A Taça de Cristal (ou porque a tipografia deve ser invisível)

Beatrice Warde l 1930

olivier viteli
10 min readMay 30, 2020

Tradução retirada do livro “Teoria do Design Gráfico”, organizado por Helen Armstrong, traduzido por Claudio Alves Marcondes. Cosac Naify, 2015, pp. 47-54.

Imagine que você está diante de um jarro com vinho. Pode escolher o seu vinho predileto para essa demonstração imaginária, mas que seja um tinto de tons avermelhados intensos e reluzentes. E à sua frente estão duas taças.
Uma é de ouro sólido, entalhado com os mais requintados padrões. A outra é de vidro transparente como cristal, tão fino e translúcido quanto uma bolha. Sirva o vinho e beba; conforme a taça que escolher, vou saber se você é ou não um conhecedor de vinhos. Pois, se você não tiver nenhum tipo de sentimento pelos vinhos, irá preferir a sensação de bebê-lo de um recipiente que talvez tenha custado milhares de libras esterlinas; mas, se você for um membro dessa tribo em via de desaparecimento, a dos apreciadores de safras excepcionais, terá preferido a taça de cristal, pois nesta tudo é calculado para revelar, em vez de ocultar, a beleza daquilo que deve conter.

Perdoem-me o emprego dessa metáfora prolixa e fragrante, mas logo ficará evidente que quase todas as virtudes de uma perfeita taça para vinho têm um paralelo na tipografia. Há, por exemplo, a comprida e fina haste que poupa a própria taça das impressões digitais. Por quê? Porque nenhuma nuvem deve se interpor entre os olhos e o âmago flamejante do líquido. Não têm as margens nas páginas de um livro significado similar, a saber, o de evitar que os dedos se coloquem sobre o texto? Mais uma coisa: o vidro é incolor ou, no máximo, só ligeiramente tinto na taça, pois o conhecedor avalia o vinho em parte com base em sua cor, e impacienta-se com tudo o que a altera. Há um milhar de maneirismos tipográficos que são tão insolentes e arbitrários quanto servir um vinho do Porto em copos de vidro verde ou vermelho! Quando a taça tem uma base que parece pequena e insegura demais, não faz diferença com que engenhosidade é equilibrada; você sempre fica nervoso com a possibilidade de que ela tombe. E há maneiras de compor linhas que, embora de aparência bem razoável, deixam o leitor subconscientemente preocupado, temendo duplicar as linhas, ou ler três palavras como se fossem uma, e assim por diante.

Ora, quem primeiro escolheu o vidro — em vez de cerâmica ou metal — para conter o vinho era “modernista”, no sentido em que pretendo usar o termo. Ou seja, a primeira coisa que indagou desse objeto específico não foi “Como deve ser a sua aparência?”, e sim “O que ela deve fazer?”, e nesse sentido toda a boa tipografia é modernista.

O vinho é uma substância tão estranha e poderosa que já foi usado no principal ritual religioso de um tempo e lugar, e, em outro, foi atacado a machadadas por uma megera. Há apenas uma coisa no mundo capaz de despertar e alterar assim o espírito humano, e essa é a expressão coerente do pensamento. Esse é o principal milagre do ser humano, algo que lhe é exclusivo. Não há “explicação” para o fato de que posso emitir sons arbitrários e estes permitem que alguém completamente estranho acompanhe os meus pensamentos. Trata-se de algo absolutamente mágico que eu tenha a capacidade de, por meio de marcas negras sobre o papel, manter uma conversa com uma pessoa desconhecida que está no outro lado do mundo. Conversar, divulgar, escrever e imprimir são, numa acepção bem literal, meios de transferência de pensamentos, e é essa capacidade e essa vontade de transferir e receber conteúdos mentais que, quase por si só, está na origem da civilização humana.

Quem estiver de acordo com isso também vai concordar com a minha ideia principal, a saber, que o mais importante a respeito da tipografia é o fato de ela transmitir pensamentos, ideias e imagens de uma mente para outras. Essa colocação é o que se poderia chamar de porta de entrada para a ciência da tipografia. Lá dentro encontram-se centenas de aposentos; porém, a menos que se admita que a impressão tem por objetivo transmitir ideias específicas e coerentes, não há nada mais fácil do que entrar na casa errada.

