Não há nada que o impeça

Tecnologia sem cair em tecno-solucionismo

Henrique Vasconcelos
5 min readApr 28, 2023

Quando, em Dezembro de 2020, ao sugerir reuniões desfasadas à mesa do Natal e troca de compotas no jardim, o sub-director geral da saúde Dr. Rui Portugal rematou no seu semblante simpático e esperançoso com “Não há nada que o impeça”, o episódio provocou riso e troça em muitos círculos nacionais, desde o da medicina ao do comentariado de rede social. Apesar de dita em defesa de medidas de impacto discutível, esta frase teve o mérito de deixar a nu um ângulo de análise pouco explorado: só porque uma coisa se tem feito de uma certa forma, não é obrigatório que assim continue a acontecer. No fundo, foi o desmontar da falácia da tradição num contexto improvável, e é uma expressão que me tenho crescentemente apanhado a repetir.

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Defensores de medidas como o Rendimento Básico Incondicional (bem como os seus mais ferrenhos críticos) estão fartos de ouvir esta história, mas recapitulemos: em 1930, o economista britânico John Maynard Keynes — com pergaminhos que a história do século XX assegura fortes — estimou que cem anos depois (isto é, 2030, daqui a sete anos!) cada pessoa precisaria de trabalhar cerca de quinze horas por semana, devido à melhoria das condições económicas e sociais trazida por tecnologia emancipadora para o ser humano. E, contudo, aqui estamos. É óbvio para quem quer que esteja a ler estas palavras em 2023 que as estimativas não se concretizaram, nem mesmo depois de aceitarmos argumentos muito válidos como a desigualdade nas necessidades de trabalho: por muito que distribuíssemos pelos herdeiros milionários sem ocupação laboral as horas de trabalho que populações desfavorecidas (ou, para o caso, até o português médio) gastam da sua vida, acabaríamos ainda assim com bem mais que quinze horas por semana por pessoa. A tecnologia evoluiu, e os standards de vida melhoraram, sim, mas estamos sensivelmente tão consumidos no nosso tempo pela necessidade de garantir os mínimos de sobrevivência de que não abdicamos como estávamos há várias décadas. O que impediu, então, esse paraíso de existência para a humanidade?

As análises sobre o que falhou (porque, diabo, falhou, e falhou mesmo antes de contabilizarmos a crise de custo de vida que observamos hoje) são muitas e de complexidade e abrangência variadas o suficiente para em muito extravasarem este espaço em que escrevo. Das grandes questões estruturais de desigualdade de género, etnico-racial, de classe e suas implicações na democratização da tecnologia e do tempo, às mais comummente apontadas como a concentração de mercados em poucos agentes económicos ou a complexidade de cadeias de produção, a verdade é que uma grande parte dos benefícios do avanço social e tecnológico do último século é sequestrada antes de chegar até nós, como tradicionalmente os ganhos materiais na história da humanidade o são. Acontece que, no dia de hoje, essa dinâmica devia já ser uma que se auto-limita: a tecnologia que temos vindo a desenvolver pode (e tem de), precisamente, ser a que nos permite mais facilmente desconstruir boa parte das estruturas que conspiram para que o padrão de uma ser humano seja imaginar trabalhar pelo menos quarenta horas todas as semanas. Que fique bem claro: nem tecnologia é uma panaceia para problemas estruturais, nem qualquer resposta simplista que se apresente como única aos problemas quotidianos deve merecer muita atenção. O que argumento aqui é que, com a tecnologia de que dispomos hoje, não há quase nada que nos impeça de ir fazendo e alargando pequenos buracos na aparentemente impenetrável ordem das coisas que queremos alterar, para além dos limites da nossa própria imaginação.

Quando empresas que fazem dinheiro com a recolha de informações sobre os nossos hábitos online resolveram criar formulários de consentimento para cookies e rastreadores de navegação absolutamente intransponíveis em resposta às exigências de legislação como o RGPD, não houve nada que impedisse investigadores de uma universidade dinamarquesa de ripostar e construir uma ferramenta gratuita que lida automaticamente (e optando pelo máximo de privacidade possível) com os ecrãs que nos aparecem da primeira vez que entramos num qualquer site. Para quem a usa, ou são uns trinta segundos e uma dor de cabeça nova em cada novo site, ou são muitos trackers e sorvedouros de informação pessoal que se evitam. Da mesma forma, não há nada que nos impeça, por exemplo, de reunir em tempo real e guardar um histórico dos preços de itens de supermercados, ajudando-nos a poupar nas compras quotidianas e, se quisermos, ajudar a demonstrar suspeitas de concertação de preços. Tanto não há que já foi feito, há uns anos, na plataforma maiscarrinho.pt. As grandes cadeias de supermercados tentaram, com sucesso, mudar as suas páginas web e fugir à recolha de dados e os responsáveis pelo projecto baixaram os braços, mas isso dificilmente será uma escapatória se tal plataforma for mantida por uma comunidade. Se redes sociais como o Facebook ou Twitter têm práticas abusivas para com os seus utilizadores e promovem conteúdo pago e não solicitado em vez de efectivamente aproximarem pessoas e nos apresentarem as publicações de contas que seguimos, nada nos impede de aderir a (ou criar) uma instância numa rede social federada como o Mastodon para decidirmos sob que termos temos as nossas interações online (e na volta, quem sabe, fomentar conversas em comunidades que levem à criação de cooperativas de produção e consumo locais ou de unidades de autoconsumo colectivo de energias renováveis). Estes são exemplos mais ou menos relevantes, mais ou (provavelmente) menos imaginativos, e mais ou menos complicados de casos em que nada impediu que tecnologia acessível a quase todos nós pudesse se bem utilizada. Mas não há, principalmente, nada que impeça pessoas com noção muito mais concreta das suas necessidades de, em conversa com seus pares, terem mais, melhores e mais abrangentes ideias de como usar tecnologia para ganharem tempo ou capacidade de o aproveitar.

Com isto, não é o objectivo embarcar nas narrativas atomizantes da responsabilidade individual, nem tão-pouco ver a troca de compotas nos jardins (ou o seu equivalente noutro contexto) como a primeira linha da intervenção social. O debate político e a organização estruturada em partidos, sindicatos, associações locais e outras continuam primordiais, e é quase certo que não atingiremos sem eles nenhum ideal de desenvolvimento enquanto sociedade. E outras vias de acção mais óbvias e conhecidas, como Cory Doctorow sistematiza neste ensaio sobre activismo, terão inevitavelmente de ser activadas, claro. Podemos, contudo, manter à mão de semear a ideia de que há uma imensidão de ferramentas ao nosso dispor, abrindo caminho e demonstrando que é possível pensar a vida mais livre em tempo e na capacidade de o aproveitar. Fora imaginação, há mesmo muito pouco que o impeça.

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