Calvino semiótico

Gustavo Sousa
10 min readJun 2, 2018

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Há algum tempo venho lendo, num passo mais lento do que me apraz, Todas as cosmicômicas de Italo Calvino. Não que as pequenas cosmicômicas sejam ruins, pelo contrário, possuem aquela genialidade alegórica típica do Calvino. Simplesmente, acontece que as leituras acadêmicas vem tomando muito mais o meu tempo e a minha energia.

Desde que reli As cidades invisíveis ano passado, senti uma vontade de escrever sobre algumas sacadas semióticas nos textos do Calvino. Como se sabe, Italo Calvino, diferentemente de seu compatriota e amigo Umberto Eco, restringiu-se à literatura e à crítica literária, não se aventurando numa carreira como semioticista. No entanto, isso não quer dizer que ele não tenha professado e demonstrado seu interesse por algumas questões fundamentais do debate sobre a linguagem e a construção do sentido.

Observar o que há de semiótico na obra de Calvino não é nada inovador — e muito menos sou alguém que possa falar com propriedade sobre isso. Não sou nenhum profundo conhecedor da obra de Calvino, mas sei uma coisa ou duas sobre semiótica. De todo modo, acho justo dizer que aquele que se sentir curioso a respeito disso, encontrará com facilidade na web trabalhos de pesquisadores competentes sobre esse assunto.

No mais, o que escrevo aqui são apenas algumas reflexões enfadonhas sobre uma cosmicômica excelente — embora também n’As cidades invisíveis haja pleno material para reflexões — seja para aqueles que veem as entrelinhas semióticas ou não.

No que diz respeito ao livro em questão, as cosmicômicas clássicas (cosmicomiche) são pequenos contos em que Calvino apresenta as reflexões da personagem Qfwfq a partir de um enunciado científico (apócrifo ou não). Qfwfq, testemunha das inúmeras transformações do universo desde sua criação, relata de forma jocosa as consequências de alguns postulados científicos em sua vida cotidiana; já outras são textos em que as trivialidades da vida infiltram-se onde tudo pode nos parecer tão distante.

Dentre essas pequenas pérolas, gostaria de falar especificamente sobre uma chamada Um sinal no espaço.

Como sempre, a cosmicômica abre-se com um enunciado científico:

Situado na zona externa da Via Láctea, o Sol leva cerca de duzentos milhões de anos para realizar uma revolução completa da Galáxia.

Calvino, talvez com intuito de simplificar e/ou encurtar a sentença, diminui cinquenta mil anos do tempo que aproximadamente é dito que o Sol leva para fazer seu percurso. Mesmo com essa simplificação, seria um tanto injusto considerar a informação como falsa ou mesmo apócrifa.

De todo modo, o que nos importa é que a personagem Qfwfq, deixando-se levar pelo fluxo das órbitas recém surgidas (e não tendo muito o que fazer), marca um sinal no espaço para que possa calcular quanto tempo essa viagem solar demora. Logo, um sinal é feito no espaço para marcar o tempo.

Calvino prefere o uso do termo sinal ao invés de signo. Talvez seja pela maior familiaridade que temos com a palavra sinal; enquanto que signo, malgrado a sua relação com o horóscopo, poderia ser considerado mais restrito. É verdade que a palavra sinal, assim como signo, carrega dentro de si a noção fundamental de relação de uma coisa com outra. No entanto, sinal, desconsiderando as variabilidades semânticas que esse termo pode assumir dependendo do semiólogo consultado, ressalta uma ideia de materialidade maior do que a palavra signo é capaz de oferecer — seja no senso comum ou no âmbito acadêmico.

É justamente essa materialidade, o modo como o sinal aparece, como ele se expressa, que é discutida no começo do conto. O primeiro sinal feito aparece como um sinal sem plano de expressão: é um sinal que não se distingue de nenhuma outra coisa, embora essa seja uma das suas características. É um sinal que não tem forma, mas que, como diz Qfwfq, talvez fosse visível se, naquela época em que se narra o conto, existissem olhos!

É um sinal totalmente desprovido de expressão, mas cheio de intenção:

Tinha a intenção de fazer um sinal, isto sim, ou seja, tinha a intenção de considerar sinal uma coisa qualquer que me ocorresse fazer, donde tendo eu, naquele ponto do espaço e não em outro, feito algo com a intenção de fazer um sinal, resultou em verdade que acabei fazendo um sinal.

De fato, a intencionalidade é uma das coisas que comumente se relaciona à produção de signos. Há quem distingue signos naturais de artificias pelo critério da intencionalidade, mesmo que em inúmeras situações esse possa ser um critério ambíguo, seja qual for a natureza da produção. (Um sujeito pode fazer um movimento com os olhos que outra pessoa interpretaria de dado modo, sendo que o sujeito que moveu o olhar não tinha a mínima intenção de comunicar algo com aquele movimento despretensioso).

