LADFest 2023 – Design é humano e precisa de identidade

J1 V Silva
9 min readJul 7, 2023

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Escrevi este artigo enquanto voava de volta de Lima para São Paulo, de maneira > despretensiosa < e ouvindo um bom reggaeton, para refletir o que o principal evento de design latinoamericano apresentou à comunidade, neste que é o meu segundo ano como participante do evento – estive presente nas edições de 2020 e 2023. Let’s go?

O evento

Para quem nunca ouviu falar do LADFest, o Latin America Design Festival é um evento ligado à premiação de design Latin America Design Awards, que vem sendo realizado nos últimos 9 anos na cidade de Lima, capital do Peru. A programação do festival inclui workshops e um dia de conferências, com convidados latinos e globais, de diferentes vertentes dentro do Design.

A maratona de conferências deste ano – se podemos dizer assim, afinal foram 12 horas de evento – começou com o fundador do festival trazendo a tona o conceito deste ano. Chamado de “Design is human”, o festival buscou refletir sobre como a inteligência artificial e tecnologias disruptivas podem mudar a nossa forma – ou mesmo nos substituir – de realizar o processo de design.

Os 13 convidados de 12 países, bem como os jovens selecionados no programa Young Talents, apresentaram – ou buscaram – sua perspectiva sobre o assunto, afinal, o debate e o impacto de tais tecnologias ainda é algo novo, não há uma certa clareza sobre impactos tão imediatos.

Design é humano?

Começando pelo final, posso te adiantar a resposta, afinal, ela veio de maneira uníssona durante todo o evento:

design não é só humano, como tem uma identidade humana por trás.

Mas agora começando de fato, durante todo o evento, nas mais diferentes vertentes de design, identidade apareceu como o cerne de toda a questão, e aqui, quando digo identidade, estou falando sobre identidades pelas quais são as responsáveis por guiar, realizar e principalmente pensar o design, ou sejam, as pessoas e suas histórias, características e personalidades.

Fidel Peña, da Underline Studio, um dos primeiros a subir no palco, nos disse em sua incrível apresentação que “Para saber o que dizer, precisamos saber quem somos” e é exatamente isso, o que fazemos como designer, carrega quem nós somos como indivíduos, os projetos carregam a nossa história e visão de mundo, não há como se desconectar disso e ficou claro que tentar fazer isso talvez seja um dos maiores erros na nossa trajetória.

“Siempre que hagamos algo de otra comunidad, hablamos de la diferencia.” — Vera Lúcia sobre “Diseñar lo (im)posible”

Boa parte dos convidados nos trouxeram os seus fatores, vivências e experiências profissionais e pessoais que os fizeram com que se tornassem quem são como designers. E quando falamos sobre o ser designer como indivíduo único, não há como não refletir sobre estilo, sobre ser reconhecido por essa identidade, seja como designer, artista visual ou ilustrador, e, aqui, podemos dizer que Maria Jesús nos deu uma aula.

“El la carrera de diseño somos nuestros propios jueces” — Maria Jesús

Com a apresentação “El fantasma del estilo”, Maria nos ensinou como toda a sua trajetória e construção como ilustradora está conectada com as vivências, levando a plateia a refletir que é preciso ter paciência na construção desse estilo, pois o processo é longo e muda com frequência ao longo do tempo e está tudo bem, todos temos nossos processos de encontro e desencontro. Maria mostrou que até mesmo a paleta de cores utilizada por ela hoje é fruto dos tons vistos na sua cidade natal durante a infância.

“Lo que hace tu estilo es tu personalidad, de donde vienes, lo que viviste” – Maria Jesús

Hoje, vejo que o design global está em um momento em que a disciplina não só ganhou notoriedade e relevância dentro dos mais diferentes mercados, mas também se tornou mais acessível, com ferramentas e carreiras popularizadas.

