é evidenciar essas áreas aonde o futebol se expande, mostrar que há muito mais nele do que simplesmente o que acontece no campo entre 22 jogadores.
Futebol e as culturas midiática e do espetáculo — Edgar Morin e Guy Debord
Edgar Morin é um antropólogo francês, nascido em 1921. Durante a Segunda Guerra Mundial participou da resistência francesa aos nazistas. Em Cultura de Massas no Século XX, fez uma análise sobre o papel da indústria cultural em diferentes regimes (socialistas ou capitalistas). Segundo ele, invenções tecnológicas como o cinema e o telégrafo sem fio foram indispensáveis para o surgimento da indústria cultural, e o espírito capitalista foi o motor dessas invenções. No entanto, a indústria cultural extrapolou os limites do capitalismo e desempenhou papel importante (ainda que com funções radicalmente diferentes) também em regimes socialistas.
Ao descrever o processo de criação de produtos culturais, como por exemplo filmes, dentro do que chama de “modelo burocrático-industrial”, Morin diz que a indústria cultural, ao contrário das demais, necessita de unidades necessariamente individualizadas, ou seja: um produto não pode ser igual ao outro. Por isso a cultura jamais poderá ser absorvida totalmente por um processo industrial. Entre os resultados dessa condição está o aparecimento da figura da vedete, do herói. As vedetes são “personalidades estruturadas (padronizadas) e individualizadas, ao mesmo tempo”, ou seja: ao mesmo tempo em que o herói é único, sua figura também atende a determinados padrões buscados pela sociedade, arquétipos que, segundo Morin, são transformados em estereótipos pela indústria cultural. Para Morin, a vedete e o autor configuram dois polos de individualização, de maneira que quanto mais individualizada é a vedete, menos é a obra do autor. Ainda segundo Morin, o autor muitas vezes sofre um processo de “alienação” (paralelo com a teoria marxista), tendo que adaptar seu trabalho, modifica-lo, segundo as preferências da indústria e, consequentemente, não se enxergando mais em sua obra.
Guy Debord, outro autor francês, nascido em 1931, escreveu uma de suas mais importantes obras, A Sociedade do Espetáculo, em 1967. Nela, ele elabora teses sobre a realidade e o que chama de “espetáculo”, as representações imagéticas da realidade que podem se constituir em realidades à parte. Sobre as vedetes, Debord as descreve como “representação espetacular do homem vivo”, e escreve:
“Existem para figurar tipos variados de estilos de vida e de estilos de compreensão da sociedade livres de se exercerem globalmente. […] A condição de vedete é a especialização do vivido aparente, objeto da identificação à vida aparente sem profundidade, que deve compensar a redução a migalhas das especializações produtivas efetivamente vividas” (Debord, 1967)
Ao falarmos da relação entre as culturas de massas e do espetáculo e o futebol, um fenômeno que é muito evidente é a transformação, pela mídia (nisso se incluem tanto a publicidade quanto produções jornalísticas), do atleta em vedete, em ícone. Helal (1999) afirma que “um fenômeno de massa não se sustenta sem a presença de estrelas”. O autor tenta explicar a transformação do atleta em herói a partir do fato de que no esporte, diferentemente de outras áreas da cultura de massas, como a música e a dramaturgia, o sucesso da figura principal (o atleta) implica, diretamente, no fracasso do outro (o oponente).
Ainda segundo Helal, a relação entre os ídolos do esporte e o público, uma vez estabelecida em um nível mais próximo e pessoal, hoje se dá de maneira mediatizada, impessoal e elaborada. À época da Copa do Mundo de 98, a imprensa destacava a imagem de Ronaldo Fenômeno nas capas da maioria dos jornais e revistas. Uma foto dele foi tirada posando com um pôster de Madre Teresa de Calcutá, gesto que havia sido feito antes por Romário, herói do tetra, e que agora era repetido por aquele sobre o qual caíam as expectativas de que fosse o herói do penta. O jornal O Globo chegou a afirmar que “o melhor do mundo espera corresponder às expectativas de 160 milhões de brasileiros e conquistar o penta hoje” (O Globo, 12/07/98 apud Helal, 99). Nesse tratamento da imagem de Ronaldo, fica evidente como a mídia alçou sua figura àquela de um herói, no qual a sociedade deposita sua confiança e o qual deve “redimir” esta (Morin, 1980 apud Helal, 99).