De todo modo, sem correr atrás dessa lebre que é a discussão da intencionalidade, Calvino talvez tivesse em mente a importância de que o primeiro sinal feito só poderia ser considerado como tal, se ele tivesse sido conscientemente produzido.

E embora seja um sinal com uma descrição paradoxal de sua expressão (invisível e indistinguível, ao mesmo tempo que existente e intencional), ele é importantíssimo para o plano do conteúdo. Pois uma vez que o sinal foi feito e Qfwfq começa a se distanciar do sinal, a personagem retém em sua memória o sinal e pensa sobre ele:

Pensava nisso dia e noite; mais ainda, não podia pensar em outra coisa, ou seja, era a primeira ocasião que tinha de pensar em alguma coisa; ou melhor, pensar em algo jamais havia sido possível, primeiro porque faltavam coisas em que se pudesse pensar, e segundo porque faltavam os sinais para pensá-las.

Eis aí destacada a relação entre linguagem e pensamento. A ideia da inescapabilidade do pensamento em relação à linguagem, de que aquele não pode ocorrer, nem se estruturar, sem esta. A linguagem está aqui posta tal qual um velho enunciado chomskyano: a linguagem é o espelho da mente. Mas não só da nossa mente, mas das dos outros também, uma vez que só por meio da linguagem podemos saber o que está na mente dos outros!

Da própria mente de quem pensa o sinal, Calvino passa para a identidade deste alguém que produziu o sinal. Qfwfq diz: era o meu sinal, o sinal de mim. Eis agora a relação entre linguagem (ou signos de um modo geral) e identidade: o signo produzido, possuído e utilizado como algo que diz a respeito de quem o produz, possui e utiliza.

A questão da identidade viria a ser um tema especial no desenrolar do conto. No entanto, antes de se delongar sobre isso, num lampejo linguístico, Calvino discute a dupla articulação da linguagem.

Vejamos como isso ocorre. A fixação pela lembrança do sinal leva Qfwfq à tentar esmiuçar o seu sinal em partes menores, ele procura como decompô-lo e reorganizar os fragmentos de expressão a fim de criar novos sinais ou uma série de novos sinais. Mas o exercício é frustrado pela memória da personagem que não consegue recordar com precisão o sinal…

Não consegue recordar ou simplesmente porque não há como recordar aquilo que é preciso para essa decomposição, isto é, sua forma? Calvino conhecia bem a noção de valor linguístico, de como o valor de um signo (sim, no sentido saussuriano) é determinado por aqueles que o circundam num sistema. Isso pode ser visto, de um modo mais refinado e mais de uma vez, em suas descrições n’As cidades invisíveis (livro publicado sete anos depois das primeiras cosmicômicas): como determinado emblema, edifício ou parte da cidade se opõe/liga com as outras e como são determinados por essa relação.

Para Qfwfq, a memória fraca não era um problema, afinal, ele reencontraria o sinal quando a rotação galáctica fosse completada. No entanto, para o desespero da personagem, o sinal não está lá. Ou melhor, estava, mas alterado, rasurado, usurpado.

E aqui temos algo interessante. Mais do que uma simples rasura no sinal original, o que Qfwfq encontrou foi um sinal de uma intervenção em seu sinal. Talvez possamos dizer que foi um quase sinal, um tanto bastardo, mas não tão bastardo quanto o próximo sinal que Qfwfq veria (e agora veria com os olhos que a natureza finalmente o proveu): uma cópia do seu sinal feita num outro ponto do universo.

Além de iniciar uma brincadeira sobre o plágio e a identidade, parece-me que aqui há uma sacada inteligente de Calvino, tenha ele planejado essa interpretação ou não. Se desconsiderarmos a rasura no sinal de Qfwfq como um novo sinal, o segundo sinal criado é uma cópia (“tosca, imprecisa e absurdamente pretensiosa” como diz o velho Qfwfq), ou se aproxima de ser uma cópia, porque é assim que novos signos são produzidos — e não de todo um ato malicioso de Kgwgk.

Quando uma nova fatia do conteúdo é recortada e necessita-se de um significante para expressá-lo, é muito raro para qualquer linguagem (não necessariamente as verbais, mas especialmente para elas) criar um significante ex nihilo.

Criar um significante totalmente diverso daqueles que já existem, mesmo sendo uma combinação de uma série de elementos discretos oferecidos pela linguagem em questão, é algo muito custoso na dupla acepção do termo. Ou seja, é algo trabalhoso para aqueles que usam tal linguagem, mas é algo caro, vai na contramão do que se chama de economia da língua.

Perdoemos, então, pelo menos em parte, o ato de Kgwgk. Afinal, talvez, do mesmo modo que Qfwfq só pôde ter algo para se pensar ao criar seu sinal, Kgwgk queria não só algo para se pensar, mais enriquecer o seu pensamento além de um único signo.