Quando observamos essa expansão a partir da perspectiva dos estilos, podemos observar que um dos impactos desse processo é a grande quantidade de projetos similares, com estética padronizada, em que a identidade dos profissionais não foram um fator determinante nas suas construções. Recentemente, li um incrível texto do Giovani Castelucci, designer e fundador do estúdio Daó, na incrível Revista Recorte, em quese reflete sobre exatamente isso: referências e vivências que impactam no processo de design. Para ele, tudo que vivemos ou ao menos cruzamos durante nossa vida podem ser potenciais insumos para a construção de projetos de design, onde as referências nem sempre são e não precisam ser exclusivamente coisas tangibilizadas, como outros projetos, uma pasta do pinterest ou um frame de um filme, elas podem ser apenas vivências pessoais.

“Com o passar do tempo, as informações que vamos coletando ao longo de nossa vivência transformam nosso modo de perceber o mundo.”– Giovanni Castelucci

Quando as referencias são apenas e exclusivamente tangilizadas com outros projetos, acontece o efeito Pinterest ou Behance, que Thierry Brunfaut, um dos palestrantes do evento, já relatava lá em 2019, uma grande onda de projetos similares, sem identidade.

Mais adiante no evento, o artista e designer 3D/VR Joseph Melhuish, um dos convidados globais, nos trouxe o impacto desse padrão genérico em seus processos como artista visual. Joseph notou que clientes corporativos estavam requisitando cada vez mais projetos de estética igual ou similar umas aos outros, que vinham ganhando notoriedade entre startups e empresas de tecnologia. Tempos depois, essa mesma estética foi definida como “corporate Memphis”, estilo que logo foi questionado pela comunidade de design pela alta padronização e falsa representação da realidade.

Para Joseph, isso gerou uma reflexão de carreira em meio à pandemia, onde ao notar que trilhar sua trajetória em projetos e estéticas que conectavam com sua personalidade e seus interesses os tornaria únicos, mesmo que isso custasse deixar de atuar com clientes grandes do mercado e ter de encontrar clientes alinhados com a sua real estética. Após essa decisão, Joseph vêm desenvolvendo diferentes tipos de projetos e vem sendo reconhecido por seu estilo único.

"En latam diseñamos desde el imposible, de la escasez." — Vera Lúcia

Chegando ao fim do evento, os headliners de peso como Gabriela Namie – art director do YouTube Music, os fundadores do estúdio Porto Rocha e Thierry Brunfaut da BaseDesign, se uniram a essa perspectiva dita até aqui.

Gabriela, nos apresentou o mundo da música criado por ela no YouTube Music e como esse mundo é inclusivo, diverso e criativo; onde projetos globais ou locais (para regiões ou países específicos) são propositalmente colaborativos com artistas e ilustradores dos mais diferentes lugares, gêneros e personalidades; onde o seu local de fala é preservado e valorizado, em um processo que essencialmente busca dar visibilidade para todas as identidades.

Como uma empresa e marca global, hoje com um consumo de massa, tal visão é importantes para que não haja apagamento de identidades e criação de esteriótipos na comunicação.

Porto Rocha, com Leo Porto e Felipe Rocha, não só apresentou incríveis projetos pelas quais desenvolveram nos últimos anos, como nos demonstrou as razões pelas quais o estúdio foi criado, e em resumo, pode se dizer que se dá pelo fato de que os dois fundadores não cabiam nos lugares existentes, bem como criar um novo lugar também é um meio de demarcar suas próprias identidades dentro de um mercado americano em que pessoas latinas, imigrantes e queers tem suas capacidades questionadas.

Leo e Felipe entregando tudo.

E por fim, a aplaudidissima e irreverente apresentação de Thierry Brunfaut, da Base Design, nos levou além, ao trazer uma perspectiva não só de um indivíduo, uma identidade, mas do coletivo de designers, refletindo como um ambiente com um grupo de pessoas tão diferentes precisa ser pensado do zero, assim como a gestão em design é importante para que o processo como um todo funcione.

