Criamos um app pra índio.

E foi um dos maiores aprendizados de nossas vidas!

Thiago Hassu
12 min readDec 11, 2017

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Ps.: Essa é uma tentativa de reproduzir o conteúdo da palestra que dei no ISA — Interaction South America 2017.

O que já aprendi nessa vida?

Acho que faz bastante sentido começar dividindo outros aprendizado da minha vida. Mas se ainda sim quiser ir direto ao ponto, pule direto para “O projeto”. Combinado? :)

Lição 01: desigualdade existe. E mora em um belo croissant de chocolate!

Quando era ainda muito novo tive uma oportunidade que mudou minha vida: uma bolsa de estudos em uma das melhores escolas de Santos. Foi mais ou menos nessa mesma época que descobri a desigualdade. Naquele tempo representado por um simples croissant de chocolate: a gostosura mais cara da cantina que muito raramente tinha dinheiro pra comprar.

Sim, deveria estar grato pela oportunidade e não preocupado com o lanche. Mas eu era só uma criança. E no alto de toda a minha inocência era aquilo que me tornava diferente dos meus amiguinhos.

O tempo foi passando, outros símbolos de que talvez o mundo não era um lugar muito justo foram surgindo e tudo isso teve reflexo na minha personalidade: virei um indignado de carteira. Passei a sonhar grande. Muitas vezes grande até demais!

Lição 02: você aí, meu amigo designer, tem potencial pra resolver problemas muito maiores.

Desde que me entendo por gente “ficar rico” sempre foi meu maior objetivo. Menosprezava quem não tivesse o nobre “espírito empreendedor” e farejava oportunidades em todos, absolutamente todos, lugares. Tentei de tudo. Sempre tive projetos paralelos, um mais megalomaníaco do que o outro.

Meu filtro nunca foi a causa, mas sim a possibilidade daquele negócio me “deixar rico” a curto prazo! E em mais uma dessas empreitadas, decidi abrir um studio mobile focado em apps uns 7 anos atrás (o mercado estava começando e parecia uma ótima oportunidade de conquistar minha sonhada Land Rover).

Chamei dois amigos e fomos pra cima. Um deles era o Andrézinho, um dos caras mais incríveis que conheci até hoje. Gente boa ao extremo. Designer genial.

Largamos tudo pra apostar em mais esse sonho. Parecia caminhar bem. Mas aproximadamente com um mês de empresa, o André descobriu que estava com câncer. Foi um balde de água fria. A gente fazia reuniões no hospital, planos e mais planos.

Foram 8 meses de tratamento. Muitos altos e baixos. Naquela altura a empresa é o que menos importava. Em nossas conversas dizia que se ele quisesse começar a tricotar, eu “compraria a linha”. Toda aquela situação naturalmente fez com que ele entrasse em um processo de reflexão profunda.

Consigo lembrar da sua frase como se fosse hoje:

“Thiagão, olha onde eu tô cara, olha as pessoas ao meu redor. A gente tem potencial pra caramba, a gente tem um milhão de ideias. Mas poxa, a gente fica fazendo coisa pra marquinha idiota, fazendo joguinho… Por que a gente não tenta mudar o mundo?”

O André faleceu. Lembro a dor insuportável daquele dia. Mas foi a partir dali que entendi qual seria o sentido da minha vida.

Onde você estiver, obrigado cara! Um dia nosso sonho vira realidade :)

Lição 03: trabalhar com impacto social é a coisa mais maravilhosa do mundo. Experimente! ❤

Agora eu tinha uma missão. Uma senhora missão por sinal. E não tinha a menor ideia de por onde começar. Decidi ir estudar, buscar embasamento é o que me parecia fazer mais sentido.

Fiz pós-graduação, estudei inovação como um condenado e me apaixonei pelo conceito dos Negócios de Impacto Social. Pra quem não conhece, é uma “filosofia empreendedora” que busca resolver problemas sociais através de modelos de negócio rentáveis, onde o lucro é o que torna possível gerar impacto em escala.

Me soava genial: mudar o mundo e ganhar dinheiro ao mesmo tempo. E de fato é! Fiz cursos na área, era o meio onde eu queria estar.

E em um desses cursos, conheci o Buiu. Um cara fantástico que fazia parte da cruel estatística brasileira: preto, pobre e favelado seduzido pelas drogas. Mas um projeto social colocou ele na linha novamente. Queria retribuir, mas só sabia jogar bola. Foi então que criou o projeto Futebol e Leitura, onde a criançada precisa ler antes do treino. GENIAL!