Barcelona (2004), após analisar matérias dos principais jornais argentinos à época do jogo-homenagem a Diego Maradona, conseguiu estabelecer um perfil do ex-jogador que foi montado pela mídia de seu país. Entre outras qualidades, uma que chama a atenção é a que o autor chama de “a qualidade especial, sobrenatural”, evidenciando um caráter divino atribuído a ele. Não à toa, o episódio em que marcou um gol com a mão contra a Inglaterra nas quartas de final da Copa de 1986 ficou conhecido como “a mão de Deus”. Pelé, conhecido como o “rei do futebol”, também teve atrelado à sua figura um caráter de realeza, que perdura até os dias de hoje.
Mas por quê necessariamente Pelé, Maradona, Romário, Ronaldo, entre tantos outros? A habilidade destes certamente é o diferencial que fazia com que as expectativas do público recaíssem sobre eles. Esta, por sua vez, acaba não sendo apenas a capacidade de atingir um determinado objetivo (marcar o gol), mas o recurso para criar um espetáculo individualizado, graças à sua maneira de tocar na bola e driblar adversários, por exemplo. Consequentemente, uma partida de futebol nunca é igual à outra, mesmo sendo disputada pelos mesmos vinte e dois jogadores, e isso se acentua quando jogadores como os citados anteriormente estão em campo, dado que poucos possuem habilidade parecida. O atleta é, portanto, autor de um produto cultural único (seu jogo de futebol), e vedete deste mesmo produto. Como vedete, é alçado ao patamar de herói, rei ou deus. Como autor, sofre do processo de alienação descrito por Morin, a partir do momento em que seu jogo deixa de ser simplesmente um espetáculo produzido e protagonizado por seus pés com sua própria habilidade, e passa a ser usado como instrumento do espetáculo de marketing de grandes empresas. Um exemplo disso foi uma peça de publicidade da empresa Nike, na qual grandes astros do futebol do fim dos anos 90 jogavam uma partida contra demônios no Coliseu, convertido em palco desse espetáculo.
Futebol e a cultura metropolitana — Marc Augé
Augé é um antropólogo francês nascido em 1935. Aos sessenta anos escreveu Não-Lugares, livro no qual designou como não-lugar um “espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico”, definição essa que é o exato oposto daquela dada por ele ao lugar antropológico. A produção de não-lugares acompanha as demais transformações às quais a cidade é submetida pelo processo de globalização característico da supermodernidade, que coloca em segundo plano os lugares e ritmos antigos, não integrados pelos não-lugares. Alguns exemplos de não-lugares são rodoviárias, aeroportos e quartos de hotéis, entre outros lugares destinados à passagem, que não foram pensados para a permanência das pessoas, nem para a apropriação dele por estas.
O lugar antropológico, segundo Augé, é uma construção daqueles que o habitam e constroem nele um sentido, que se apropriam dele, que se tornam locutores dentro dele, transformando-o em um espaço, ou seja, um lugar praticado. O não-lugar, por sua vez, é um lugar transitório, que nunca se realiza plenamente. É um lugar de passagem, de consumo, com o qual as pessoas mantêm uma relação contratual através de símbolos de identidade, como o bilhete de metrô, a passagem de avião, o ingresso para o show, e, portanto, do qual elas não se apropriam.
O estádio de futebol, à medida em que o esporte foi ganhando novas dimensões no país, também foi ganhando sua própria importância, no sentido de que o público passou a se apropriar do seu espaço. O estádio das Laranjeiras, por exemplo, foi o primeiro grande estádio de futebol construído no Brasil, em 1919, pelo Fluminense. A história dos torcedores do Fluminense, que passaram a frequentar e se apropriar desse espaço, passou a se misturar com a própria história deste.
