Refavela

Henrique Faerman
6 min readJun 19, 2016

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A favela sempre foi negada como uma verdade
Antes era o lugar de onde só saiam os braços
Agora começam a sair cérebros também
Arte, cultura, moda e etc..
É um grito por respeito

(Eleomar Nepomuceno)

No Complexo da Maré, uma iniciativa de jovens estudantes da Escola Popular de Comunicação Crítica (Espocc), projeto do Observatório de Favelas, pretende disputar o imaginário popular das pessoas mostrando a favela como local de potência e favelados e faveladas como protagonistas da cidade, ampliando a perspectiva desses territórios ao revelar a realidade para “muito além do que se vê”, como sugere o slogan da campanha, que carrega em seu nome a essência de seu manifesto: a Favela 3D.

A partir dos três D’s (Disposição, Diversidade e Direitos), o projeto começou com uma ação de disposição, realizando intervenções artísticas com estêncil — técnica ligada ao grafite para aplicações rápidas de imagens — nos muros da cidade. Foram formados sete grupos de alunos para espalharem a mensagem “Favela 3D, muito além do que se vê” por alguns cantos do Rio de Janeiro, como na Lapa, em Madureira ou no Méier.

Nosso objetivo é mostrar para sociedade muito além do que já se fala sobre favela… A potência está em nós, a voz é nossa, e nós vamos construir essa nova narrativa como queremos, que a favela seja vista na cidade”

afirma Pedro Cruz, um dos cerca de 30 estudantes que participaram do planejamento e execução da campanha, que acontece de maneira transmídia, com ações tanto presenciais nas ruas, quanto online, como no compartilhamento de ideias e conteúdo através das redes sociais.

A proposta é dar valor e visibilidade às histórias interessantes e transformadoras de um povo predominantemente negro e nordestino, por vezes invisível, esquecido, ignorado. Histórias como a do Bhega, que leva em uma bicicleta um projetor, uma tela de plástico e exibe filmes para crianças na comunidade, o projeto Cinema no Beco. Ou então o caso do que dizem ser o único lugar no mundo em que é feito chuteiras próprias para a prática do futebol na areia, a sapataria da Rua Raul Brunini no Parque União, do “Paulinho da Sapataria”, que está lá com seu negócio há 40 anos.

Favela é potência, é a invenção de um lugar. A síntese de que tinha tudo pra dar errado mas que está dando certo, apesar de não ser aquela coisa romântica. É um lugar que tem sua vivência, sua vida própria. Às vezes a cidade está em silencio e a favela está pulsando. É muito louco isso.

Essas são algumas palavras de Felipe Sousa, 26 anos, o “Nyl”, apelido de suas heranças musicais na vida. Estudante na Espocc e agitador cultural nas ruas, Nyl é cantor de rap, ou como prefere autodenominar-se, MC, MC NyL desde os 16 anos, quando trocou os shows barulhentos de hardcore em Bento Ribeiro pela poesia cantante sobre o seu bairro, Irajá. O codinome vem dessa época, new metal. New. Nyl. Algo mais à brasileira. Com seu primeiro álbum Original da Pista gravado em 2009 pelo selo da Nova Black, videoclipe no canal Music Box Brazil e notáveis participações em shows como na abertura do Emicida no Viaduto de Madureira em 2011, ele é uma das caras que sintetiza a alma pujante da Favela 3D:

Muita gente cresceu ouvindo favela como sinônimo de bagunça, uma parada desorganizada, tipo: essa zona aí tá uma favela! E o favelado sendo aquela pessoa arruaceira, que fala alto, que interrompe o silêncio, que não tem um pingo de discernimento, de educação. A gente cresce com isso, a gente cresce num ambiente que mostra isso. Mas não é só isso.

Nyl na coletiva de imprensa da campanha

A ideia é tirar o estigma da periferia, quase sempre representada apenas pelas mazelas. Se pesquisar a palavra “favela” no banco de imagens do Google, por exemplo, logo na primeira página de busca, a tela do computador é ocupada por fotos e cenas de violência, pobreza, tráfico de drogas entre outras. A favela é apresentada majoritariamente, para moradores ou não, como um lugar de carência, um território essencialmente violento e ameaçador.

Não há o que romantizar. Lembro uma amiga falar sobre esse lado. Mas e os outros? As outras histórias. Como a narrativa da realidade pode ser amortizada a um discurso apenas? E a diversidade? E a alegria? O jogo de cintura? Como deixar de notar, passar desapercebido, a cultura da gambiarra? Essa verdadeira arte da improvisação recorrente nesses lugares. O ser humano, um ser adaptável. Pode viver com tampouco se for o jeito. Encontrar soluções para os mais variados problemas do cotidiano, com o que se tem por perto. Não é fascinante? Há um escritor no Brasil que disse em um texto que Garrincha era um gambiologista, pois dava nó nos adversários e costurava “uma dança do instante, tão imprevisível quanto casual e necessária”.

Quando se observa a favela de longe, de cima, se vê todo aquele emaranhado, aquelas habitações justapostas. A imponência do morro. As lajes. A cultura da laje. Os fios, vários caminhos. A complexidade. De repente um ou outro campo de futebol. Não se pode distinguir aonde começa um puxadinho e acaba outro barraco. Como isso tudo acontece? Ah, favela. Quantas tipos de vidas e sonhos correm por tuas veias, por estas vielas escondidas?

Há notória produção cultural popular e alternativa acontecendo nessas praças: eventos, festas, bandas ao ar livre, rap, exposição fotográfica, oficinas, residências artísticas, coletivos, ONGs; a favela não para. Na favela existem os viradores. Tem um garoto de 21 anos da comunidade do Boogie-Woogie, na Ilha do Governador, que fez um curta com cerca de R$100 denunciando o descaso ambiental com a baía de Guanabara. Treinamento Ambiental já foi enviado para os festivais de Berlim, London Independent Film e Newport Beach Films, concorrendo como curta independente, para orgulho do jovem Diretor, Roteirista e também estudante da Espocc, Fabrício Meilhac.

São vidas, sonhos e realizações dos mais variados sujeitos criativos e inventivos. Potentes.

Histórias que a favela esconde. Ou seriam histórias que não são contadas?

A ideia de construir um novo olhar sobre a cidade, que inclua periferia a partir do paradigma da potência, estimulando o caminho para convivência, a integração e a igualdade é um caminho necessário e prodigioso em construção.

Uma proposta de expansão do nosso olhar, para todos enxergarem a favela como um lugar de possibilidades, resistência, múltiplas histórias, originalidade e riquíssima diversidade cultural. A transformação do pensamento através do diálogo e compartilhamento de ideias que acendam ao olhar crítico e/ou que sirvam de exemplo, repertório e inspiração para quem está em busca de seu próprio potencial.

É preciso sucitar o empoderamento dos favelados e faveladas. É preciso falar sobre a favela. Refavela é a Favela 3D.

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