O Videogame e o Oráculo

Cibermancia: as conexões inesperadas entre videogames e divinação

henrique antero
12 min readDec 19, 2016
Utriusque Cosmi Historia (1617), Robert Fludd

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Eu sempre tive problemas sérios em tomar decisões (deve ser algum planeta em Gêmeos no meu mapa astral), então um dia me ensinaram uma técnica que uso regularmente quando um monstro assim se apresenta: jogar uma moeda para cima. Parece óbvio e todo mundo já fez isso um dia, mas o verdadeiro truque é estar totalmente atento ao que acontece dentro de você enquanto a moeda está no ar. É como se minha mente não tivesse a possibilidade de racionalmente, através da análise e da lógica, escolher entre sorvete de morango ou de flocos: como decidir entre um ou o outro se são igualmente cremosos? Mas enquanto a moeda gira uma sensação no meu estômago me diz que eu não deveria gastar dinheiro com isso. Mesmo que eu não possa articular minhas razões, a resposta parece óbvia. Faça o teste. Respire fundo e pergunte à moeda se você deve continuar lendo isso aqui. Confie no que sua intuição te diz durante o giro e ignore o resultado. Se você ainda continua aqui e nem a referência desnecessária de astrologia te assustou, eu tenho alguns videogames pra te mostrar.

Mas antes, você pode estar pensando: “nem todos os problemas são tão triviais quanto o sabor de sorvete pra esse dia quente. Não podemos confiar em outros instrumentos que façam decisões por nós, devemos pensar, analisar, até chegar a uma decisão razoável”. Você está certo. Nossos instintos podem ser enganados; algumas vezes eu quero coca-cola quando o que eu realmente preciso é água. Mas em algumas ocasiões nós não temos um tempo razoável para chegar em uma solução adequada, ou não dispomos da informação completa. Algumas vezes precisamos dar um salto, e um mecanismo que nos auxilie pode calhar. Seja uma moeda, a sorte, uma decisão aleatória, irracional. Aquela sensação que, à posteriori, nos ajudou a evitar um acidente, ou uma festa caída. O momento quando escapamos de uma aranha no Spelunky antes que o nosso processo cognitivo seja capaz de percebê-la (após horas e horas de prática). É o que faz os melhores atletas. A fonte do gênio criativo: o que permite indivíduos treinados a fazerem conexões estranhas e incomuns, que resulta em trabalhos como Ulysses, inspirado por sonhos e pesadelos; ou a descoberta do DNA, inspirada por uma viagem de LSD. O que une dezenas de casos semelhantes a esses? Podemos, para os nossos fins, chamar de “intuição”.

O poeta inglês John Milton escreveu em Paradise Lost que um dia o anjo Raphael tava de rolê no Paraíso e encontrou Adão, e os dois foram trocar uma ideia (tradução livre). Raphael declara que existem duas maneiras de pensar: a discursiva, que é mais próxima de Adão, e a intuitiva que é mais própria de Raphael — enquanto a razão dos anjos é a intuição, humanos racionalizam através do discurso, da dialética, da oposição de princípios e argumentos. E às vezes é dada aos humanos a oportunidade de pensar como anjos. Isso não é tão raro. Auxiliados por décadas de estudo e trabalho, Einstein e Bohr fizeram algumas das principais contribuições científicas do século XX: a teoria da relatividade, e o modelo atómico híbrido. E de onde vieram essas ideias? Einstein teve um sonho. Bohr considerava a intuição e o simbolismo como essenciais pra entender física quântica.

E quem nunca esteve preso à necessidade de tomar uma decisão, um bloqueio criativo, ou um problema existencial, e a solução surgiu como que por intervenção divina quando você foi ali tomar um chá, ou lavando louça, dando uma volta por aí? Eureka. Quando o pensamento discursivo encontra uma barreira intransponível, a intuição pode ser o caminho mais rápido do ponto ‘a’ ao ponto ‘b’, ou mesmo circundar o problema completamente. É aí que entra a divinação. A arte de obter uma resposta, um insight, através de um processo mecânico, ritualizado. Uma tecnologia para acessar nossa intuição quando quisermos, e não ter que esperar pela fagulha divina. Um hack mental para nos fazer pensar como anjos.