O mesmo se aplica a estádios construídos posteriormente, como São Januário e o Pacaembu, que não só serviram de palco para eventos esportivos e artísticos, mas também para manifestações de cunho político (Cruz, 2005). Esses múltiplos usos do estádio de futebol configuram diferentes maneiras de apropriação dele. Um fato interessante é que nessa época já começava a surgir a prática de diferenciação dos setores do estádio de acordo com preço, de maneira que o fator classe interferia na distribuição do público pelo estádio. As pessoas mais ricas sentavam nas arquibancadas cobertas, enquanto aos demais restavam as arquibancadas sem assento e as chamadas gerais (espaços atrás dos gols, também sem assentos, onde o público deveria ficar em pé).
A inauguração do maior estádio do mundo, em 1950, também marcou o início de uma nova era para o futebol brasileiro. A grande maioria dos jogos que o Brasil disputou lá durante a Copa do Mundo daquele ano foram assistidos por públicos de mais de cem mil pessoas, incluindo o famoso Maracanazo (derrota por 2 a 1 para o Uruguai na final). A estrutura arquitetônica do Maracanã (as arquibancadas eram o maior setor do estádio) fez com que o estádio se tornasse espaço de representação da pluralidade do povo brasileiro. Com o passar dos anos, foram surgindo, nas arquibancadas e gerais do Maracanã, novos tipos de torcedores, mais ativos, como os torcedores organizados, que adotavam setores específicos dentro do estádio e criaram uma nova maneira de torcer, incorporando uma festa popular ao jogo de futebol, configurando ainda outra forma de se apropriar dele. Esses torcedores solidificaram, portanto, o Maracanã como um lugar antropológico.
No entanto, isso vem mudando. Reformas sucessivas, que começaram na virada do milênio, vêm mudando o caráter desse e de outros estádios. As gerais foram extintas e as arquibancadas ganharam novos tipos de assentos, que reduzem o espaço (e a capacidade de público) e incentivam os torcedores a ficarem sentados. Aumentou ainda a pressão, nas novas arenas, para que os torcedores sentem no lugar indicado no bilhete, algo tradicionalmente ignorado pelo público frequentador de estádios. Ou seja: o público que frequenta o estádio, além de ser selecionado pela condição financeira, perdeu ainda a liberdade de se apropriar do estádio da maneira que quiser. Um exemplo disso é a repressão, pela organização dos jogos, pela polícia e inclusive pelos próprios clubes, aos torcedores que utilizaram sinalizadores dentro dos estádios neste ano. O torcedor do Palmeiras que frequenta o Allianz Parque (a compra do nome de estádios por grandes empresas configura ainda outra forma de expropriação do lugar dos torcedores através da privatização de um lugar antes apropriado por eles) hoje vê, dentro de campo, placas pedindo que não acendam os instrumentos luminosos e que inclusive denunciem os que o fazem. De certa forma, o ingresso para o jogo se tornou um dos símbolos de identidade através dos quais o indivíduo acessa o espaço. Como apontou Castellari (2010), o futebol brasileiro está passando por um processo de re-elitização. Isso porque o esporte foi, no Brasil, de “elitista e moderno” (nos primórdios o futebol só era disputado por clubes em nível amador) para um processo de “moderna elitização”.
Esse processo também não é exclusividade do Maracanã, pelo contrário. Vem se manifestando em praticamente todos os estádios brasileiros. Apesar de algumas práticas dos torcedores se manterem, como o hábito das organizadas e outros grupos permanecerem nos mesmos setores dentro do estádio (hoje já institucionalizado), outros elementos dão algumas características de não-lugar a essas modernas arenas. O lugar marcado, a proibição de sinalizadores e bandeiras com mastro, entre outros exemplos, fazem com que o estádio de futebol não mais pertença de fato à torcida. Consequentemente, o estádio torna-se um espaço cada vez mais de passagem e consumo (de comidas, bebidas e do futebol em si, que também se torna um produto), que cada vez menos se realiza de forma plena e, portanto, adquire algum aspecto de não-lugar (Augé, 1994).