Esse projeto evoluiu e virou o Viela, um projeto social com o objetivo de dar acesso a coisas que a juventude não teria no Jardim Ibirapuera (a comunidade onde cresceu, vive até hoje e pretende jamais abandonar). Por lá tem cinema, aula de inglês, ballet, jiu-jitsu e muito mais.

Me apaixonei pela história, entendi que os “croissants da vida” são apenas croissants e tentei ajudar do jeito que podia! Mas ainda sim, comecei a perceber que estava fazendo um trabalho de formiguinha. Que fique bem claro: é possível (e muito nobre) mudar o mundo mudando uma pessoa por vez. Mas eu queria tentar fazer isso em escala. Sempre achei que o design era capaz disso! ❤

“Se design
não for sobre
fazer a diferença,
é sobre o quê?”
- Meu Mantra

Lição 04: já parou pra pensar se está no caminho certo hoje? Se perder faz parte, não se preocupe.

Deixei um pouco os negócios de impacto social e voltei pro mundo das consultorias de design com a missão de achar uma resposta: é possível gerar impacto REAL em escala?

Um salário bacana, bons amigos e muitas outras distrações depois, percebi que tinha esquecido o que tinha ido buscar. O estalo foi quando liderei um projeto pra um cliente de “valores” pra lá de duvidosos.

Nesse momento entendi que precisava “tentar mais uma vez”. Larguei tudo, convenci o Diogo Kpelo a entrar nessa loucura comigo e começamos a Meiuca. Hoje nos posicionamos como uma “parceira de design digital com princípios”. Estamos tentando trazer pro mercado uma cultura de pro bono e levamos MUITO a sério o impacto de tudo o que fazemos (não pegamos trabalhos que geram impacto negativo, começamos a conversar se o projeto for neutro e fazemos de tudo pra viabilizar se o impacto for positivo).

E, em um futuro não tão distante, vamos nos transformar em uma venture builder com foco em negócios capazes de gerar uma transformação real. Aguarde, aguarde! \o/

O projeto

Quando começamos a Meiuca, precisávamos resgatar nossa crença pelo Design como vetor de transformação. E entendemos que a melhor forma de fazer isso seria começar por um pro bono. Definimos 3 filtros para a escolha do projeto: aprendizado, impacto e visibilidade. E começamos nossa busca!

Foi assim que chegamos até o SOMAI, um projeto do IPAM — Instituto de Pesquisa da Amazônia, um dos ganhadores do Google Impact Challenge Brazil 2016.

A proposta do projeto é ajudar os povos indígenas a lidarem melhor com as mudanças climáticas. O clima anda cada vez mais imprevisível, os sinais da natureza cada vez mais confusos.

Os índios cuidam da nossa natureza, ajudar eles a lidarem com as consequências dos NOSSOS atos fazia bastante sentido pra mim. Nossa proposta seria trabalhar em um re-design do que já foi feito até então (feito com muito esforço e carinho, mas sem o olhar de design que deveria). Eles toparam.

O usuário

Com certeza o maior desafio do projeto era entender nosso usuário. Não temos contato com índios no dia a dia, não conhecemos sua cultura e, muitas vezes, somos levados por um mar de preconceitos. Existe uma grande miopia sobre o assunto.

Além da barreira da falta de empatia, nos surgiu dúvidas muito básicas que ainda não haviam sido respondidas: entendem “graus celsius”? Como lidam com unidades de medida? Será que entendem “metros”? E a passagem de tempo? Horas? Contam os dias, meses, anos?

Nem o “Google” tinha essas respostas.

Queríamos dar um passo atrás, entender inclusive se aquela dor (se relacionar melhor com as mudanças climáticas) fazia sentido de verdade. Foi então que decidi ir viver como um índio por uma semana. Não fui para falar do projeto, apenas pra conhecer a cultura. O lugar escolhido foi o Parque Indígena do Xingu, na aldeia Tehuhungu.

Aldeia Tehuhungu — Parque Indígena do Xingu

Por lá vivem certa de 35 indígenas Kalapalo, sua língua é Caribe, vivem de pesca, roça e mantém seus hábitos intactos até hoje.

Minha primeira grande surpresa foi descobrir que existem 305 etnias indígenas no Brasil (com culturas e costumes particulares), que entre elas se falam 279 línguas diferentes e estão divididos em 505 terras indígenas. E mais: que essa população é de cerca de 900mil brasileiros, segundo Censo de 2010.