“Eu acho que essas ferramentas de divinação — e mesmo as mais estabelecidas como o Tarot — são maneiras interessantes de navegar as próprias questões e inseguranças da pessoa que pergunta” Este é Pol Clarissou. Ele é um artista francês que desenvolve pequenos experimentos interativos. Em Wish Fishing temos um pescador em uma praia no espaço que faz uma pequena coreografia conforme você escreve uma pergunta. Aperte enter e ele lança a linha no espaço e pesca sua resposta: uma sequência de caracteres unicode que você pode decifrar através de um glossário, tipo ❦ (a concepção: uma ideia não realizada, a morte antes da vida); ou ☁ (a sombra: uma oportunidade perdida, um erro). “Colocar uma pergunta em palavras, e daí decifrar a resposta ao colocar caracteres estranhos em contexto, força você a realmente pensar sobre a sua situação e pode te ajudar a mudar de perspectiva, ver coisas que você não viu ou não queria ver”

Pol me contou que a escolha dos símbolos unicode foi porque eles são uma parte estranha do alfabeto da web que contém principalmente símbolos utilitários, mas também pequenas seções que são apenas decorativas e sem nenhum sentido aparente (afinal, pra quê tantas estrelas e flores? ✵✶✷✸✹✺✻✼✽✾✿). “Isso me lembra de Pítia, que as predições eram sempre dadas em uma linguagem vaga e obscura e que poderiam ser interpretadas de maneiras drasticamente diferentes; e assim o significado dizia mais sobre o intérprete do que sobre o futuro”.

Pítia era a sacerdotista do templo de Apolo, em Delfos, o oráculo mais confiável e procurado daqueles tempos, a mais alta autoridade civil e religiosa de uma sociedade dominada por homens: uma mulher. A mitologia diz que para testar os poderes de divinação, Croesus, o rei de Lídia, consultou todos os oráculos famosos sobre o que ele, o rei, estava fazendo no dia tal. Apenas o oráculo de Delphi acertou: cozinhando carne de cordeiro em uma panela de bronze. Então ele perguntou à ela, Pítia, se ele deveria ir à guerra contra Pérsia, e o oráculo respondeu: “Se você cruzar o rio, um grande império irá cair”. Croesus entendeu isso como uma afirmativa de que os Persas seriam vencidos. E a profecia se concretizou, mas não da maneira que ele interpretou: o rei foi completamente derrotado pelos Persas. E o que ele esperava? A história não seria tão interessante do contrário e, vamos ser honestos, ele foi à guerra baseado em conselhos inspirados por substâncias psicotrópicas.

Da cultura helenística à cibercultura, podemos dizer que a divinação é um elemento onipresente na história da humanidade, e por toda parte, também. Muita gente acreditou um dia, sem qualquer sombra de dúvidas, que existiam mensagens codificadas nos mais diversos elementos da natureza, e engenhosos que somos desenvolvemos métodos para interpretar essas mensagens: os egípcios interpretavam sonhos (e diziam que a própria capacidade de ler e escrever, codificação e decodificação de símbolos, era um dom divino concedido pelo deus Thoth); os Hititas, um povo indo-europeu de onde hoje é a Turquia, decifravam mensagens ao contar pássaros e observar em que direção eles voavam (os romanos tinham um sacerdote apenas para este propósito, uma técnica conhecida como auspício); uma prática comum do Brasil pré-colonial era falar com os deuses através de sonhos, transes, e visões alucinógenas com o auxílio de um pajé — função análoga aos xamãs da Sibéria; na Europa surgiu o Tarot, ninguém sabe exatamente onde ou quando, mas provavelmente por volta do século XV; na África Ocidental e entre o povo Iorubá surgiu o jogo de búzios, que também se popularizou no Brasil; os chineses contavam rachaduras nos cascos de tartarugas, e também gravetos, que eventualmente se transformou na famosa prática do I-Ching.

Talvez esses métodos não sejam necessariamente uma crença cega em mensagens sobrenaturais, ou meramente superstições — é mais provável que por falta do vocabulário psicológico moderno, os pajés e oráculos antigos atribuíam visões e símbolos à fenômenos reais, criando falsas associações e incorporando significado onde antes não existia. Oracle, de ceMelusine, tenta recriar essa experiência em certa medida. O jogo é o primeiro de uma coletânea, chamada east van EP — East Van é uma região dentro da cidade de Vancouver, Canadá; e o EP é porque o cara acha que jogos deveriam se parecer mais com música.