Antes de perguntar aonde nos leva tal colocação, vamos ver aonde ela necessariamente não nos leva. Se os livros são impressos para que sejam lidos, precisamos distinguir entre legibilidade e o que um oftalmologista chamaria de “capacidade de enxergar”. Uma página composta em Bold Sans de catorze pontos é, segundo testes de laboratório, mais “legível” do que outra composta em Baskerville de onze pontos. Nesse sentido, alguém que discursa em público é mais “audível” quando berra. Mas uma boa elocução é aquela que não se deixa notar como voz. De novo a taça translúcida! Nem é preciso dizer que, quando se começa a acompanhar as inflexões e os ritmos da fala de alguém que discursa, o mais provável é cairmos no sono. Quando ouvimos uma canção em língua que não entendemos, parte da nossa mente de fato cai no sono, permitindo o exercício de sensibilidades estéticas bem distintas, livres da faculdade da razão. É desse modo que atuam as artes plásticas. Mas este não é o propósito da impressão tipográfica. Os tipos bem empregados são invisíveis enquanto tipos, assim como a voz ideal é o veículo despercebido para a difusão de palavras e ideias.

Podemos afirmar, portanto, que a impressão tipográfica pode ser encantadora por muitos motivos, mas que a sua relevância maior é como um meio para realizar algo. Portanto, não convém considerar todo tipo de material impresso como obra de arte, em especial de belas-artes, pois isso implicaria reconhecer como seu principal objetivo a expressão da beleza em si e o deleite dos sentidos. Hoje a caligrafia pode ser quase considerada uma das belas-artes, uma vez que se eliminou a sua primeira função econômica e educativa, mas a impressão em inglês não pode ser incluída entre as artes até que a língua inglesa deixe de transmitir ideias às gerações futuras, e até que a própria tipografia transfira a sua utilidade a um sucessor ainda inimaginável.

Não tem fim o dédalo das práticas tipográficas, e essa ideia do impresso como meio de transmissão é, pelo menos na opinião de todos os grandes tipógrafos com quem tive o privilégio de conversar, o único indício que nos serve de orientação através do labirinto. Sem essa humildade essencial de espírito, já vi designers fervorosos equivocarem-se de maneira irremediável, cometerem os erros mais absurdos por causa do entusiasmo excessivo, muito mais do que eu teria considerado possível. E com essa pista, esse propósito no fundo da sua mente, torna-se possível fazer as coisas mais inusitadas, e concluir que eles lhes justificam de modo triunfal. Não há desperdício de tempo em voltar aos fundamentos básicos e raciocinar a partir deles. Em meio à afobação dos problemas específicos, creio que vocês vão considerar proveitoso dedicar meia hora a um conjunto amplo e sensato de ideias relativas a princípios abstratos.

Certa vez conversei com um indivíduo que desenhou um tipo para publicidade muito agradável e que, sem dúvida, todos vocês conhecem. Comentei então algo a respeito da opinião dos artistas sobre um certo problema, e ele respondeu com um belo gesto: “Ah, minha senhora, nós, artistas, não pensamos — nós sentimos!”. No mesmo dia citei esse comentário a outro conhecido meu, um designer, que, de inclinação menos poética, murmurou: “Não estou me sentindo muito bem hoje, penso eu!”. Tinha razão, ele de fato pensava; era do tipo que pensava; e por isso não é um pintor tão bom — e, para mim, um tipógrafo e desenhista de tipos dez vezes melhor do que o outro, que instintivamente evitava tudo o que fosse tão coerente como uma razão.

Sempre desconfio do entusiasta da tipografia que recorta a página impressa de um livro e a emoldura na parede, pois acho que, para satisfazer um prazer sensorial, ele mutilou algo infinitamente mais importante.

Lembro-me de que T. M. Cleland, o famoso tipógrafo americano, certa vez me mostrou um layout muito belo para um folheto da Cadillac que usava ornamentos coloridos. Como não recebera o texto definitivo para usar no projeto de suas páginas, ele mandara compor as linhas em latim. Isso não se devia apenas ao motivo que deve estar na cabeça de todos vocês, se já viram o famoso texto Quousque Tandem das antigas fundições de tipos {isto é, que o latim tem poucas letras descendentes e, portanto, resulta em linhas extraordinariamente regulares). Não, ele me contou que originalmente havia composto o “palavreado” mais tedioso que poderia arranjar (ouso dizer que era do Hansard), mas constatou que o sujeito a quem apresentou o projeto começara a ler e comentar o texto. Eu disse algo sobre a mentalidade dos membros da diretoria, mas o sr. Cleland replicou: “Não, a senhora está enganada. Se o leitor não fosse praticamente forçado a ler — se não tivesse visto aquelas palavras subitamente imbuídas de prestígio e significado-, então o layout teria sido um fracasso. Compor o texto em italiano ou em latim é apenas uma maneira conveniente de dizer ‘Este não é o texto que vai aparecer”’.