Índios Kalapalo fazendo a dança do peixe.

Comi peixe com biju (a base da sua alimentação), dancei, brinquei com as crianças sem falar português (foi incrível a conexão que criamos) e tive uma aula de cultura que todos nós deveríamos ter tido muito tempo atrás, nos tempos de ensino fundamental.

Guerreiro “Brancão da Porra” e o famoso Biju com Peixe.

Foram muitas as demonstrações de carinho, de senso de comunidade e provas de que temos MUITO, mas muito, a aprender com eles. Um exemplo disso foi quando perguntei como era escolhido o Cacique (a figura de liderança de uma aldeia). A resposta foi genialmente simples:

“O posto de Cacique pode ser passado de pai pra filho, mas qualquer um pode ser eleito Cacique. O importante é ter o coração bom, porque ele vai precisar tomar decisões com o coração.”

Será que vai chegar o dia em que vamos escolher nossos representantes assim? E de fato, o Aguga (Cacique da Tehuhungu), foi uma das pessoas mais gentis e incríveis que conheci até hoje! :)

Alguém aí tem uma selfie com um Cacique?

Olhamos o índio com olhos de julgamento, vendo neles potenciais “pagadores de imposto”, chegando ao absurdo de chama-los de vagabundos enquanto deveríamos enxergar neles nossa cultura mais pura. E viva!

Durante a viagem tive uma dessas lições que levamos pra vida. Estávamos fazendo um passeio de barco pelo rio quando avistamos um tamanduá bandeira na margem. Um lindo animal ameaçado de extinção.

Aproximamos o barco pra tirar algumas fotos. Foi nesse momento que a Samantha, a indígena que nos levou até lá, percebeu que ele não estava bem. Não pensou duas vezes, pediu pra encostar o barco e disse que levaríamos ele para a aldeia. Chegando lá, sua mãe que é curandeira fez algumas compressas de ervas, ele parecia ter sido atacado por uma onça. A galera pegou pequenas frutas e fizeram algumas armadilhas pra pegar formiga. Dia seguinte, o animal que mal se movimentava, estava andando.

Então hoje quando alguém diz que índio é “vagabundo”, só consigo retrucar dizendo que o trabalho deles é preservar a natureza. E entre nós, um ofício muito mais nobre do que a imensa maioria das tidas “carreiras de sucesso”. Incluo “fazer um e-commerce” nesse bolo!

Outro ponto muito importante é entendermos o que faz deles índios. Sempre que comento desse projeto ouço o absurdo: “Índio com celular? Ah, então não é índio”. Um índio é feito da sua cultura, seus costumes, da sua maravilhosa relação com a natureza. Não é a chegada da tecnologia ou de pequenas conveniências que faz deles “menos índios”.

Apenas pra ficar mais claro, poderíamos classifica-los em 3 grandes grupos:

Urbanos
- Aqueles que vivem na cidade com hábitos já muito semelhantes aos nossos.

Rurais
- Vivem em aldeias, preservam seus hábitos, mas já é possível observar alguns poucos elementos da vida no campo, como utensílios domésticos, energia elétrica a base de gerador e etc.

Isolados
- As poucas etnias que nunca tiveram contato com o “branco”, esses povos tem sua localização em segredo pelas instituições responsáveis e alguns são inclusive nômades.

O foco do projeto está no grupo do meio, os rurais.

Algumas dessas aldeias já contam inclusive com internet a satélite, como a que visitei. A velocidade e o raio de alcance são bem baixos, mas é incrível ver que já estão conectados e entender sua relação com a tecnologia.

No caso da Tehuhungu, tinham apenas dois celulares. E faziam alguns usos bastante interessantes como usar o WhatsApp enviando áudios em Caribe pra conversar com os indígenas que estão vivendo na cidade. Usavam também para enviar fotos dos seus artesanatos, que o pessoal tentava vender para todo o Brasil. Depois davam um jeito de despachar por correio na cidade mais próxima (naquele caso, 90km de distância). Além disso, alguns possuem Instagram e Facebook (mantenho contato com eles até hoje \o/).

O celular também é muito utilizado para registrar as danças e depois mostrar para os mais jovens. Incentivar a cultura para combater o êxodo é muito importante!

Haru conversando com familiares da cidade.

Durante minha estadia fiz alguns exercícios pontuais pra entender os padrões de interação que teriam mais facilidade. Também pedia para as crianças desenharem, queria entender como representavam graficamente cada elemento. Foi incrível!