O jogo me coloca na clareira de uma floresta. Dá pra ver as estrelas no céu aberto, e também espadas e escudos jogadas pelo chão, no que eu presumo que seja um cenário de pós-guerra. Tem uma fogueira de poucos polígonos acesa no meio. Peço-a para que me conte do meu destino, e a fogueira me concede visões por meio de uma desmaio. Durante o momento em que estou inconsciente, imagens e símbolos surgem na tela: planetas, animais, jarros, cruzes, árvores — para não esquecer que estamos num ambiente virtual: a qualidade dos modelos 3D e a boa iluminação e música tornam o ambiente bastante evocativo. Depois de acordar preciso resumir minhas visões em algumas palavras, o que gera um conselho críptico: “Você tornará seu coração conhecido”, da última vez que tentei.

ceMelusine me contou que a inspiração principal do jogo veio desta cruz, construída em 2010 para os Jogos Olímpicos. “A imagem dessa cruz tem na verdade uma linhagem convoluta, era um símbolo de gangue há 30 anos; mas agora é uma marca registrada pela cidade de Vancouver” Ele a cruza todos os dias, à caminho do trabalho. “Eu queria fazer um jogo que capturasse a ideia de como objetos podem ter esses significados complexos e variados, sobre contemplar um símbolo e tentar derivar a partir daí seu significado. Isso faz sentido?”

E que processo cognitivo acontece quando tentamos derivar significados complexos de símbolos estranhos? Para a escola de psicologia alemã Gestalt, o ser humano tem uma necessidade inata de organização e de integrar as experiências obtidas por nossas percepções: então ao confrontar algo que não entendemos, tentamos conciliar essa nova percepção com uma visão maior que temos do mundo, a partir de certas leis como a da continuidade, proximidade, semelhança e afins (designers lendo isso já devem ter se deparado com esta teoria no estudo da percepção visual).

Ou seja, não construímos nossa percepção de mundo a partir das partes. Percebemos, na verdade, um todo coerente que então quebramos em partes menores para tentar entendê-lo. A intuição, ou o pensar em Gestalts, seria se utilizar dessa visão do todo coerente para abreviar o espaço entre o conhecido e o desconhecido, entre o consciente e o inconsciente. Ligue a tv, assista um filme aleatório por alguns segundos e tente adivinhar o gênero sem olhar a sinopse. Porque mesmo sem ter certeza, você presumiu que era um filme de ação? Porque tinha o Vin Diesel? Atirando, correndo, pulando carros? Explosões? Nenhum desses elementos, sozinho, é essencial para um filme de ação. Mas nossa experiência nos tornou aptos a reconhecer facilmente quando todos esses elementos estão agrupados e formando um todo coeso que aprendemos a classificar mais rapidamente do que podemos raciocinar. Gestalt é a intuição trabalhando de forma não-linear e global.

O psicólogo Carl G. Jung sempre teve um grande interesse em métodos divinatórios, o que ele considerava meios de explorar o inconsciente. Ele cunhou o termo sincronicidade para explicar, basicamente, que coincidências significativas são mais do que mero produto do acaso — e assim desafiou o mais importante princípio da ciência: o da causalidade. Jung diria que uma coincidência significativa são eventos relacionados e que envolvem também o estado psíquico do observador, mesmo que não haja uma relação clara entre eles. Ou seja, se você sonhou com alguém, na rádio tocou uma música que te lembrava ela, e mais tarde neste dia essa mesma pessoa te ligou… pode haver algo por trás da coincidência, uma relação intrínseca de significados.

Jung diz, no prefácio que escreveu para uma edição do I-Ching, que o pensamento chinês expressado no oráculo é diferente do nosso por se preocupar principalmente com coincidências e chance, e não com a causalidade. Para utilizar o I-Ching, devemos jogar três moedas seis vezes e contar o resultado. Chegamos a uma série de linhas chamada hexagrama. Este hexagrama teria, segundo a tradição, todas as características essenciais do momento em que ele ocorreu — sendo assim um excelente símbolo para explicar o seu estado mental e arredores. Todos os sistemas divinatórios agem mais ou menos por essa lógica — alguns com interpretações mais canônicas, como o I-Ching; e outros mais abertos à interpretação, principalmente os transmitidos pela tradição oral, como o jogo de búzios.