Thierry, como um dos cofundadores de um dos maiores estúdios de design da europa, afirma que "não há como querer que todos sejam iguais, cada um precisa ser a melhor versão de si" para assim termos times de design harmônicos como qual uma orquestra, em que a sinfonia é feita por instrumentos distintos entre si. Um talk importantíssimo, afinal não é sempre vemos o assunto gestão em design em eventos como esse. 10/10.

Thierry ao ilustrar como cada indivíduo tem sua identidade e que cada uma precisa ser valorizada.

Pensamentos finais

Imagino que quem leu até aqui notou que a palavra identidade foi dita várias e várias de vezes, não tinha como representar melhor o resultado do evento com outra palavra.

Design é design porque há alguém por trás, individualmente ou em coletivo, que pensou com base em tudo que aprendeu e viveu até aquele exato momento. Não posso afirmar que não há design sem identidade, mas podemos concordar que não há um bom design sem essa identidade, esse imagino que o ChatGPT consegue fazer — uma primeira resposta para as dúvidas sobre o quanto itens como IA podem mudar a nossa disciplina.

Existem muitos designers no mundo e, nesse grande grupo, o que te torna único é a maior das suas qualidades. É a partir desse ponto que precisamos valorizar e construir a nossa carreira.

A identidade latina que nos une, é também a que nos diferencia.

Perguntas e reflexões

Vejo que o LADFest vem sendo ano após ano maior e melhor, caminhando para ser um dos principais eventos de design a nível global. Ter um evento que traz pessoas de todo o mundo, bem como nomes latinos de peso, faz com que haja um respiro e uma troca de extrema qualidade, é um acerto muito grande e feliz de ser 100% feito aqui.

Entre as reflexões, eu penso o quanto o LADFest pode ser uma bolha dentro do Peru e da América Latina, isso vem do fato de ser um evento consideravelmente caro para participar, uma vez que é cobrado em dólares (para locais e estrangeiros) e que requer um deslocamento internacional para que haja uma diversidade de participantes a nível continente. Além disso, ao conhecer outro jovem peruano que também atua no mercado criativo, soube que não havia conhecimento por parte dele do evento, mesmo com seus nove anos de existência.

Um evento tão grande e relevante precisa abraçar e se tornar acessível a todos, sem perpetuar o que o design fez por muito tempo, onde a disciplina foi por muito tempo elitista. Não são todos que conseguem acessar o evento localmente, nem mesmo viajar para tal, penso que outros modelos de participação como transmissão ao vivo e gratuita podem ser fatores para a expansão e acessibilidade do evento. Em 2020 e nesta edição de 2023 notei participantes brasileiros, mas sempre em número mínimo. É preciso conectar e expandir as fronteiras.

Por fim, como Sr. Product Designer, não tenho como não comentar que sinto uma estranheza ao não ver convidados dessa parte da disciplina, itens como UX, UI, Research, Motion design, web design e etc podem ser temas abordados, mesmo que estejam distante das outras áreas da disciplina, para que haja uma troca interna, afinal o evento se propõe a ser um encontro do design latino-americano e não especificamente das partes gráficas, ilustrativas, visuais e de marca/branding.

Nas duas últimas edições que participei, não vi convidados abordando isso como prioridade e propriedade. Nesta edição, apenas a artista visual Yehwan Song abordou o assunto da perspectiva da arte, existem muitas pessoas dentro da comunidade latina que são referência no assunto a nível global e que podem ser parte do evento como convidados.

Esto es todo.

Como disse, esse era um texto despretensioso para contar as reflexões e conexões que fiz entre um convidado e outro. Nem todos foram citados aqui, assim como vários outros assuntos que foram expostos, busquei traduzir o que todo o evento significou para mim.

É um prazer compartilhar e tornar esses pensamentos acessíveis com quem não esteve no festival. Se você curtiu e quer trocar uma ideia sobre ou teve alguma dúvida, bora conversar!

Con mucho gusto, Jota uno.

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J1 V Silva

Sr. Product Designer at QuintoAndar / Creative director / Community Advocate at Figma / Producer / Latin / Queer and Kart driver