Futebol e a cultura digital — Manuel Castells
Manuel Castells é um sociólogo espanhol nascido em 1946. Passou a lecionar em universidades desde a segunda metade da década de 60, e tornou-se o acadêmico mais citado na área de comunicação na primeira metade da década de 2000. Em 2012 escreveu Redes de indignação e esperança, em que analisa os movimentos sociais conectados através da internet, fator importantíssimo nas insurgências que levaram à Primavera Árabe e ao movimento Occupy Wall Street.
No segundo capítulo do livro, no qual aborda a revolução egípcia ocorrida em 2011, Castells fala sobre a participação dos torcedores ultras (torcedores organizados) nos protestos. De acordo com ele, essa participação foi importante pois esses grupos já tinham um longo histórico de enfrentamento com autoridades. O documentário Ultras, de Alma Mosbah, se dedica a abordar o envolvimento desses grupos e conta a história de alguns torcedores de dois dos principais clubes do Egito: Al-Ahly e Zamolek Sporting. O envolvimento de torcedores organizados nos protestos não se deu de maneira uniforme. De acordo com um dos entrevistados no filme, cada torcedor se envolve por suas próprias razões. O passado de confronto com as autoridades foi o fator que deu uma certa coesão à participação deles nos protestos enquanto torcedores. E nos protestos esses grupos foram reprimidos (assim como outros), inclusive resultando na morte de alguns membros. Após os protestos, houve um confronto entre torcedores de Al-Ahly e Al-Masry, que resultou na morte de 72 torcedores do Al-Ahly, e em mais de 500 feridos. Esse confronto gerou a suspensão do futebol nacional por dois anos. No entanto, tanto torcedores como outras testemunhas alegam que as autoridades responsáveis pela segurança na partida foram negligentes e não fizeram o possível para conter a violência, como forma de retaliação à participação dos torcedores organizados do Ah-Ahly tanto nos protestos de 2011 quanto nos que vieram em seguida.
O documentário Istanbul United mostra que um fenômeno muito parecido aconteceu na Turquia, em 2013. Um projeto de urbanização do parque Gezi, localizado na praça Taksim, gerou a revolta de ambientalistas que decidiram ocupa-la. A violência com que foram reprimidos fez com que diversos grupos e movimentos sociais se juntassem ao que se tornaria uma resistência contra o governo de Tayip Erdogan. Assim como no Egito, torcedores ultras das principais equipes da cidade (Fenerbahçe, Galatasaray e Besiktas) se uniram aos demais manifestantes. Como apontado por Castells sobre a revolução egípcia, a grande contribuição desses torcedores ao restante do movimento era sua experiência em confrontos com a polícia. Na Turquia como no Egito, a união de torcidas rivais nas manifestações não foi organizada ou acordada previamente por nenhuma liderança, mas sim um fenômeno orgânico que se deu graças à participação de diversos torcedores, cada um com suas motivações próprias.
Não há qualquer indício que um fenômeno semelhante possa ocorrer em breve no Brasil. Apesar das recentes manifestações realizadas por torcidas organizadas contra o escândalo das merendas escolares (entre outras pautas) em São Paulo, lideranças das principais organizadas paulistas já afirmaram que não pretendem se juntar umas às outras nesses esforços. A ação conjunta entre torcedores de futebol no Brasil se dá como resistência à elitização do futebol no país e ao combate ao machismo, racismo e LGBTfobia nos estádios brasileiros.