Sem dúvida alguma a experiência mais rica da minha vida. Voltei cheio de insights e começamos a colocar a mão na massa! As telas que você vai ver a partir de agora é nosso ponto de partida, que ainda vai passar por um longo processo de validação.

03 principais áreas do app: perfil, home e câmera (report).
Background modular, tudo em áudio e passagem dos dias orientada pelo sol.
Outras telas do app.

Tudo em áudio
Não leem, escrevem ou falam português, mas entendem a “língua falada”.

Alertas pontuais
Foco de incêndio, alerta de desmatamento e muito mais.

Previsão com dicas
Personalizadas de acordo com o modo de subsistência da aldeia (roça, pesca, caça e etc).

Nascer e pôr do sol
Essa é a forma mais eficiente de entenderem a passagem dos dias.

Background modular
Muda de acordo com período e previsão pra facilitar entendimento.

Mas as mudanças climáticas são o único problema?

Sem dúvida é um problema que deve ser combatido. Fica ainda mais claro quando entendemos que hoje não interpretam muito bem os sinais da natureza não só pela instabilidade do clima, mas pela dificuldade de passar essa habilidade para os mais jovens.

Mas ainda sim, entendemos que existiam outros desafios:

Cultura de resistência

O êxodo indígena é um grande problema, passar a cultura para os mais jovens está cada vez mais difícil. Também é muito importante mostrar a riqueza dessa cultura à sociedade para enfraquecermos essa barreira da falta de empatia. Por isso criamos uma área no app onde é possível fazer reports do seu dia a dia.

Pefil com reports + guardiões (colaboração).

Outro ponto fundamental é trazermos a sensação de colaboração, pra que toda a comunidade indígena (cada um em sua aldeia), entenda que estão todos juntos nessa. Ainda na aba do perfil conseguem ver outros guerreiros que estão participando e colaborando com o projeto.

Proteger a terra

Desmatamentos, incêndios criminosos, mineração ilegal… Também é possível denunciar qualquer irregularidade em foto ou vídeo. E para que todas essas denúncias sejam efetivas, criamos uma maneira delas acontecerem offline: no feedback damos uma frequência de rádio amador (muito utilizado nas aldeias) do orgão capaz de ajudar. Assim não ficamos dependentes da internet (baixa capacidade e abrangência) e nem de sinal de telefone para uma eventual ligação ou SMS por simplesmente não existir.

Exemplo de report negativo e positivo.

Outra funcionalidade com esse objetivo foi a de oferecer o perímetro da terra e permitir que com um simples toque na tela entenda a distância que está do limite da terra indígena. Pra algumas aldeias é muito importante vigiar as divisas!

Distância em passos e previsão de tempo.

Gerar empatia

Além disso tudo, entendemos que a falta de empatia do branco é a maior ameaça para a cultura indígena. Afinal, uma lei pode ser aprovada por simplesmente não estarmos nem aí. E isso pode ser o suficiente para colocar tudo a perder. Ainda mais em tempos onde o governo atual só encontra apoio na “maravilhosa” bancada ruralista.

Pensando nisso, adicionamos ao projeto a ideia de criar um grande portal onde todos conseguirão navegar pelos reports. Tanto os positivos (testemunhos do dia a dia indígena), como os negativos (denúncias). E assim, enxergar o Brasil que o índio vê.

Além disso, a proposta é pedir a ajuda da sociedade para apoiar nossos guardiões com um valor mensal, que irá ajudar com a manutenção do projeto.

Algumas conclusões

Trabalhar com impacto é muito difícil, são muitas barreiras. Mas não tenho dúvida que a recompensa é igualmente grandiosa.

Hoje nossas melhores cabeças perdem tempo demais resolvendo problemas de negócio (me incluo nesse bolo). Por que não arrumar um pouquinho só de tempo pra resolver problemas maiores, problemas desse mundão? Lá na Meiuca estamos tentando. ❤

Esse projeto está só começando. E se quiser colaborar de alguma maneira, entre em contato com a gente. Será um prazer!

Pode ser por Facebook, mas se preferir: hassu@meiuca.design

E não deixe de dar uma olhadinha no projeto em nosso no behance. \o/

Muito obrigado! :)

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Thiago Hassu

Service/Business designer, CEO e Founder da Meiuca. Acredita que design é sobre fazer a diferença. E segue tentando! :)