Após o plágio de Kgwgk, Qfwfq decide fazer um novo sinal, um sinal moderno, pois agora as coisas estavam “começando a dar forma de si”. É o surgimento daquilo que nos permite propriamente apreender um signo, seja material ou inteligivelmente: a forma.

Calvino não explorará a “forma” no sentido inteligível, o que seria discutir sobre a forma do conteúdo hjelmsleviana, mas sim, a forma material, aquela que é perceptível e manipulável. E aqui, mais uma vez, deparamo-nos com um parágrafo que pode ser lido em diferentes níveis.

É um trecho interessante porque pode ser lido à luz das discussões sobre o estruturalismo, que era a corrente pop na época que Calvino escreveu o conto.

Embora Qfwfq, por um momento, tenha parecido satisfeito com o novo sinal criado e a possibilidade de dá-lo uma forma, há ainda aquela velha fixação pelo sinal original, primordial. A personagem tenta recuperar esse sinal, “o sinal verdadeiro”, algo completamente fugidio, que, na verdade, nunca pôde ser predicado… Creio que aí está, em poucas linhas, uma menção de Calvino ao estruturalismo ontológico e sua busca por encontrar “a Estrutura das estruturas”.

(Uma outra teoria interessante seria que a consciência do que é interno e externo, o discernimento entre o que é o limite do corpo e do mundo, ainda estava demasiadamente embaçada em Qfwfq naquele momento do universo. Nessa teoria, Qfwfq confunde criar o sinal empiricamente com pensá-lo, e, no máximo, ele mesmo seria o sinal. Mas essa já é uma “viagem” maior do que a que o Sol faz para circular a Galáxia…)

Mas bom, se a recuperação desse sinal verdadeiro é muito árdua (ou inalcançável), a personagem tem que lidar com o que está a sua disposição no momento. No entanto, Qfwfq vê que as formas são cambiantes e, principalmente, o julgamento que se tem sobre elas. Ora, Calvino fala das diferentes percepções estéticas ao longo dos anos, como dado estilo pode ser lido num determinado período.

Assim, descobrindo que seu “novo” sinal já era antiquado no momento em que foi criado, Qfwfq fica apreensivo pois:

Os sinais servem também para que se possam julgar aqueles que os traçam, e que no espaço de um ano galáctico os gostos e as ideias têm tempo de mudar, e a maneira de considerar aquilo que vem antes depende do que vem depois.

O signo produzido, seu “estilo” e sua identidade “própria” apontam para quem o produziu, a sua concepção do que é bom ou ruim e, logo, a identidade desse emissor.

Assim, incansavelmente, Qfwfq tenta reencontrar esse sinal primordial, pois encontrá-lo é poder reconhecer seu estilo absoluto, acima de todos os outros — principalmente sobre os sinais-rasuras que Kgwgk fez pelo universo!

E foi quando justamente a busca parecia inútil que um surto de esperança tomou conta de Qfwfq. Ao perceber que o tempo age sobre os sinais, isto é, os modifica em algum nível a ponto de amenizar as “rasuras” feitas por Kgwgk em seus sinais, quem sabe até aquela primeira rasura no primeiro sinal.

A questão passa a ser, então, o reencontro tête-à-tête, e não a recordação mental. O problema é que, à esse ponto da narração, o mundo já mudou demais. Os sinais se multiplicaram e aqui, por meio de Qfwfq, vem expressa uma opinião de Calvino que pode ser vista em alguns de seus textos: o incômodo diante da saturação dos signos nos centros urbanos. Qfwfq diz: “não exagero se disser que os anos galácticos que se seguiram foram os piores que já vivi”.

Uma longa descrição da multiplicação de signos, dos banais aos essenciais, leva ao melancólico último parágrafo do conto. A busca pelo sinal, mais do que isso, pela identidade também primordial da personagem, é dada como perdida. E todas as características da intenção inicial desse sinal estão perdidas nos outros que surgiram: pela quantidade de sinais, é impossível se orientar sem se confundir esse ponto com o outro ponto já demarcado.

Se, no começo, era dificílimo destacar o sinal do espaço, agora é o espaço que não consegue ser distinguido, percebido sob a massa de sinais. O simulacro tomou a realidade:

No universo já não havia um continente e um conteúdo, mas apenas uma espessura geral de sinais sobrepostos e aglutinados que ocupava todo o volume do espaço, um salpicado contínuo, extremamente minucioso, uma retícula de linhas, arranhões, relevos e incisões; o universo estava garatujado em todas as suas partes e em todas as suas dimensões. Não havia mais como fixar um ponto de referência: a Galáxia continuava a girar, mas eu não conseguia mais contar seus giros, e qualquer ponto podia ser o de partida, qualquer sinal acavalado nos outros podia ser o meu, porém de nada me serviria descobri-lo, tão claro estava que independentemente dos sinais o espaço não existia e talvez nunca tivesse existido.

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