Sincronicidade, métodos de divinação como I-Ching, ou astrologia, todos dependem de um mesmo elemento cruciall: um ser humano que possa interpretar a resposta dada. A única prova possível da validade do sistema, é a opinião de quem estiver se consultando — se ela acredita, ou não, que o método escolhido faz uma representação adequada do seu estado psíquico. Se ela concorda, ou não, que Capricórnio é uma boa representação da sua personalidade. O resultado é subjetivo, na melhor das hipóteses, e todos os resultados possíveis são potencialmente significativos — qualquer carta do baralho de Tarot pode te trazer um insight, qualquer signo da Astrologia poderia combinar com sua personalidade, especialmente se você estiver escrevendo sobre métodos de divinação e quiser provar que funcionam. É o chamado Viés da confirmação. O que a mente pensa, a mente prova. A Apofenia é outro fenômeno da nossa percepção que vem ao caso: a tendência a encontrar significado ou padrões em um conjunto aleatório de dados. Qual a diferença entre encontrar significado no seu mapa astral e encontrar um coelho no formato das nuvens? Nenhuma, provavelmente.

Por mais que eu tente esticar aqui ou ali sobre a relevância histórica de oráculos ou sobre como o nosso processo cognitivo ainda não pode ser totalmente explicado, a verdade é que nada disso sobrevive o rigor científico. Nem preciso me desculpar ao racionalista entre os leitores porque esse já deve ter nos abandonado no primeiro parágrafo. Tudo isso pode ser descrito um escapismo. Uma crença de que existe alguma ordem oculta no universo e de que nós somos mais do que meros seres à base de carbono. De que existe um significado essencial à vida. Ou podemos só parar de levar tudo isso tão à sério e rir dos nossos pequenos problemas humanos.

“É divertido! Eu acho que as pessoas não passam tempo o bastante pensando em si mesmas, e esse tipo de coisa pode nos dar espaço para isso.” Esta é Nathalie Lawhead. Ela desenvolveu junto com Rachel Weil o videogame Monkey Fortunetell. “Todo oráculo promove uma meditação por si só, e em uma cultura como a nossa, qualquer plataforma para contemplação pode ajudar tremendamente no conhecimento pessoal”. As instruções para o jogo são simples: 1) Peça que o seu Espírito Macaco te guie, ou peça uma resposta para uma questão sobre o seu futuro; 2) Carregue o Barril de Macacos com a sua intenção balançando-o; e 3) Jogue os macacos no tabuleiro digital. O sistema desenvolvido por Nathalie e Rachel é na verdade bastante complexo, mas também acessível. Um guia oferecido pelo próprio jogo tenta explicá-lo. Passar o mouse por cima dos macacos no tabuleiro também explica a sua posição. No meu caso, o Macaco Rosa, que representa o futuro, caiu de cabeça pra baixo — o que significa um problema. O jogo me diz: “A sua perda de amor, falta de paixão, ou possível alienação social será a razão da sua inabilidade de crescer, como se algo estivesse te segurando. Quando o momento chegar, considere como isso corresponde ao seu símbolo governante, A ESTRELA, que representa seu destino.”

Se eu considero alguma coisa verdade? Não sei. Faz semanas que eu me pergunto se eu deveria escrever isso. Parece estúpido depositar confiança em algo que não pode ser provado: algo que não pode, ou deveria, ser real. Mas você está lendo isso, e talvez Monkey Fortunetell tenha me ajudado a escrever com convicção.

Apofenia, Gestalt, ou Intuição, humano ou angelical, lembre-se que a divinação é pragmática por natureza. Assim como os videogames, requerem a sua participação, o seu input e feedback. É um processo que produz um resultado: e quer você acredite ou não, as respostas podem ser fontes de criatividade, reflexão, úteis ou só divertidas. Faça o teste: leia o I-Ching, aprenda Tarot, ou jogue alguns videogames.

No fim das contas, é a sua própria cabeça que faz todo o trabalho.

Eu recomendo imaginação.*

*Para quem quiser uma abordagem mais tradicional dentro do digital, Chelsea Sterns fez este excelente Tarot minimalista usando apenas 300 palavras: Tiny Tarot

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