A página no Facebook Tribuna 77 é a representação digital de um grupo de torcedores do Grêmio que se reúne sempre na tribuna superior norte da Arena do Grêmio, em Porto Alegre. O grupo posta conteúdo não só de resistência à re-elitização do futebol, mas também de cunho antifascista. A página O Povo do Clube se descreve como “movimento social e político da torcida do Inter, que mobiliza os sócios e os torcedores para lutar pela valorização da nossa identidade popular”. Outras páginas ligadas a diversos outros clubes possuem agendas semelhantes, como a Palmeiras Livre, coletivo de torcedores LGBT do Palmeiras que realizam um ativismo LGBT virtual relacionado ao contexto do clube. Diversas páginas ligadas a este e a outros clubes, como Corinthians Antifascista, Palmeiras Antifascista, Galo Queer também realizam trabalho semelhante de ativismo virtual no seio do futebol. Outras páginas como Dibradoras e O Canto das Torcidas também são exemplos desse fenômeno, apesar de não estarem relacionadas a nenhum clube específico.
Conclusão
Percebe-se, portanto, que é possível caracterizar o futebol como um fenômeno multicultural, ao olhar para ele sob as lentes de teorias diferentes dentro da antropologia. A indústria cultural transforma atletas em vedetes, personagens centrais de narrativas de heroísmo, ao mesmo tempo em que estes desempenham papel central na criação do que se torna o espetáculo do esporte tornando-se, portanto, uma figura de certa forma dicotômica (vedete-autor). A apropriação dos estádios de futebol pelos torcedores, que se deu ao longo da história do esporte, é desafiada por uma tendência que se estabelece cada vez mais de mercantilização e re-elitização do esporte, que muda essa relação entre o torcedor e o espaço. O acesso do torcedor é limitado pelos preços altíssimos, tornando o ingresso um símbolo de identidade, que permite a torcedores de determinadas classes sociais o acesso ao estádio de futebol. O comportamento do torcedor também é limitado pela proibição de elementos das festas que são características das torcidas do país e por uma perseguição aos que se opõem a esses novos limites. O estádio vai cada vez mais se tornando um lugar de consumo com o qual o torcedor não consegue se identificar do qual ele não consegue se apropriar. A mobilização de torcidas organizadas nas manifestações no Egito e na Turquia mostraram o potencial que essas torcidas têm de contribuir em manifestações desse tipo, principalmente pelo seu histórico de confronto com as forças policiais.
Este trabalho ajuda, de certa forma, na superação da máxima de que “o futebol é o ópio do povo”. Existem diversas maneiras através das quais se pode olhar para o futebol e constatar sua importância cultural, especialmente no Brasil. No fim, Nelson Rodrigues tinha toda razão: “em futebol, o pior cego é o que só vê a bola”.
Referências bibliográficas
AUGÉ, Marc. Não-lugares — introdução a uma antropologia da supermodernidade
BARCELONA, Esteban Manuel. Convergências e Divergências Entre as Imagens de Maradona na Mídia Argentina e sua Autobiografia in. Mídia e esporte : temas contemporâneos / Gustavo Roese Sanfelice, Mauro Myskiw , organizadores. — Novo Hamburgo: Feevale, 2010.
CASTELLARI, Ademir Ângelo. O tradicional e o moderno no futebol brasileiro: do moderno e de elite a uma moderna elitização
CASTELLS, Manuel. Redes de esperança e indignação — Movimentos sociais na era da internet
CRUZ, Antonio Holzmeister. A nova economia do futebol: uma análise do processo de modernização de alguns estádios brasileiros. Disponível em http://www.ludopedio.com.br/v2/content/uploads/110857_Cruz%20(M)%20-%20A%20nova%20economia%20do%20futebol.pdf Acesso em 06/06/16
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo
ESLAM, Farid; WALDHAUER, Oliver. Istanbul United. Duração: 1 hora 24 min
GASTALDO, Édison. “O complô da torcida”: futebol e performance masculina em bares. In. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 11, nº 24, p. 107–123
HELAL, Ronaldo. Mídia, Ídolos e Heróis do Futebol
MORIN, Edgar. Cultura de Massas no século XX — O espírito do tempo
MOSBAH, Alma. Ultras. Duração: 47 minutos. Disponível em: http://www.aljazeera.com/programmes/aljazeeraworld/2015/02/ultras-150202121425449.html
Tribuna 77 — https://www.facebook.com/tribuna77/?fref=ts
O povo do Clube — https://www.facebook.com/OPovoDoClube/?fref=ts