Permitam-me passar às minhas conclusões específicas à tipografia de livros, pois aí trato de todos os elementos fundamentais, e em seguida abordar pontos relativos à publicidade. Quanto aos livros, a tarefa do tipógrafo é colocar uma janela entre o leitor dentro de um aposento e a paisagem, que são as palavras do autor. Ele pode instalar um vitral de maravilhosa beleza, mas que não funcione como janela; ou seja, pode lançar mão de tipos complexos e requintados, como uma fonte gótica, que é algo para ser visto, mas não para se ver através dele.

Ou pode trabalhar com o que chamo de tipografia “transparente” ou “invisível”. Em casa tenho um livro do qual não tenho a menor lembrança no que se refere à aparência dos tipos; quando penso nele, tudo o que vejo são os Três Mosqueteiros e os seus companheiros pavoneando-se para cima e para baixo nas ruas de Paris. O terceiro tipo de janela é aquele no qual o vidro está fragmentado em placas relativamente pequenas separadas por chumbo, e isso corresponde ao que hoje se denomina “impressão fina”, no sentido de que você fica pelo menos consciente de que há uma janela ali, e de que alguém apreciou construí-la. Isso não é reprovável, devido a um fato muito importante que tem a ver com a psicologia da mente subconsciente. Ou seja, o fato de que o olho mental focaliza através do tipo e não sobre ele. O tipo que, por qualquer distorção arbitrária do design ou excesso de “cor”, obstrui o quadro mental a ser transmitido é um tipo ruim. O nosso subconsciente sempre teme os erros (nos quais podemos incorrer levados pela composição ilógica, pelo espacejamento apertado e pelas linhas longas demais e com pouco entrelinhamento), os aborrecimentos e as intromissões. O título corrente que insiste em atrair a nossa atenção, a linha que mais parece uma única e longa palavra, as maiúsculas espremidas e sem qualquer espaço fino — tudo isso significa desatenções subconscientes e perda de foco mental.

E, se tudo isso vale para a impressão de livros, até mesmo nas mais requintadas edições limitadas, é cinquenta vezes mais evidente na publicidade, em que a única justificativa para a aquisição de espaço é a difusão de uma mensagem — que se quer implantar como um desejo, diretamente no espírito do leitor. É tragicamente fácil jogar fora metade do interesse do leitor por um anúncio ao se compor o texto simples e atraente com um tipo desagradavelmente estranho ao que se considera classicamente razoável em termos de tipografia de livro. Chame a atenção como quiser por meio do título, e recorra a qualquer aparência bela nos próprios tipos se você está convencido de que o texto não presta para vender o produto; mas, se tem a satisfação de trabalhar com textos bons, não se esqueça de que milhares de pessoas pagam um dinheiro suado pelo privilégio de ler páginas de livros compostas de maneira comedida, e que apenas a mais desenfreada inventividade pode impedir as pessoas de ler um texto de fato interessante.

A tipografia requer humildade de espírito e, devido à falta desta, muitas das belas-artes estão agora mesmo naufragando com experimentos autorreferentes e piegas. Não há nada de simples ou enfadonho na produção de uma página translúcida. A ostentação vulgar é duas vezes mais fácil enquanto disciplina. Quando nos dermos conta de que a tipografia feia jamais desaparece, então seremos capazes de alcançar a beleza, tal como os sábios alcançam a felicidade ao visar outro objetivo. O “tipógrafo obstinado” conhece a superficialidade dos ricos que odeiam ler. Não é para estes a apreciação detida de serifas e espaços entre letras, tampouco eles vão se preocupar com as difíceis decisões sobre espaços finos. Ninguém (a não ser outros profissionais) saberá apreciar metade que seja da habilidade desses tipógrafos. Mas vocês podem passar incontáveis anos de feliz experimentação projetando uma taça cristalina digna de receber a vindima do intelecto humano.

Quem é Beatrice Warde

Nascida em Nova York em 1900, é uma das mais renomadas tipógrafas do mundo. Sua carreira foi marcada por um cuidado com a tipografia abraçando a sua história e a aplicando no mundo em que vivia.
Teve um papel de destaque na empresa
Monotype, chegando a ocupar o cargo de diretora de marketing. Sendo, lá dentro, uma das responsáveis pela inserção da tipografia Gill Sans na Inglaterra.

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